segunda-feira, 18 de março de 2024

TEOLOGIA BÍBLICA, UMA SÓ LETRA OU UMA VÍRGULA.


 

Tomemos um exemplo em Mateus: “Não penseis que vim para abolir a lei e os profetas; não vim para abolir mas para dar-lhes pleno cumprimento. Antes que o céu e a terra deixem de existir, nem uma só letra ou vírgula serão tiradas da Lei, sem que tudo se cumpra. Portanto, quem desobedecer a um só destes mandamentos, por menor que seja e ensinar os outros a fazerem o mesmo será considerado o menor no Reino dos Céus; porém quem os praticar e ensinar será considerado grande no Reino dos Céus”(Mt.5,17-19). Em primeiro lugar, se tomarmos este discurso à letra, Paulo seria o menor no Reino dos Céus, ou mesmo excluído. Mas ele é um dos maiores no Reino dos Céus. E então? Ou a Bíblia brinca ou temos que procurar uma explicação. É o que tentaremos fazer.

Comparemos com estas afirmações de Paulo:”O homem é justificado pela fé, sem a observância da lei”(Rom.3,28). E: “Ele(Jesus) aboliu na sua própria carne as obras da Lei”(Ef.3,15). Paulo pôs a cabeça a prêmio para acabar com a circuncisão. Jesus falou contra a observância do sábado: “O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado”(Mc.2,27). Falou contra a obsessão da lei de lavar jarros e copos segundo o mandamento deles (Mt.15,20). Contra o conceito de comer “alimentos impuros” (Mt.19 ss). Faremos a pergunta: Então o evangelho está cheio de contradições? Sobre o mudar “uma só letra ou vírgula”, há um grande reparo a fazer. Os estudiosos dos pergaminhos e documentos antigos estão carecas de observar que os copistas omitiam e trocavam letras, palavras, vírgulas e pontos por falta de certezas e por falta de clareza do que estavam copiando. Ou por engano próprio ou por falta de visão devido à fraca luz das lamparinas de óleo ou de azeite, por cansaço do trabalho e de letras apagadas. Quantas trocas devem ter acontecido, é impossível de calcular. Além de outra coisa: as traduções de uma língua para outra: do aramaico para o grego, grego para o latim, de novo para o aramaico e hebraico. Impossível de imaginar. Todos os estudiosos e investigadores das ciências bíblicas afirmam que não existe mais nenhuma Bíblia “original”, nenhum evangelho “original”. Dois pontos importantes a considerar: Nos primeiros tempos da era cristã o povo era livre de “aumentar” palavras, frases e textos nos evangelhos, Cartas, etc. Assim como também faziam isso os próprios Judeus na sua Bíblia do Antigo Testamento. Um cristão lembrava de fazer um comentário de tal discurso, de tal evangelho, e fazia; o seu escrito ficava lá grudado junto com o evangelho, de tal maneira que ninguém sabia se eram de Jesus essas palavras ou dos primeiros autores ou de quem. Simplesmente ficavam lá. Podia ser um pregador, um catequista ou outro cristão. Quem sabe, às vezes era de alguém que não concordava com o que estava escrito e aumentava no texto a sua opinião. Do mesmo modo os Judeus na sua Bíblia, como disse. Até que por fim os Judeus puseram um ponto final nisso e determinaram acabar com esse costume e essa liberdade. Isso foi no século II d.C. o chamado “canon.” Depois deles os cristãos fizeram a mesma coisa mas só mais tarde, no século IV, o “canon” do Novo Testamento. Até essa data, o que não terá acontecido de acrescentos e comentários nos evangelhos? Você pode imaginar. Vejamos o que dizem os autores: “A Bíblia não é mais a mesma desde que começou a ser elaborada. Há diferentes razões para isso, como traduções, e reinterpretações dos manuscritos; as cópias eram feitas à mão, e não sempre por profissionais. Ela não é um livro único mas um compilado de diversos livros reunidos, que foram sendo escritos ao passar dos anos. Esse detalhe resulta em erros, omissões de partes dos manuscritos e, importante, tanto por problemas na tradução como por desejo de quem fazia a cópia. Caso você não saiba de química básica, folhas de celulose ou fibra, como papiros, ou couro de animal, se deterioram na presença da humidade, por este motivo não se tem os originais dos textos bíblicos. Não existe originais da Bíblia em local nenhum do mundo. O papiro p66, por exemplo, data do séc. III e não contém a famosa passagem da mulher adúltera. A Bíblia é baseada na sua grande maioria nos textos fragmentados, faltando partes, e tentando completar o que faltava. De qualquer forma, o livro que conhecemos como “Bíblia sagrada” não tem um original”.(C. Grossmann, Quora, 2009). No caso presente era a época quente das polêmicas sobre a “circuncisão”. O Paulo pregava que não mais necessária a circuncisão, outros que sim. Os cristãos convertidos do Judaismo faziam muita polêmica. O Paulo já não estava vivo, mas ficaram as Cartas dele. As Cartas de Paulo começavam rodando. As Cartas foram escritas antes dos evangelhos. No caso, este evangelho de Mateus foi escrito nos anos 80-85. Por outro lado, na comunidade onde foi escrito o evangelho de Mateus havia muita influência de Pedro, pois era a região de Antioquia onde Pedro tinha pregado. E como sabemos, entre Pedro e Paulo havia embates sobre a circuncisão. Pedro era indeciso e Paulo era firme na sua decisão. Não é então de admirar que, ou no início da escrita do evangelho, ou depois, qualquer pregador aumentasse a sua opinião e escrevesse mesmo no evangelho contra a doutrina de Paulo. Aí havia o perigo seguinte: muitas pessoas podiam ficar confusas sobre se foi Jesus ou não quem falou este discurso que até só vem no evangelho de Mateus. É o que aconteceu em toda a Idade Média até há pouco tempo que se ia repetindo. Infelizmente a Igreja ensina-nos só a repetir, e não a pensar, e ameaçando com os dogmas. Até que estudos e documentos encontrados e comparados, como os documentos do Mar Morto em 1946 levaram os estudiosos a descobrir por sinais certos que muitas palavras não são originais de Jesus nem dos primitivos evangelhos, como no caso que estamos estudando. Há uma ciência que consiste em comparar essas cópias em busca do que seria o texto original.

