sábado, 30 de dezembro de 2023

As novidades da Casa de Nazaré.


 

Eu suponho que quando um par de jovens junta a sua vida para formar uma família, a maior preocupação surge logo: e agora: o filho chegou, como educar esta criança? Deve ter pais que levam uma bagagem de conhecimentos, mas deve ter outros com muitos receios, como marinheiros de primeira viagem. 

 Augusto Cury dá algumas dicas: “educadores que querem controlar tudo na educação dos filhos acabam transmitindo o que mais detestam, a insegurança e o medo. A culpa excessiva esmaga a lucidez, e o desespero esfacela o prazer de viver, Quem não corre riscos está inapto para educar”.(Augusto Cury, Maria a maior Educadora da História, p.16).

Desde que recebeu o convite para conceber o menino Jesus, o mundo da jovem Maria de Nazaré virou do avesso. Ela estava só. A não ser seu futuro marido, ninguém poderia oferecer-lhe o ombro para chorar. Tinha que usar suas lágrimas para irrigar a serenidade e se conhecer para não entrar em desespero. A jovem mãe do menino  Jesus viveu uma vida pautada por fatos imprevisíveis. “Educar é caminhar sem ter a certeza de onde se vai chegar” (A.Cury, p.17).

Maria devia ser ótima contadora de histórias. Contava não apenas a sua história, mas a história do seu povo e dos personagens que o marcaram. O pequeno Jesus devia colocar as mãos sobre  a mesa que seu pai havia feito e ouvir prolongadamente a sua mãe. Jesus também leu o mundo e com sua mãe ia entendendo os seus problemas.(o.c.p.160).

“Maria falava das suas lágrimas para Jesus, dos seus temores, dos seus sonhos. Muitos pais trabalham arduamente para deixar uma herança para seus filhos, mas se esquecem de que o maior tesouro que eles podem dar é o seu próprio ser. Muitos lutam para que seus filhos tenham um diploma, mas não batalham para que eles aprendam a viver.” (o.c.p.156). Como sábia contadora de histórias, Maria contava a historia de sua vida, e os seus conflitos. Os educadores aconselham isso. Como instruir os filhos a lidar com os seus conflitos, se nos calamos sobre os nossos? Treinamos para realizar tarefas, fazer provas, praticar esportes, dirigir carros, lidar com a conta no Banco, mas não para falar de nós mesmos. Essa é uma das mais graves e absurdas contradições humanas. “Somos especialistas em maquiar o que somos” (A.Cury, p. 163).

Para muitos perfeccionistas vale também esta assertiva: Quem é plenamente saudável? Somos todos imperfeitos, mas sentimos a necessidade neurótica de ser perfeitos. Para Jesus somente é grande quem enxerga sua pequenez, somente é saudável quem assume sua doença. Mais que disciplinar, falar com segurança, colocar limites, devemos encantar nossos filhos com o filme de nossa existência” A.Cury, p.101).

Um olhar sobre a família de Nazaré nos dá outra lição. Jesus entendeu que não há quem torne os outros infelizes se primeiro não está machucado (lei da psicologia social tal como a lei da gravidade). O que leva ao seguinte esclarecimento: por trás de uma pessoa que fere há sempre uma pessoa ferida. (A.Cury, p.106). É por isso que Jesus se treinou para perdoar e falar sobre o perdão. O perdão será uma utopia se não compreendermos o outro na sua dimensão interior. Perdoar não é um ato coitadista, mas de elevada inteligência. Muitas pessoas montaram um departamento de cobrança em suas casas, são especialistas não em se amar, mas em se cobrar. E especialistas em exigir o que não podem dar. Jesus era especialista em se doar, e mais especialista ainda em não querer dos outros a mesma resposta. Esperava ser amado, mas não esperava ansiosamente o retorno. Era o segredo do seu equilíbrio emocional. Este é o segredo do equilíbrio emocional de nossa vida. E uma das maiores lições da Casa de Nazaré. (A.Cury,p.165).

