Direto ao assunto. O IV evangelho afirma, na narrativa da
ressurreição, que Pedro foi ao túmulo junto com outro discípulo, “aquele que
Jesus amava” (Jo.20,4). “Maria Madalena correu e foi dizer a Simao Pedro e
ao outro discípulo, a quem Jesus amava: tiraram o Senhor do túmulo e não
sabemos onde o puseram. Saiu então Pedro com aquele outro discípulo e foram ao
túmulo” (Jo.20,3-4). Porém, os três primeiros evangelhos afirmam que Pedro
foi ao sepulcro sozinho. “Pedro correu ao sepulcro; inclinando-se para
olhar, viu só os panos de linho no chão” (Lc.24,12). E Marcos: “Ide
dizer aos seus discípulos e a Pedro que ele vos precederá na Galileia.”
(Mc.16,7). E Mateus: “Ide dizer aos discípulos que ele ressuscitou dos
mortos” (Mt.28,7). Em segundo lugar, outra divergência importante, na
ocasião do julgamento de Jesus no pátio do sumo Sacerdote. O IV evangelho diz
que Pedro foi com o “outro discípulo”: “Simão Pedro seguiu Jesus, e mais
outro discípulo. Este discípulo era conhecido do sumo sacerdote e entrou com
Jesus no pátio da casa do sumo sacerdote” (Jo.18,25). Porém, os três
primeiros evangelhos dizem que Pedro foi sozinho: “Pedro foi seguindo de
longe, até dentro do pátio do Sumo Sacerdote” (Mc.14,54). E Mateus: “Enquanto
isso, Pedro estava sentado no pátio” (Mt.26,69). Em Lucas: “Pedro
seguia-o de longe; acenderam um fogo no meio do pátio e sentaram-se em redor”
(Lc.22,55). Após estas afirmações
tão divergentes, é muito de estranhar a afirmação do IV evangelho, segundo a qual Pedro foi com
outro discípulo, tanto numa cena como na outra. Não restam dúvidas que há uma intencionalidade no IV evangelho que
iremos analisar. Não é falado o nome do “outro discípulo”, apenas se diz “aquele
a quem Jesus amava”. Os estudiosos dizem que esse discípulo era o fundador
da comunidade joanina, onde se deu a escrita do IV evangelho. Vejamos o perfil:
“Embora fosse um companheiro histórico de Jesus, é certo que ele não estava na
Ceia, porque não era o apóstolo João. O evangelho o pôs em foco a tal ponto que
a sua importância em cena no evangelho vai além da importância que ele teria
tido aos olhos de um observador de fora durante o ministério de Jesus.”
(R.Brown, A Comunidade do discípulo amado, p.32). “O Discípulo Amado é a
autoridade que está por trás do IV evangelho em cujo espírito o evangelho foi
escrito, mas que não teve participação imediata na composição da obra. Antes,
ele é o supremo representante da tradição e um testemunho para a Comunidade.”
(Freiburg, Herder,1975 III, 449,64, Apud R.Brown, o.c.p.34). Por seu lado
O.Cullmann afirma que há evidências que ele era um antigo discípulo de João
Batista, que começou a seguir Jesus sem compromisso na Judeia, quando o próprio
Jesus estava bem próximo ainda do Batista, e que teve alguma participação na
vida de Jesus”. (Apud R.Brown, o.c.p.35). Essa figura misteriosa que aparece só
no IV evangelho é assim o herói da Comunidade. Ele serviu como o esteio e a
motivação das duas Eclesiologias que estavam-se formando: a eclesiologia dos
três primeiros evangelhos que tinha Pedro como o representante dos Doze, e a eclesiologia do Discípulo Amado como pivô de
outra eclesiologia sem Pedro e sem a sua autoridade. Ou mais ligeiro: Com Pedro
prevalecia a eclesiologia do “Apóstolo” e a sua autoridade; com o Discípulo
Amado era a eclesiologia do Espírito e sem a autoridade de Pedro. Aquela
exaltava a estrutura, esta exaltava a “proximidade” com Jesus, sem estruturas,
apoiando-se na autoridade do Espirito. Tanto que o IV evangelho não fala no
“poder” concedido a Pedro, como falam os três outros evangelhos, e nunca fala
em “Igreja”, “eklesia”, mas sempre e só no Espírito. Agora temos as razões das
diferenças e, digamos, da intencionalidade ou até competição com a qual este
evangelho tentou “denegrir” a imagem de Pedro na entrada no pátio com o “outro
discípulo”, o que tudo indica não ser verdade como vimos, e o rebaixa a um segundo plano na
“corrida” ao túmulo. “A chave destas divergências é o contraste consistente e
deliberado entre Pedro e o discípulo amado, o herói da comunidade joanina. Não
é acidental que o evangelho fale de seu herói como de um “discípulo”, não como
um “apóstolo”. Discipulado é a primeira categoria para este evangelho, não a
missão apostólica que conferia a
dignidade. Contrapondo o seu herói ao mais poderoso dos Doze, a Comunidade
joanina estava simbolicamente contrapondo-se a si mesma às Igrejas que
veneravam Pedro e os Doze”. (o.c.p.86-87). Falamos na diferença de eclesiologia
entre o IV evangelho e os Sinóticos. Na verdade, segundo os estudiosos, Mateus
pensa em uma Igreja construída sobre Pedro, na qual os Doze têm o poder de
“ligar e desligar”, enquanto que no IV evangelho não há nenhuma referência à
categoria de “Apóstolo”, mas faz de “discípulo” a primeira categoria cristã, de
modo que para ele a continuidade com Jesus vem do testemunho do “Discipulo
Amado”. Por outro lado, insiste que o mestre é o Espírito Santo, o Paráclito,
que permanece para sempre com cada um que ama Jesus e “guarda os seus
mandamentos” (Jo.14,15-17), e é o guia de toda a verdade Jo.16,13). Para
responder àquela questão de que João é a testemunha ocular do “que vimos e
ouvimos”(jo.19,39), devemos responder com a Instrução da Comissão Bíblica de
1964, n.19: “que ensina aos católicos que estas narrativas passaram por anos de
desenvolvimento através da pregação apostólica e de nova redação feita pelos
evangelistas individualmente, de modo que o produto final, os evangelhos,
“relatam” as palavras e ações do Senhor numa ordem diferente, e expressam suas
sentenças não literalmente, mas de um modo diferente” (Comissão Bíblica 1964,
n.19). E mais: “Só com muita circunspecção é que se pode usar o evangelho como
fonte histórica” (M.de Jonge, apud R.Brown, o.c.p.18).
Conclusão. No evangelho assistimos à construção do formato do
“Discípulo Amado”, sua supervalorização e sua "invenção" de tal maneira que ficou
“símbolo”, mito e ícone das Comunidades
joaninas, pelo efeito bumerangue de contrapor o seu herói “discípulo amado” ao
herói Pedro das Comunidades petrinas, ou da “grande Igreja”, como são chamadas
pelos historiadores.
P.Casimiro João
smbn
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