Conclusão. É divertido o estudo da Bíblia. Afinal, à primeira vista alguém poderia ficar amarrado com o tal “quem mexer numa só letra ou virgula” (Mt.5,19), como a galinha fica amarrada por um fio desenhado no chão, e afinal a Bíblia não foi só mexida numa letra mas em muitas, e muitas virgulas. Naquela época havia uma “polarização”, digamos, entre os radicais ou fundamentalistas contra um Paulo e os cristãos e comunidades que avançavam na compreensão da revelação e da fé e que, parafraseando Jesus, podiam dizer que “o homem não foi feito para a revelação, mas a revelação é que foi feita para o homem”, e da mesma maneira a fé: “o homem não foi feito para a fé, mas a fé é que foi feita para o homem”. Uma observação: O que veio primeiro o homem ou a revelação? O homem ou a fé”?

P.Casimiro joão      smbn

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segunda-feira, 11 de março de 2024

TEOLOGIA BÍBLICA, DEUS YAHWEH FRACO E FORTE.


 

Nos padrões do antigo Oriente a derrota de uma nação poderia também indicar a impotência de seu deus. A nação da Bíblia, que sempre considerou o seu deus Yahweh como o mais forte, um dia entrou em crise com as sucessivas derrotas de que foi alvo. E agora? Era a pergunta. Nessa hora tiveram que amargar e enfrentar a sanha dos deuses vizinhos que “teriam derrotado” Yahweh assim como tinham derrotado a nação. Ashur, o deus mais vizinho era visto como um imperador divino sobre todos os deuses das outras nações. Assim o deus Ashur tinha o mesmo nome da Assíria e tinha derrotado Yahweh. E o pior era que a Assíria dominava o mundo todo, desde o Egito até a Palestina. Israel era um país quebrado. E de quebra, há um dado importante nisso tudo: a base social de Israel foi quebrada, ao mesmo tempo que a nação, qual era a base social? A família. E como é que a família foi quebrada? Com os sucessivos cativeiros onde eram escravos. Como a terra fazia parte da família, ela foi deixada para trás; os filhos foram deixados e separados dos pais, e as mulheres separadas dos maridos. E ainda mais, os reis ficaram também na cadeia feitos prisioneiros, ou mortos. Foi assim o retorno do exílio quando essa nação quebrada voltou aos pedaços das terras estrangeiras. Foi quando, em vez do rei, era nomeado o sumo sacerdote para o governo no lugar dos reis que já não existiam mais, com exceção de João Hircano, (104 a.C.) quando os romanos lhe concederam o título de rei antes de ser assassinado. Isto era o ano 537 a.C. quando Ciro mandou eles de volta para suas casas, mas na condição ainda de escravos da Pérsia que tinha vencido a Babilônia, e depois ainda no poder de Alexandre, o grego em 333 a.C. no período helenístico, tendo uma folga de 40 anos no período dos macabeus até cair no poder dos romanos em 63 a.C. Digamos que isto teria sido providencial da seguinte maneira: Antes, os reis tínham os seus deuses, como qualquer um dos reis das nações vizinhas, ou quando casavam com estrangeiras ou tinham concubinas que traziam os seus deuses. Agora não tinham mais o rei, não tinham os deuses do rei e das concubinas. E aquilo que anteriormente tinha sido tão criticado sobre os “deuses” das outras nações eles esqueceram que tinham sido também os seus deuses. Era agora a hora de começar a cumprir. Era o século III e II antes de Cristo, quando Israel começou a considerar-se povo de um só deus ou monoteísta porque disseram Yahweh é o nosso rei e o nosso deus porque não temos outro rei, (Cf.Daniel, 3, 37ss.) Aliás, muito antigamente já tinha havido o Akenatón do Egito que em 1.200 a.C. tinha decretado um só deus para toda a nação, o que foi praticado até a morte dele.