Conclusão. Sem comentários, temos aqui em curtas frases muito da intuição e do estudo de Augusto Cury. Na verdade, só as mulheres podem dar uma nova face ao mundo. “Uma mãe fascinante como Maria com um braço ela segura o filho, com o outro muda a Historia” (p.147). Para encerrar esta página, A.Cury arrisca ainda uma afirmação inédita e inteligente: “Se num determinado momento as mulheres ocupassem as funções dos homens e os homens as das mulheres, é provável que 90% da corrupção, da discriminação, dos assassinatos, dos atos terroristas, dos conflitos internacionais, seriam eliminados em pouco tempo” (o.c.p.178). “Os homens sempre foram o sexo frágil, pois só os frágeis usam a força. As mulheres sempre usaram mais as ideias e a sensibilidade” (o.c.p18).

P.Casimiro João     smbn

www.paroquiadechapadinha.blogspot.combr

 

 

domingo, 24 de dezembro de 2023

Fé bíblica e fé atualizada – Advento, Natal, Anunciação


 

A Pontifícia Comissão Bíblica em 1993 declarou para toda a Igreja e para toda a humanidade que na Bíblia as palavras não são ”palavra por palavra palavra de Deus” (n.40). Temos muitos exemplos de autores bíblicos que nos divertem com “contos” como o conto ou novela de Jonas; o conto ou novela de Sansão (Jz.cap.13 segs); o livro de Jó que é uma reflexão sobre a sabedoria; o livro de Gênesis, só para trazer alguns exemplos. Inclusive os 30 capítulos do livro dos Provérbios vêm de livros mais antigos de provérbios, o livro dos provérbios de Amenenope (cf.A.Raymond, 2011,p.175-180). E também profetas copiaram a profissão e arte da profecia de antigos profetas sumérios, mesopotâmios, zoroastros, persas e babilônicos. Há uma confusão entre “fé bíblica” e fé atualizada. O teólogo K.Rahner  diz que existe a “fé irrefletida e a fé refletida”(Curso Fundamental da Fé, p.340).(www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br 23/4/23). Se falarmos em fé bíblica teremos que afirmar que o mundo foi feito em 6 dias; que a serpente “falava”; que “Adão e Eva” eram figuras reais; que não houve evolução das espécies; que a burra de Balaão falou; que Jonas esteve 3 dias na barriga da baleia; que o sol parou com uma ordem de Josué, e por ai adiante.

A mesma Comissão Bíblica Pontifícia também alertou para o fundamentalismo “que tem a tendência a uma grande estreiteza de visão, pois ele considera conforme à realidade uma antiga cosmologia já ultrapassada só porque vem na Bíblia. A necessidade de uma hermenêutica, isto é, de uma interpretação no hoje do nosso mundo encontra um fundamento na própria Bíblia e na história da sua interpretação. E ainda avança: Os textos da Bíblia são a expressão de tradições religiosas que existiam antes deles”. Por isso é que a nossa fé não pode ser a dos tempos bíblicos, nem como foi na Idade Média, nem a fé de Agostinho que botava as crianças sem batismo no inferno, e como a fé de São Cipriano e do concílio de Cartago para os quais ”fora da Igreja não havia salvação” (conc. de Cartago, séc.III; IV conc. de Latrão, séc. XIII e de Florença, séc.XV).

Por outro lado, além de sabermos que muitos artigos de fé da Bíblia dos judeus são devedores à fé dos sumérios e babilônicos, como o trinômio céu, inferno, purgatório, também sabemos que a ressurreição não pertencia à fé da Bíblia antes do profeta Daniel que escreveu no século dois a.C. E que mesmo assim o partido dos Saduceus nunca aceitou que há “ressurreição, nem Anjos nem espíritos”(At.23,8). E também sabemos que muitas coisas do Antigo Testamento foram passadas para o Novo Testamento, tipo esquemas ou “formatos” de histórias de vocações de heróis importantes e de Nascimentos. Um exemplo é o anúncio e o nascimento de Sansão, o “conto” ou lenda que já falei, além de outros. Nesses formatos havia os seguintes itens iguais para todos: Estéreis e (ou) idosas; anjos; gravidez de estéril ou velha; medo; não beber bebidas alcoólicas; a cria seria consagrada desde o ventre materno. Compare esse formato do A.T. (Jz.13) com o anúncio do Nascimento feito a Zacarias: Estéreis e idosos; não tinham filhos; anjo; medo e perturbação; não beberá álcool; consagração desde o ventre. (Lc.1,5-26) e com o anúncio feito a Maria e encontrará os mesmos elementos. Devido a isso os estudiosos dizem que o anúncio a Maria faz parte do Antigo Testamento, ou seja, o evangelho de Lucas foi buscar o esquema no A.T. Desta maneira os estudiosos dizem que o evangelho de Lucas se divide em três seções, a primeira a seção do Antigo Testamento; a segunda o tempo de Jesus; a terceira o tempo da Igreja. (Cf. Eugene Boring, Comentário ao Novo Testamento vol.II, p.1055). Isto porquê? Porque para o anúncio do Nascimento, Lucas foi buscar os esquemas ou formatos do A.T. E isso não pertence à vida de Cristo, que inicia com o Batismo, como afirmei.