Nesta época que estamos falando, a Bíblia foi editada, e reeditada, e o monoteísmo que agora adotaram, digamos, na marra, eles o estenderam como se tivesse sido praticado em épocas anteriores, o que é uma falácia. E nas reedições que agora fizeram assim colocaram nas novas reedições, desde o Êxodo, Deuteronômio, Crônicas etc.(Cf. 2Cr.36,14) Autores modernos colocam esta data como a mais produtiva da escrita e reescrita da Bíblia, dizendo que antes tinham só “ensaios”, nós diríamos rascunhos. E teria sido esta a data da elaboração definitiva da Torah e dos Livros Históricos, de Gênesis até Reis. (Cf. Mark Smith, “O memorial de Deus”, p.170). E também Philippe Wajdenbaum, “Os argonautas do deserto, pari passu). Vejamos o que diz M.Smith: “As reedições de grandes textos religiosos sobre o passado parece ajudarem a gerar e a modificar a ideia de uma deidade única na história bíblica”(o.c.p.177). E assim, esta atividade de editar e reeditar textos antigos envolveu também sua configuração: Textos deste tipo e deste tempo canalizaram todos os papéis dos deuses anteriores para esta única divindade agora adotada, o Yahweh. Deste modo foi construída uma afirmação pós-exílica sobre o monoteísmo como sendo constante em todo o passado de Israel. “No contexto pós-exílico uma das mais importantes asserções do monoteísmo reside na construção da primeira metade da Bíblia Hebraica canónica, a Torá e os Livros Históricos” (M.Smith, o.c.p.179). Na verdade, vejamos a data em que os estudos modernos colocam a escrita da Torá e dos Livros Históricos: “O formato destas obras foi concluído ao redor de 198 a.C. à época de Ben Sirac, sendo a última reedição do fim do império persa. Desta maneira, e nesta estratégia, o politeísmo foi empurrado para as sombras, ou negado, como se em todo o período tivesse havido “um só deus em  Israel” (o.c.p178), estratégia que já foi explicada neste blog (www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br de 25/2/24). Um exemplo flagrante: “Em Êxodo, 6,2-3 fica bem claro que que os patriarcas não conheciam a deidade pelo nome que a tradição javista associou ao chamado de Moisés” (o.c.p179). Estamos vendo como a “memória coletiva de Israel e a amnésia coletiva de Israel ajudou a gerar e visão monoteísta da Bíblia fora da cosmovisão politeísta israelita mais antiga e, então, interpretaram os fatos antigos à luz da nova visão” (o.c.p.179). Estamos agora observando como no mundo acontecem coisas estranhas: religião e política caminham juntas, ou para bem ou para mal. Sobre as acirradas críticas aos santuários de Dã e Betel, com o deus Baal se recusando a unir-se aos cultos de Jerusalém com o deus Yahweh mas também com a deusa Asherá o autor M.Smith observa o seguinte: “O problema não era ter ou não ter outros deuses mas era a competição de diferentes divindades apoiadas por diferentes santuários”.(o.c.p.81). Isto é, não eram problemas religiosos mas políticos porque tanto em Betel como em Jerusalém cultuavam vários deuses e deusas, como a Asherá, esposa de Yaweh. E tanto assim que eles levaram esta briga até transportá-la para o Monte Sinai, onde estrategicamente montaram a cena do “bezerro de ouro”. E tanto em Betel o deus Baal era representado como um “bezerro de ouro” como em Jerusalém o deus Yaweh era representado também como um “bezerro”, junto com a consorte “Asherá”, a “Rainha do céu”(Cf. o.c.p.101; cf. Jer.7,18 e 44,19).   Esse bezerro de ouro estava acontecendo nesse momento entre eles. Na verdade O Sul queria que todos viessem em Jerusalém, mas os do Norte não queriam e fizeram seus santuários e os seus deuses (Dã e Betel). Embora que tanto uns como outros tinham vários deuses, com suas imagens. O povo da Samaria fez esses cultos “a fim de impedir a sua população de continuar sua peregrinação a Jerusalém,” (o.c.p.62; cf. 1 Reis, cap.12), i.é, para que os Baal do Norte não fossem adorar os Baal de Jerusalém. Antes de concluir, diremos com M.Smith que com todas as habilidades e estratégias de época em época o Sinai conseguiu firmar-se como “uma realidade quase divina, consistindo de múltiplas partes de diferentes períodos; em resumo, como uma unidade “divina e eterna”, ainda que um amálgama humano unido pelo tempo”. (o.c.p.215). Assim como “mudanças posteriores sobre as figuras de Davi e Moisés foram transformados em figuras heróicas e lendárias”(id.p.230). Em consequência: ”Historicamente falando, a revelação no Sinai, como ela é apresentada na Bíblia, não “aconteceu” no ponto de origem de Israel. Em vez disso, como vimos, a apresentação bíblica do Sinai envolveu descrições construídas em vários pontos no tempo, apresentadas como uma única narrativa” (o.c.p.232). Além disso, como dissemos na página anterior, Não há evidências claras da estadia de Israel no Egito nem em fontes e documentos egípcios, nem na arqueologia. (M.Smit, O memorial de Deus,p.176-177).

 

Conclusão. Terminamos como começamos: Yahweh, deus fraco e forte. Era fraco quando sofriam derrotas. Mas eles queriam sempre ganhar, e que Yahweh sempre ganhasse. Mas ele ganhou sendo fraco e “derrotado” porque com as derrotas sucessivas do povo judeu ele veio a ser o “deus e o rei dos judeus que já não tinham outros reis nem outros deuses como vimos atrás. E assim a política andou sempre no meio. E apesar da relativa folga depois de voltarem para suas casas, nunca o povo judeu alcançou a liberdade depois da queda da Samaria no séc.VIII a não ser por uns 40 anos com os macabeus, de 123 a 63 a.c. ano da conquista por Roma. E nunca também deixou o politeísmo. Porém, depois dessa sujeição histórica às nações estrangeiras e depois desses deuses que sempre cultuou, Yahweh ficou escolhido, digamos, na marra, como único deus. Foi então o último recurso, e dali em diante Israel, diante do mundo, teve ocasião  de ficar como o padrão de nação monoteísta. Vejamos o que diz uma escrita da época: “Senhor, estamos hoje reduzidos ao menor de todos os povos, somos hoje o mais humilde de toda a terra: estamos sem reis, sem profetas, sem guias, não há holocausto nem sacrifício, não há oblação nem incenso, não há lugar para oferecermos em tua presença as primícias e encontrarmos benevolência”(Dn.3,37-38). É como você quando não tem mais ninguém para quem recorrer é que se apega com Deus. Assim, quando ficaram sem rei e sem seus deuses e suas concubinas, ele ficou como único rei e único deus, como vimos, menos de 200 anos antes de Cristo. “Quando não há mais recursos, só Deus mesmo”. Digamos que pela sua “fraqueza” Yahweh se tornou o deus “forte”, historicamente, politicamente, e teologicamente.

P.Casimiro João  smbn

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segunda-feira, 4 de março de 2024

TEOLOGIA BÍBLICA: SALOMÃO, ESPLENDOR OU MITO


 

Na página anterior tivemos alguma referência à história de Salomão e apresentámos as referências de Mark Smith que “apesar de não ser considerada historicamente inútil, a Bíblia não ocupa mais o lugar privilegiado de ditar as normas para a reconstrução do passado de Israel. O testemunho bíblico é “considerado” e “pesado” com evidências arqueológicas e textos extrabiblicos depois de terem sido avaliados separadamente por seu valor histórico” (Mark Smith “O memorial de Deus”, p.35). O assunto hoje é a historicidade das narrativas salomônicas e, de quebra, de Davi.

Primeiramente, nenhuma construção de Salomão foi encontrada em Jerusalém, como o famoso Templo de Jerusalém. Pelo contrário,  achados arqueológicos de grandes construções foram achados na Samaria, e em Meguido, onde nunca andou Salomão, e de uma data mais de 100 depois dele. Porém a Bíblia desvia os locais e os autores das construções, atribuindo-as a Salomão, em Judá, no Sul, por motivos políticos que veremos em seguida.(Cf. J. Ademar Kaeffer, A Bíblia e a Arqueologia, Paulus, 2018, p.57-58).Em Jerusalém não há vestígios de construções que a Bíblia atribui a Salomão. Nem uma pedra dessa estrutura foi encontrada, apesar de mais de um século de buscas por conexões entre o texto bíblico e as evidências do local de escavações. Essas construções contadas pela Bíblia, afinal de contas são da época da dinastia omrida, dos reis do Norte: Omri e Acab, no Norte e não na Jerusalém de Salomão.”(o.c.p.68). O motivo foi a ideologia dos escritores do Sul que quiseram passar uma borracha na historia do Norte. O templo de Jerusalém só na época de Josias é que começou a funcionar depois da construção subsidiada com o dinheiro da Assíria quando conquistou o país, para com isso manter o domínio sobre Judá que prometeu boa convivência e vassalagem de tributos  a Nabucopalasser e Nabucodonosor II da Assíria. Esta será então a época do Primeiro Templo.

Foi nesta época que teve início a maior atividade literária, que antes constava só de ensaios. Foi assim que a literatura deuteronomista feita no Sul reeditou a história bíblica segundo a sua ótica ideológica. E conseguiu isso aproveitando-se do declínio do Israel Norte (Samaria) tomada por Sargão II e Nabucopalassar. Foi assim que trocou os dados da história, forjando a ideologia do império de Salomão. Depois os assírios resolveram também abocanhar Judá e Jerusalém, quando Judá quis trair a confiança da Assíria, aliando-se secretamente com o rei Necau do Egito.  Como tinha sido o fim da Samaria, no Norte em 722, assim foi o fim de Judá, no Sul em 586. Falámos no inicio do período da escrita. Ele começou na Samaria, Norte. Inscrições hebraicas aparecem pela primeira vez em Hazor e Betsã em 883 na Samaria (Norte), enquanto que no Sul só no século seguinte. E porque é que essa escrita prosperou no Sul, em Judá?  Porque alguns fugitivos da Samaria, quando foi tomada por Nabucodonosor, conseguiram fugir para Judá e levaram consigo esses primeiros escritos, que depois foram transformados pela ideologia do Sul. Temos na cabeça que Davi conquistou Jerusalém em 1.000 a.C. e depois teria sido sucedido por Salomão e daí por diante. Porém, as últimas descobertas e escavações arqueológicas têm mudado a visão que é a seguinte: 1- A formação de Estado da Samaria, Norte não tem nada a ver com os filhos de Salomão depois do ano 1.000 a.C. mas com a dinastia Omrida (Omri e Acab (884-831). 2- Como se formou o Israel bíblico: No séc.VIII (722 a.C.) deu-se a queda de Samaria, Norte, e houve uma migração em massa para Judá e Jerusalém: gente vinda da Samaria, de Betel etc. Jerusalém que tinha 1.000 habitantes ficou com cerca de 15.000 almas. Judá transformou-se em Reino neste momento. A Assíria tinha aniquilado a Samaria porque era perigosa, mas Judá não oferecia perigo nenhum. Foi com esta vinda para Judá que se formou o Novo Estado de Israel bíblico. Não há evidências claras da estadia de Israel no Egito nem em fontes e documentos egípcios, nem na arqueologia. (M.Smit, O memorial de Deus,p.176-177).

A escrita tomou agora seu grande momento. E foi reformulada e reeditada toda a história de Israel, sob a ótica dos escribas do Sul. O grande objetivo foi promover os “reis davídicos” como os únicos governantes legítimos, e o Templo de Jerusalém, que de um quase nada foi construído por Dário e os sucessores de Nabucodonosor, como dissemos, para servir à ideologia da Assíria. O que levou pouco tempo, só até 586 quando se deu a queda de Jerusalém e Judá. “O autor de Êxodo incorporou as tradições do Norte mas as sujeitou aos seus principais objetivos ideológicos. Por isso foi necessário a imaginação épica da construção do império salomônico para dar todo o respaldo aos seus objetivos. Por isso é uma história não bem contada na Bíblia, pois é ideologicamente distorcida, a fim de servir aos interesses de Judá num momento em que o reino da Samaria já não existia mais. Isto até que chegasse o momento em que Judá deixou também de não existir mais. 586 a.C. (Cf.o.c.p.91).

Do lado da arqueologia fica evidente que os monumentos tradicionalmente atribuídos a Salomão fazem parte da lenda. Como vimos, em população e em relevância, Judá era desconhecida dos reis do entorno. Nesse primeiro momento Judá não era ainda reconhecida como Estado. Foi devido a isso que a ideologia posterior de Judá elaborou outros dois mitos, Jeroboão e Roboão como filhos de Salomão para daí construir um Salomão fabuloso e de quebra o mesmo Davi, os quais historicamente teriam sido apenas simples chefes tribais. Nos registros da época não se encontram noticias de Salomão nem do seu reinado. “Salomão não é mencionado em nenhum texto extrabíblico nem do Egito nem da Mesopotâmia” (J.Ademar Kaeffer, o.c.p.56).

Conclusão. A história bíblica é muito intrincada. Este pequeno resumo possa servir para nos alertar sobre as nossas seguranças e nos levar a desconfiar de nossas certezas.

P. Casimiro João        smbn

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segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

TEOLOGIA BÍBLICA E ÁRVORES COMO PRIMEIRO LUGAR DE CULTO NA BÍBLIA


A árvore foi o primeiro lugar de culto na Biblia. A ciência é neutra, e tem que ser neutra para ser ciência. Não que o cientista não seja religioso, mas entrando no campo da ciência tem que entrar num campo neutro. No caso, uma descoberta arqueológica tem o mesmo valor para quem tem religião e para quem não tem religião. Sem ideias preconcebidas. Já por exemplo os autores bíblicos, no seu aspecto histórico, aproveitando memórias do passado, refletem as suas preocupações religiosas e teológicas, de tal maneira que só um estudo científico irá descobrir o que pertence à história e o que pertence à fé. Na verdade, os grandes trabalhos da Bíblia com aparência histórica contêm vários níveis de composição: o passado, a reflexão religiosa e às vezes ainda visam o futuro da escatologia, de modo que geram uma confusão na mente do leitor leigo. O resultado final desse quadro dificilmente se parece com o esquema da própria Bíblia sobre a historicidade de Israel (Cf.Mark Smith, o memorial de Deus, pag38). “A história bíblica construída na Torá e na história do Deuteronômio representa a história nacional fundadora de Israel como refém das condições do presente do povo e de suas esperanças no futuro”. Por isso, “apesar de não ser considerada historicamente inútil, a Bíblia não ocupa mais o lugar privilegiado de ditar as normas para a reconstrução do passado de Israel. O testemunho bíblico é “considerado” e “pesado” com evidências arqueológicas e textos extrabiblicos depois de terem sido avaliados separadamente por seu valor histórico” (o.c.p.35). As fontes disponíveis na Bíblia são principalmente instantâneos do passado por meio de narradores posteriores impondo suas próprias interpretações do passado de Israel sobre estes antigos retratos. Os autores bíblicos, ao escreverem história refletem as preocupações dos seus tempos. O que parece então ser narrativas históricas são respostas atuais aos desafios dos tempos passados. Os escritos bíblicos são então produtos de seus próprios autores em sua própria época refletindo a memória coletiva”.(o.c.p.37). Então, a Bíblia torna-se uma mistura do passado de Israel e das memórias ou reflexões coletivas sobre esse passado.