Os teólogos nos previnem que os evangelhos não são geográficos, nem históricos, mas teológicos. Isto é, se há Anjos ou não, não vem ao caso, o que importa é a mensagem. Se a narrativa aconteceu daquele jeito como vem escrita não vem ao caso. A este respeito, a Igreja passou por várias teologias, e algumas foram deixadas para trás, como a primitiva teologia de Santo Agostinho que afirmava que crianças não batizadas não iam para o céu. Outra, a afirmação teológica que “fora da Igreja não há salvação” como definiram os concílios de Cartago e Florença e IV de Latrão, entre outras. Atendendo a este processo sabemos que entre os evangelistas, cada um tinha que defender uma posição ou teologia reinante em sua comunidade e foi assim que escreveram os evangelhos.

Numa coisa os evangelhos são unânimes tanto os sinóticos como o IV evangelho: descrever o início da vida e atividade de Jesus com o batismo por João Batista. Porém com o seguinte detalhe: somente Marcos começa direto “naqueles dias Jesus, veio de Nazaré, da Galileia e foi batizado por João”(Mc.1,9). Os outros trazem um Prefácio, ou Prólogo, onde dizem a crença ou mensagem que vão expor. Assim tem o prólogo de João, de Mateus e de Lucas. Ontem fiquei pensando que se não fosse São Lucas não teríamos o imaginário do Natal, e se não fosse São Francisco não teríamos o presépio.

Conclusão. Do que fica dito vamos reter o seguinte: Nesses anúncios todos e no anúncio a Maria não é para ver como é que foi mas para ver em que a Igreja acreditava. E isso era a “teologia” ou a “mensagem” a transmitir. FELIZ NATAL.

P.Casimiro João      smbn

www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br

 

 

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

A TECNOCIÊNCIA E A MORAL


 A natureza é imutável? Cadê o motor imóvel? Ou a evolução de Charles Darwin? Cadê a era industrial? Me disseram que não se pode mexer com a natureza, mas a natureza mexe com a gente. Porém a natureza toma outras roupagens conforme as épocas.

Dizer “segundo a natureza” já não é a mesma coisa de há 2000 anos ou de 1000 anos atrás, porque a natureza se tornou por sua vez incerta, e insegura de si mesma e sujeita a ser “corrigida” pelo homem. Veja a correção dos hormônios e os transplantes de coração. Veja a seleção de embriões. A Igreja fala que isso é perigoso porque é criar super-homens artificialmente. A resposta é fácil: e quando ela cria espontaneamente gigantes e super-homens? A diferença está na frequência modificada pela técnica. E quando o Faustão ganhou o coração de um doador? Não houve receios de quê? E o que falar dos super-homens e supermulheres que estão sendo programados para ser gerados para a Lua e mais espaços? Onde funciona a natureza aí?