Vejamos algumas curiosidades sobre o passado de Israel e partindo da árvore que foi o primeiro lugar de adoração, “postes sagrados” ou tocos de plantas. Os antigos tinham no seu imaginário que os deuses moravam nos “lugares altos”, como por exemplo as árvores. Aí eram feitas as celebrações de nascimento, casamento, morte e luto. A essa árvore ou “poste sagrado” era dado o nome de “asherah” que posteriormente virou deusa, “deusa asherah”, a qual depois foi considerada a consorte ou esposa de Javé, quando Javé ganhou o status de deus de Israel, já que o primeiro era o deus “EL, dos edomitas. Cf. o.c.p.61 e 91. Daí partiram para os “lugares altos”, onde eles colocavam a moradia dos deuses, já que os deuses dos edomitas e ugaríticos eram também os deuses de Israel e moravam nos “lugares altos”. Daí vieram as construções dos templos nos lugares altos, às vezes chamados só de “lugares altos”. Daí vieram também as “torres” das igrejas porque Deus só podia habitar nos lugares altos. E daí vieram as lendas da “torre  de Babel” por onde os deuses desciam mas os mortais não podiam subir. Alguns lugares começaram a ganhar mais aglomerações de pessoas: peregrinações” festas do outono, colheitas das frutas e festas das tendas. O chefe do culto era o pai de família, o patriarca. E daí, algum outro ocupava o nome de “homem de deus”, na falta do pai de família, como Samuel e sucessores, que também resolviam problemas sociais e de guerra; foi a origem dos “Juizes” e do livro dos “Juizes”.

Avançando mais na linha do nosso tema sobre a historicidade da Bíblia, grandes narrativas tidas como históricas, veremos que são reflexões do tempo em que foram escritas sobre variações de tempos passados, e tais escritos viraram epopeia. “Não há evidências históricas sobre a historicidade do Êxodo ou algum tipo de historicidade por trás da grande epopeia que foi construída. A narrativa do Êxodo até Números pode conter tradições mais antigas que foram moldadas para responder a questões posteriores. Alguns ancestrais puderam ter andado nessas trilhas mas sem nenhuma escravidão. Não há evidências históricas sobre a historicidade do êxodo ou algum tipo de historicidade por trás da grande epopeia que foi construída (o.c.p.45).

Falemos sobre o politeísmo em Israel. “A realidade mais antiga é que muitas divindades residiam no antigo Israel, o que foi amplamente esquecido” (o.c.p.53). Até porque as falas contra os deuses foram escritas depois que Israel nadava tranquilamente por séculos na convivência com todos os deuses do seu panteão, com deuses superiores e outros inferiores como os “Angeli” (“Anjos”, “mensageiros”) que faziam as ordens dos deuses maiores. Inclusive, com Javé com sua consorte Asherah como falei já. As várias críticas contra os “deuses” dos pagãos são devidas à amnésia coletiva do povo, no dizer do mesmo autor M.Smith: “A amnésia coletiva de Israel sobre os outros deuses, a saber, que muitos destes deuses tinham pertencido primeiramente a Israel ajudou-os a esquecer seu próprio passado politeísta, e portanto serviu para induzir a amnésia coletiva.” (o.c.p.25)

Vejamos várias estratégias da narrativa bíblica. Uma delas é aquela luta contra os vários deuses. Esse politeísmo em que sempre nadaram e mergulharam os judeus inventou a história do “bezerro de ouro”. Essa é uma estratégia do reino do Sul (judá) contra o reino do Norte que também tinha o santuário de Dã e Betel e diziam: “estes também são os deuses que nos tiraram do Egito” (1 R.12,28). E a estratégia da narração foi colocar esta crítica no episódio de Moisés no Sinai, coisa nem pensável naquela época. “A luta contra o ‘bezerro de ouro’ é uma reação contra os santuários da Samaria e foi colocada no relato do Sinai para fazer do Sinai o centro de toda a história bíblica. É portanto uma transposição moral e atemporal. O que vemos em Êx.32,4.8 é uma reação contra os santuários de Samaria no Norte em 1 Reis 12,28” (o.c.p.30 e 63). E o autor citado Mark Smith conclui: “O problema não era o politeísmo mas a competição entre diferentes divindades apoiadas por diferentes santuários. O monoteísmo deles não se originou historicamente no primeiro momento no Sinai com Moisés e a Aliança feita lá”.(o.c.p.86 e p.133). A arqueologia encontrou documentos dos reis babilônicos dizendo: “capturamos os deuses da confiança dos judeus nas suas cidades” (o.c.p.93).

Outra estratégia de como o deus “El” virou Javé para os israelitas foi a lenda de Jacó versus Isaú com a seguinte conotação: Jacó, o filho mais novo de Isaque tomou o lugar do mais velho que era Isaú. Por isso, assim como Isaú, o mais velho perdeu para Jacó, o mais novo, assim “El”, o deus mais velho perdeu para Yahweh, o nome do deus mais novo escolhido agora. (o.c.p.45), Gn.32,23-33). Foi quando Jacó trocou o nome por Israel, que era o mesmo nome da nação “Tu te chamarás Israel”; e de quebra “El” trocou o nome por “Yahweh”, (Gn.cap.32). Este foi o jogo entre os escritores “E” e “J”, isto é a tradição “eloista” e a tradição “javeista”. O livro de Gênesis corrobora isto quando fala que Jacó, no Norte ofereceu sacrifício ao seu deus El: “Aí (em Siquém) fez um altar, que denominou El, o deus de Israel”(Gn.33,20). E tudo isto porque ainda não existiam as inimizades entre Israel e os edomitas como depois aconteceram nas diversas lutas sobretudo quando eles ajudaram os inimigos a derrubar o templo de Jerusalém em 586 a.C.

Sobre Davi: “Os últimos sucessos militares de Davi são descritos em termos adulativos, e mesmo esses sucessos não podem ser defendidos como históricos; as questões de cronologia levantadas pelos arqueólogos e as questões críticas levantadas pelos estudiosos demoliram a visão gloriosa que Davi recebera na tradição religiosa posterior, assim como como suas habilidades são lendárias”(o.c.p. 59). Afinal, reina também entre as mesmas pesquisas que isso á atribuído também a Salomão. Na verdade, “polêmicas reais e apologéticas são frequentemente escritas como fatos históricos, e esta monarquia não deve ter sido tão grande quanto no início se pensou” (Finkenlstein, Mazar e Stager, o.c.p.60). “A história lendária de Salomão são contos populares atribuídos a ele, como as lendas do bebê e as duas prostitutas, e da rainha de Sabá. A própria construção do templo e a figura do templo é mais ideológica do que real, segundo o maior investigador bíblico israelense Finkenlstein, pois nas escavações arqueológicas não se encontram sinais evidentes do seu tamanho. (id. pp.61ss.).

Conclusão. A Bíblia é composta de edições e reedições, e cada época de uma reedição tinha novas versões sobre os mesmos fatos e novas ideologias e defender. E, como disse, pertence à investigação e erudição científica destrinchar e avaliar; é o que a gente tem que ir aprendendo e não ficar sempre pensando as mesmices de que tudo era como antigamente.

P.Casimiro João   smbn

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segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Quem eram os “servos inúteis” do evangelho


 

Uma certa vez, no evangelho de Lucas, encontramos esta expressão: “Assim também vós, quando tiverdes feito tudo o que vos mandaram, dizei: ‘somos servos inúteis’, fizemos o que devíamos fazer” (Lc. 17,10).

Em primeiro lugar, a quem era dirigida esta palavra? A uma autoridade? A um sumo sacerdote? A um doutor da lei? Ou a um governador? Não? Era a um trabalhador manual ou rural, talvez um escravo. Na época do colonialismo era assim que tratavam os colonos, mas ninguém diria isso a um “europeu”. Infelizmente seguimos muito os vícios da antiga Grécia e Judeia neste campo. Os antigos gregos seguiam a filosofia de Platão segundo a qual as ideias moravam no Olimpo celeste, e eram separadas da matéria da terra. E havia uma parte da humanidade que se devia dedicar ao estudo das ideias. Esta classe de pessoas não podia se ocupar com trabalhos manuais e do campo. E deviam ter uma formação adequada de estudo, ou “skolé”, donde deriva a nossa palavra Escola. Esta era a filosofia de Platão e Aristóteles. A outra classe de pessoas era dos trabalhadores rurais. Eles não estudavam e tinham que produzir os bens para aqueles primeiros. Já para Homero e Hesíodo, o trabalho era um castigo que Zeus impôs aos homens, coisa semelhante ao que encontramos no Gênesis.

Entre os romanos havia os cidadãos livres e os não livres, estes que tinham sido derrotados nas guerras e faziam os trabalhos servis, isto é de servos e escravos. E havia os detentores dos direitos de propriedades e os que trabalhavam nelas sem nenhum direito. Os donos de propriedades tinham todos os direitos perante os servos. Os servos eram desprovidos de todos os direitos e de personalidade jurídica.

Em consequência temos que olhar portanto as categorias sociais da época.: “servo inútil” seria igual a animal de carga, que você pode espancar para andar, trabalhar, pode maltratar, berrar com ele; se ele morrer tem logo outro animal. Por isso o trabalhador só tem que comer para entrar logo no trabalho, como se fazia com qualquer animal. Daí que esse desprezo de “servo inútil” significa isso, e não vamos pensar que será um discurso de Jesus mas uma composição da época usando as mesmas categorias sociais da época. Estamos longe ainda da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1949 e dos direitos sociais dos trabalhadores que foram se desenvolvendo do séc.XVIII em diante até chegar aos nossos dias. Já vimos noutro BLOG como a própria Igreja, durante muito tempo foi conivente com a situação de opressão, finalmente despertando e reagindo com a publicação das Encíclicas Sociais. (www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br 01/01/23), e no Brasil com as SEMANAS SOCIAIS.

Aqui no Brasil, a primeira vez que se falou nos direitos dos trabalhadores foi na Constituição de Getúlio Vargas, de 1934, onde foi instituído pela primeira vez o salário mínimo, 08 horas de jornada de trabalho, e a organização do trabalho de mulheres e crianças, muito requisitadas pela indústria porque eram mais baratas. E solidificaram-se e aperfeiçoaram-se mais os direitos trabalhistas com a famosa CLT, Consolidação das Leis de trabalho de 1943.

Conclusão. “Somos servos inúteis” portanto é uma daquelas sentenças que passaram de prazo de época de validade e não dá para alguém se aplicar a si  com aquela iludida “humildade” que se julgaria “evangélica”. Pelo contrário é falsamente evangélica porque uma diminuição do ser humano. Tudo que é contra o ser humano é anti-evangélico. E contra toda a mentalidade de Jesus que disse: “Eu não lhes chamo de servos mas amigos” (Jo.15,15).