Natureza versus moral. A moral diz “não matar”. Porém na Inquisição a Igreja passou por cima da moral e inventou junto com a monarquia a técnica da “sobrevivência da fé”, ou o “princípio pragmático” de Gianni Vattimo, e a “caça às bruxas” que eram conduzidas à fogueira e ao extermínio.  E assim matavam e queimavam quem se desviasse da fé. A Igreja não pode se queixar se vir que a técnica hoje já resolveu a seu modo o problema da convivência entre os homens com mais sucesso do que tenham alcançado todas aa morais que se sucederam na história” (Cf. Umberto Galimberti, “Rastros do sagrado”, pg.363). Assim, ao lado da moral funcionam também as normas da técnica, chamadas também como “regras da arte” segundo as quais cada um deverá fazer da melhor maneira possível o que escolheu fazer, gerir com competência e rigor a função a que foi chamado. Chega-se assim a dizer que as “morais profissionais ou técnicas” não são um indicio de amoralidade mas o sinal da progressiva ocupação da técnica de um espaço que lhe concede a moral” (o.c.p.364).

Este aporema é sobremaneira oportuno e urgente, de tal maneira que o autor citado nos adverte ainda: “Neste ponto é importante evitar o problema relativo ao modo como configurar-se a moral na idade da técnica, e para enfrentá-lo é preciso antes de mais nada acabar com as falsas inocências, e com as fábulas da ciência neutra que opera apenas os meios que depois as decisões dos homens optam por empregar ou bem  ou mal. A ciência não é neutra porque cria um mundo com determinadas coordenadas que nós não podemos deixar de habitar e, habitando-as adquirimos hábitos e costumes”. Veja bem o que mudou: antigamente o chinelo, o sapato, o lápis e o relógio faziam parte dos pertences e das viagens do homem, como a bengala do cego e as muletas do acidentado. Hoje em dia é o celular, o Laptot, o fone de ouvidos, a máscara dos olhos e a mala de bordo. A tecnociência é o nosso mundo. Não somos seres imaculados e estranhos que por vezes nos servimos da ciência e da técnica. Habitamos um mundo já organizado cientificamente e tecnicamente. Não é uma escolha nossa, é o nosso ambiente onde vícios e virtudes, condutas e paixões, sonhos e desejos são cientifica e tecnicamente estruturados. (cf. o.c.p.364).

Esta é uma realidade a que o ser humano atual não pode furtar-se. E no caso de alguém entender que pode sobreviver recorrendo às épocas “daqueles tempos” de quando “no meu tempo não era assim”, estaria fabricando para si um ser mitológico que andou neste planeta há cem anos, mas que agora não anda mais. Nesses tempos era um mundo terraplanista, hoje não é mais. A isto junte-se a consideração que há 100 anos o mundo era um mundo rural, a cidade era uma exceção para poucos. Hoje porém a cidade se estende até os confins da terra. A “natureza” era o que enchia a vista e o imaginário desse tempo. Antes a “natureza era o largo horizonte sem fim. Hoje a velha natureza vive-se na cidade, isto é, a cidade tomou o lugar da natureza, de tal modo que muitas pessoas só conhecem alguma partezinha da “natureza” pela televisão.

Conclusão. Podemos dizer que o ser humano de há 100 anos tinha os braços, pernas, cérebro e o coração da natureza. Hoje braços, pernas, cérebro e coração são tomados pela técnica. Pense numa grande fábrica chinesa ou em São Paulo em que os braços, pernas e cérebro são de mais de 100 robôs comandados pela inteligência artificial. Apenas três ou quatro humanos de mistura estão lá também, confundindo-se com todos aqueles seres em movimento constante. Aí um leigo muito histórico e empacotado na sua roupagem meio aristocrática pode olhar aquelas figuras impecáveis e automatizadas e se perguntar: Cadê a natureza e a técnica? Cadê a moral na era da técnica? Ainda tem um motor imóvel? Cadê a era industrial de há 100 anos quando os primeiros carros e trens e barcos começaram a ser movidos pelo carvão e o vapor de água? Que época estamos vivendo?

P.Casimiro João smbn

www.paroquiadechapadinha.blgspot.com.br

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Mantos dourados do passado, ou viver o novo?


 

Para quem se sentir sem chão ao ler esta matéria, pode reavaliar seu pensamento sobre a dúvida da fé com a seguinte afirmação de Umberto Galimberti: “Aqui concordam Paulo, Agostinho e Tomás: ‘Não existe uma fé que não seja acompanhada pela disposição da dúvida” (Umberto Galimberti, “Rostos do Sagrado”, pag.333, cf.Tomás de Aquino, Suma Teologica, Questio de fide, quest.I,tr.it, Compêndio de Teologia, Marietti, Turim, 165).

É nesta disposição da dúvida que se baseia a teologia. Percorrendo a Historia vemos que a caminhada tem sido uma interrogação constante. Formaram-se vários sistemas filosóficos e a teologia ia-se apoiando ora num ora noutro. E formaram-se correntes teológicas cada uma respondendo de sua maneira a várias questões, resultando em várias aporias. Concilios e mais concílios foram convocados para debates que se seguiam. Dogmas e mais dogmas foram sendo forjados para tentar barrar mais perguntas a assuntos que ficavam sem respostas. E os autores hoje em dia têm a consciência de que os dogmas, igual a Sagrada Escritura têm a sua consistência na contingência histórica e cultural da sua época em que foram redigidos. “A mesma batalha tem de ser vencida em relação aos dogmas, onde mais uma vez a revelação divina foi expressa por homens” (Raymond Brown, Biblical Reflections on Crises Facing the Church,, London, 1975, p.116). Nesta disposição, vou fazer bastantes citações do Livro “O Católico de Amanhã”, da Paulus,2013, que pode ser considerado uma Introdução à Teologia para os dias de hoje. “Dentro do cristianismo, agnósticos escreveram suas próprias escrituras, inclusive evangelhos, confiavam em suas experiências e seu conhecimento religioso e em geral resistiam a quaisquer exigências da autoridade concernentes ao “verdadeiro” ensinamento. Sua visão do mundo era muito complexa: a matéria era má e Deus estava distante. Selecionavam do pensamento cristão o que se adequava às suas ideias sobre a maneira como a realidade se ligava ao divino. Em especial, dentro do cristianismo, alguns aspectos do gnosticismo encontravam base comum com especulação fundamentada no pensamento judaico: especulação sobre Adão e Eva; o papel da Sabedoria celeste vindo esclarecer os seres humanos perdidos na escuridão; e a criação de rituais batismais como meio de incorporar os seres humanos a uma nova raça celeste livre das restrições deste mundo” (Pheme Perkins). Walter Kasper, bispo e teólogo alemão diz: “A primeira fase no desenvolvimento da doutrina da Trindade ocorreu no conflito com o gnosticismo”. A narrativa mítica de Adão e Eva desempenhou papel fundamental nesse desenvolvimento. Significava, para eles, que Jesus era interpretado no contexto de um modelo de raça caída que precisava ser salva. Como já vimos, essa visão do mundo realçava o fato de nós, seres humanos, não podermos salvar a nós mesmos e obter entrada no céu. A ênfase na dignidade de Jesus e as perguntas complexas que levantou ofuscaram a realidade humana de Jesus. Consequentemente, herdamos uma longa tradição suspeita quanto a falar de Jesus como humano semelhante a nós (por exemplo era limitado; ele não sabia tudo). Esse entendimento teológico desenvolveu-se em grande parte de acordo com padrões do pensamento grego. Do pensamento grego os teólogos da Igreja primitiva criaram um entendimento de Jesus como o Verbo preexistente que tinha estado com Deus e que desceu ao nosso mundo, como se Deus estivesse em outro lugar lá nas nuvens e viesse desse lugar passar algum tempo conosco. Do pensamento grego desenvolveu-se o entendimento de duas naturezas unidas em uma única pessoa. E da mesma filosofia grega desenvolveu-se a solução para a questão teológica mais incômoda a respeito de Jesus – seu relacionamento com o Deus Único da religião judaica. Assim surgiu a doutrina da Trindade. Entretanto, a Igreja cristã ficou irrevogavelmente dividida quanto ao que significava a expressão “da mesma natureza”. O Concílio de Calcedônia definiu o que os cristãos devem crer, mas em uma estimativa em que 99,99% por cento dos cristãos nos séculos que se seguiram não tinham e agora não têm nenhum entendimento dessas palavras. Ao mesmo tempo foi uma época de interferência e até domínio pelos imperadores, e de personalidades interessadas e preocupadas em antagonismo rancoroso e lutas entre bispados importantes. Termos técnicos sem origens bíblicas transformaram-se em palavras-chave em respeitadas declarações de crença. Seu emprego fez com que o Ocidente e o Oriente entendessem mal e dessem uma ideia falsa um ao outro. Doutrinas sobre Jesus, desenvolvidas dentro do contexto de um determinado tempo e cultura, em um entendimento literalista da Queda, uma visão religiosa do mundo que entendia estar Deus distante de nós e a necessidade de Jesus ser uma figura de Deus para sermos realmente salvos passaram a ser consideradas imutáveis. Devemos continuar a contar uma história de nós mesmos em relacionamento com Deus que nos vê primordialmente como uma “raça caída”? Tem um Deus masculino, localizado, que reage e nos deixa de fora, depois envia seu filho que caminha nesta Terra conhecendo o “plano eterno”? e depois faz esse seu Filho ter morte terrível planejada com antecedência, para podermos ser reconduzidos à amizade com esse Deus? Vamos continuar a citar a Escritura para apoiar essa história sem qualquer referência à visão do mundo e aos padrões de pensamento nos quais os autores e editores bíblicos operaram?”(Michael Morwood, O Católico de Amanhã” Paulus, 2013, p.68-73). Em páginas anteriores falei no comunicado da Pontifícia Comissão Bíblica que já em 1993 afirmava que nos evangelhos há inúmeros escritos que dependem de “cosmologias antigas e ultrapassadas”, e que essas teorias “antigas e ultrapassadas” continuam fazendo o substrato de grandes porções de nossa teologia. Quando as novas edições de novas teologias ficarão acessíveis para colocar nas mãos dos alunos dos novos cursos acadêmicos, e daí passando a fazer parte do ensino das catequeses e das homilias? Será um trabalho de anos e anos ou centenas, mas por algum lado se deve começar. Acho que esta é  a questão deste autor da presente matéria.