P.Casimiro João     smbn

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segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

TEOLOGIA BÍBLICA E SEUS DESAFIOS


 

Há duas ordens de conhecimento: o saber da fé e o saber da razão.(G.Sp, 59). O saber da fé baseia-se no testemunho de experiências religiosas confiáveis de primeiros fãs de Deus que tiveram a capacidade de transmiti-las com sua vida e suas comunicações verbais. O saber da ciência baseia-se em métodos de investigação empírica, matemática e histórica. Na Grécia antiga, Platão considerava o corpo como prisão da ama; a vida espiritual tinha como meta a libertação da alma. Para Platão e Plotino o mundo material era apenas uma sombra. A verdadeira realidade era o “mundo espiritual”.  Digamos já de início que Platão cortava toda a possibilidade de acreditar na ciência e nos seus métodos, para ele só havia o valor da “experiência religiosa”, uma vez que o “mundo material” era “uma sombra”, e a verdadeira realidade era o “mundo espiritual”. Ainda faz parte do imaginário de 90% por cento de cristãos este espectro da mente humana que veio desses primeiros pensadores gregos. Entre cardeais, bispos, sacerdotes, religiosos, religiosas e fiéis de ambos os gêneros. Do Antigo Testamento e do Novo Testamento. E essa era a eclesiologia dominante antes do vaticano II, época da cristandade, jurisdicista e triunfalista. Quando o século 19 teve um despertar deste imaginário milenar para restabelecer o valor do mundo material, a voz da Igreja, pela voz do Papa Pio IX promulgou o Syllabus, condenando todas as novas filosofias que começavam a pulular, se afastando do tal Platão e Plotino. Aquelas raízes da filosofia de Platão e Plotino criavam uma separação escandalosa entre corpo x alma; terra x céu; mundo x Igreja; profano x sagrado; natureza x graça. O vaticano II abandonou essa postura para afirmar que Deus e o mundo não são rivais, mas o mundo é obra de Deus, ele é constitutivo da Igreja e do cristão. Isto leva ao problema candente sempre atual, queiramos ou não, do binômio fé e ciência, teologia e razão.

A teologia é um serviço à fé e uma instância crítica necessária para evitar que a prática religiosa degenere em fideismo, fundamentalismo e fanatismo. Justamente as três coisas que estão incluídas no imaginário do mundo recebido de Platão, como o “corpo prisão da alma”, e o mundo “material” como uma “sombra”, e a “vida espiritual” como a “verdadeira realidade” donde, dessas três raízes, se gera o tal fideísmo, fundamentalismo e o fanatismo. É aí que entra a teologia. A teologia vem dar o entendimento entre o mundo da ciência e o mundo da fé. Os dois campos têm suas atribuições e seus limites. O mal que havia nos postulados dos primeiros ditados do tal Platão era que o estudo do espiritual devida abranger, regular, organizar e dominar o estudo do mundo da matéria. Veio daí que a ciência tinha que ser escrava da fé, porque o mundo material era apenas “uma sombra” e a vida espiritual “tinha como tarefa libertar a alma”. Estava feita a plataforma para que a fé dominasse a ciência, e que sempre a fé tivesse a última palavra, aumentando o desprestigio da Igreja como aconteceu com a publicação da encíclica “Humanae Vitae” de Pio XII. E assim sucedeu em toda a Idade Média e Antiga, até o despertar de novo mundo e um novo modo de entender o mundo e a fé. Foi aí, no séc.19, quo Pio IX se apavorou e pôs a Igreja em pé de guerra contra a ciência. Foi nessa época que a ciência se independenciou da fé e que os cientistas fizeram a seguinte afirmação quando perderam a paciência vendo que a Igreja teimava sempre em se imiscuir em todos os caminhos da ciência, e colocava a ciência numa camisa de forças: Quanto maior a fé, menor a ciência, e vice-versa” (Dawkins). Nessa época a fé passava a ser vista como um estágio a ser superado pela ciência, no dizer de Augusto Comte, porque só atrapalhava a progresso da sociedade. Na verdade nesta época e depois de Galileu Galilei não só se passou a questionar a autoridade da Igreja mas a própria existência de Deus. Se uma Igreja assim era o caminho para chegar a Deus, esse caminho não levava a Deus nenhum e era melhor ficar sem a Igreja e seu Deus. Os cientistas dispensaram a hipótese de Deus ao mesmo tempo que  dispensaram a intervenção da Igreja. Vejamos alguns passos da ciência nos últimos séculos: 1642 a máquina de calcular por Blaise Pascal; 1897 a telegrafia sem fio, por Morse; 1902 o rádio; 1925 a TV; 1934 o radar; 1964 o laser e calculadoras eletrônicas; 1967, primeiro transplante de coração; 1972, inicio da engenharia genétia por Herbert Boyer e Stanley Cohen; 1957 lançamento do primeiro satélite não tripulado em volta da terra; 1960, os foguetes teleguiados; 1961, a primeira viagem tripulada em volta da terra; 1968, a primeira viagem tripulada em redor da lua; 1969, a primeira alunissagem feita pelo homem; 1942, a energia nuclear; DNA, em 1953 por Francis Crick.

A Igreja, em todos os tempos reivindicava para si o direito de sentenciar sobre verdade e falsidade da pesquisa científica. E a marcha vitoriosa da ciência foi por isso erroneamente interpretada como derrota da crença em Deus. Mesmo que agora vá respeitando paulatinamente o direito inalienável da ciência, mesmo assim fica sempre uma tradição de se expressar nas categorias da metafisica medieval estranhas à cultura contemporânea determinada pela moderna tecnologia. Na verdade, todos os conceitos ou imagens de Deus, por mais adequados que nos pareçam, não são Deus”.  Santo Anselmo de Cantuária dizia que Deus é sempre maior pois não cabe em categorias filosóficas ou científicas. (Cf. Cf.Urbano Zilles, Desafios atuais para a Teologia, pag.29).  A Igreja nunca se libertou desse medo histórico e inconsciente da ciência, como também nunca se libertou da ambição inconsciente de querer “controlar” a ciência e os avanços científicos. Por isso já se criou o jargão que a “Igreja anda 500 anos atrasada”. E as boas consciências atribuem isso à “sabedoria da Igreja”, para não dizer que essa sabedoria é inércia, medo e paralisia.

Conclusão. À guisa de conclusão podemos resumir a relação entre razão e fé nos seguintes itens: 1) A fé e a razão são diferentes modos de conhecer; 2) A fé e a razão não se podem contradizer porque o autor de ambos é  Deus; 3) No homem que se abre à experiência religiosa Deus se revela e o capacita para que possa ser um elo de transmissão para outros humanos, tendo em vista tanto em Israel como na revelação cósmica; 4) A razão exerce papel fundamental na formulação da fé tanto nos preâmbulos como para ilustrar por meio de comparação semelhanças e dessemelhanças. (Cf.o.c.p.82)

P.Casimiro João    smbn

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segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

O matrimônio um palco; o mundo um palco.