Vejamos o trato que tem sido dado ao perfil de Jesus. “Depois de sua morte, camadas e camadas de interpretação e entendimento foram colocadas em sua vida e seu ministério, de modo que ficou extremamente difícil conhecer a realidade de carne e osso de Jesus. Quem esse homem realmente pensava que era? O que ele pensava que estava fazendo? O que ele esperava alcançar? Depois de 2000 anos puseram um manto de entendimento sobre a realidade original e continuamos a ver Jesus à luz do manto em vez de refletir sobre a realidade original: a vida e o ensinamento de Jesus. Por exemplo, que pensamentos e sentimentos teriam ocupado a mente de Jesus quando se dirigia para o rio Jordão? Quais eram as convicções que o guiavam? Talvez ele se sentasse na margem do rio algum tempo antes de avançar e se comprometer” (o.c.p.78). Segundo, o que mais intrigava Jesus? Não seria a multidão de pessoas que o procuravam, mas ao mesmo tempo condicionadas pela educação recebida, pelos costumes sociais e pelas atitudes religiosas que os levavam a crer que Deus não estava perto deles? E como eram desprezados pelos outros não seriam também desprezados por Deus? Atitudes de medo, ignorância e um sentimento de distância do sagrada enchiam os seus dias. O que ele teria que fazer para mudar essa situação? O que mais impressionava Jesus era a generosidade entre os pobres. No entanto eles pensavam que Deus não estava perto deles. Jesus teria que chamá-los para mudar essa maneira de pensar. Tinham que mudar a cabeça. Tanto os “bem estabelecidos” não lhes davam importância que eles assim se julgavam sem importância nenhuma diante de Deus. Tanto eram chamados de pecadores, que eles assim se consideravam como pecadores. Tanto eram chamados de impuros, que eles assim se consideravam como impuros. Eles olhavam os “bem estabelecidos” como “ditadores”. E claro, como o filho põe em Deus o que ele vê no pai, eles punham em Deus isso de ser também “ditador”. Porque nossa espiritualidade segue as imagens e pensamentos que temos sobre Deus: ditador e cruel. Nós herdamos, muitas vezes sem questionar e procuramos ser fiéis a essa falsa visão. Dá para termos uma ideia do trabalho que Jesus ia enfrentar entrando nesse mar de lutas.