 

“Este mundo é um palco, cada individuo cumpre o seu ato e dá a continuação do drama a outros indivíduos. É o todo que é o drama. Os indivíduos, na verdade, depois de cumprir seu papel aqui, não saem de um drama, que no seu conjunto continua a marchar sem fim e, por assim dizer, em um palco firmemente montado continuam sempre dando a outros indivíduos espirituais a possibilidade da apresentar o seu ato” (K.Rahner, Curso fundamental da fé, p.514).

Este trecho leva-nos a pensar na questão do cristão perante o pluralismo da existência humana. Na 1ª Carta de Paulo aos coríntios ele limita a vida do homem cristão e da mulher cristã ao “sagrado” e ao “profano”: “Meus irmãos, eu gostaria que estivésseis livres de preocupações. O homem não casado é solícito pelas coisas do Senhor e procura agradar ao Senhor. O casado preocupa-se com as coisas do mundo e procura agradar à sua mulher e assim está dividido. Do mesmo modo a mulher não casada tem zelo pelas coisas do Senhor e procura ser santa de corpo e espírito. Mas a que se casou preocupa-se com as coisas do mundo e procura agradar ao seu marido”.(1Cor.7,32-34).Esta reflexão de Paulo é fruto do dualismo da sua época que separava Deus e o mundo, Deus e marido, Deus e esposa, espírito e corpo como coisas opostas e proibidas, filosofia e antropologia agora fora de época e que perdeu a validade de prazo. Ele louvava a mulher solteira pelo fato de estar “livre”para servir o Senhor, como se o Senhor fosse inimigo do “mundo” e do “marido”, e vice-versa o homem solteiro, como se o Senhor fosse inimigo do “mundo” e da “mulher”. Enquanto que existe uma unidade: servir o marido e servir o “mundo” aí se serve ao mesmo tempo o Senhor, como uma medalha com verso e reverso. Quem quisesse usar esses versículos para uma pastoral familiar e tomasse à letra poderia cair numa grande alienação e alienar o auditório. É por isso que a Bíblia cria muitas armadilhas e pode iludir muita gente. Na verdade, o homem cristão e a mulher cristã são confrontados com o pluralismo da vida, com uma vida plural, e nessa pluralidade devem realizar a unidade do seu entendimento e do seu agir, e não devem cair na tentação de querer agir como uma barata correndo em todas as direções sem encontrar um rumo de uma unidade: “onde eu encontro Deus se eu tenho que dar conta do meu balcão? e dos meus relacionamentos com agnósticos, com ateus, e com gente que faz assédios? e dar conta do meu namoro, e dos meus relacionamentos com o marido? e logo depois como posso encarar a igreja, a missa e as tarefas dos meus compromissos religiosos?...”

Na verdade, o cristão tem o direito e o dever de se entregar tranquilamente e cheio de confiança ao pluralismo de sua própria existência. “E de experimentar o amor e a morte, o ódio e a ternura, sucesso e desilusão. E no meio de tudo isso, cheio de confiança, deixar-se interpelar pelo próprio Deus que quis este pluralismo do seu mundo a fim de que o homem faça ideia de que tudo isso está envolvido pelo mistério eterno. E algumas vezes o homem cristão e a mulher cristã tem que contar com uma realidade plural obscura, cheia de trevas e incompreensível” (o.c.p.421), onde terão ocasião de exercitar a calma e o discernimento do seu espírito. O cristão é o que aceita tranquilamente a diferença entre o que somos e o que devemos ser, como tarefa. E nisto supõe a relatividade do presente. E estará habilitado a dizer um “não” a alguma coisa e um “sim” a outra coisa.

Esta diferença faz parte do palco da vida humana e coloca o cristão em pé diante dela. Precisamente o homem cristão e a mulher cristã aceitarão tranquilamente este palco da vida, ou seja, a distância entre o que somos e o que devemos ser; assim como vemos o mundo como é e como devia ser e tomar uma atitude de “aceitar-se”. Aceitar-se quando erramos e aceitar-se quando acertamos, sabendo de antemão que nem sempre vamos acertar. É maravilhosamente confortante fazer a cabeça pensando que não se é perfeito. E ainda mais cultivando a resiliência e a predisposição para prosseguir mais alto.

O homem cristão e a mulher cristã saem sempre de sua própria falha e se voltam para o que lhe está adiante. Na incompreensibilidade de sua liberdade por vezes cheia de trevas e escuridão sabem-se continuamente envolvidos pela graça de Deus e que sempre devem refugiar-se nessa graça. E são sempre aqueles que jamais fazem cálculos perante Deus mas, pelo contrário, entregam a Deus e à sua graça todo cálculo, todo esforço moral, uma vez mais sem a pretensão de fazer contas perante Deus” (o.c.p.475). Deste modo avaliamos aquela teologia de que falamos embasada numa cosmologia tradicional e fora de validade de prazo. Para manter seu otimismo, o homem cristão e a mulher cristã poderão afirmar em sua fé cristã e na esperança coletiva a ela vinculada que o mundo no seu conjunto está salvo, que o drama da história da salvação terá em seu conjunto êxito positivo, que Deus já superou por Jesus Cristo crucificado e ressuscitado o “não” dito pelo mundo com o pecado” (o.c.p.479).

Conclusão. K.Rahner encerra o seu livro “Curso fundamental da fé” com o dito que formou o título desta matéria, “Este mundo é um palco”. E o cantor Francisco Marinho, natural de Chapadinha tem um título “A vida é um show: eu sou o palco e a vida é o show”. Vejamos mais algo da letra do hino: “O ar que eu respiro faz parte do show, e os instrumentos que tocam é a paz e o amor; Jesus é o artista; eu sou o palco e a vida é um show. Respeitar a vida é simples assim: saber dar valor à arte e à cultura: viver o amor. É deixar o amor tomar conta de ti: a vida é um show. A vida é dez e até mais de cem: a vida é uma festa e não tem pra ninguém: a vida é linda, a vida é um show”. Para ouvir digite o site: (www.franciscomarinhoreligiao).

P.Casimiro João             smbn

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