Conclusão. Grande parte de preconceitos que Jesus enfrentou, não habitarão ainda a cabeça de muitos de nós agora no século XXI? Qual é o novo discernimento que a nova era da nossa história terá que adotar? O escritor Frei Beto inventou o bordão “não estamos numa época nova, estamos numa nova época”. A Igreja como um todo já se deu conta dessa nova época, ou se recolhe e se enrola nos mantos dourados do passado, proclamando que nada mudou, mas que tudo está igual? Como? Se mudou a visão do mundo, transplantam-se corações e rins, dois gêmeos com uma só cabeça se fazem viver cada um com sua cabeça, e está tudo igual? Ou talvez a Igreja continue querendo realizar cirurgias cardíacas num hospital moderno só com o conhecimento do século primeiro depois de Cristo?

P.Casimiro João     smbn

www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Pedras de Jeremias caindo nos templos de Javé.


 

“Quanto a você, não reze por este povo. Não insista comigo porque eu não atenderei. Você não está vendo o que eles fazem nas cidades de Judá e nas ruas de Jerusalém? Os filhos recolhem lenha, e os pais acendem o fogo, e as mulheres preparam a massa para fazer pães em honra da rainha do céu. Este templo onde o meu nome é invocado será por acaso um esconderijo de ladrões?  Vocês vão até o meu lugar em Silo, onde antes eu fiz habitar o meu nome, e vejam o que eu fiz lá por causa da maldade do meu povo Israel. Vou tratar este Templo onde é invocado o meu nome no qual vocês tanto confiam, vou tratá-lo do mesmo modo como tratei Silo. Minha ira vai pegar fogo, e não se apagará” (Jer.7,11.14.18.20).

Comparemos com outras “pedras” do Novo Testamento, no evangelho de Lucas: “Os inimigos farão trincheiras contra ti, e te cercarão de todos os lados. Eles esmagarão a ti e a teus filhos. E não deixarão pedra sobre pedra. Está escrito: Minha casa será casa de oração, no entanto vós fizestes dela um covil de ladrões” (Lc.19,43.46). Nossa constatação é a seguinte: Neste trecho de Lucas, ele foi buscar ao Jeremias cap.7, e copiou e colou. Isto porque o ambiente daquela época de Jeremias era o mesmo do ambiente de Lucas no ano 80 d.C. Aliás, outras pedras já tinham derrubado o santuário de Silo, muito antes de Jeremias. “Não viram o que eu fiz, em Silo, o que eu fiz lá por causa da maldade do meu povo de Israel?”(Jr.7,49). De tal forma que as pedras que derrubaram Silo (1.100 a.C.) eram as mesmas que derrubaram o Templo de Judá, com Jeremias,(600 a.C.), e o Templo de Jerusalém, com Lucas (70d.C). E os pecados eram os mesmos, e os inimigos usaram os mesmos métodos. Em Silo as maldades começaram com os filhos de Heli que roubavam os alimentos do santuário; Vieram os filisteus e acabaram com o templo e carregaram a arca da Aliança. Em Judá, onde se sacrificava à deusa Astharte, “a deusa rainha do céu”, o templo teve a mesma sorte. Depois que os assírios destruíram o templo de Betel na Samaria (720 a.C.), foi a vez do templo do reino  de Judá, no Sul, em 600 a.C. E finalmente, já no Novo Testamento foi a vez do Templo de Jerusalém (o segundo Templo), destruído pelos romanos, em 70 d.C. Foram três sessões de pedras, contra três épocas de infidelidades do povo de Israel.

Enfocando agora as pedras do texto de Lucas, vejamos o paralelo que tem com Jeremias e como foi transposto por Lucas para o seu tempo. Essa realidade das pedras, “não ficará pedra sobre pedra” já tinha acontecido quando foi escrito o evangelho de Lucas no ano 80 d.C. E o Templo foi destruído no ano 70 d.C. No entanto, por um artifício literário muito frequente na Bíblia, o presente é posto no passado, como tendo sido dito por Jesus, o que não é provável. Na antiguidade coisas passadas eram ditas como profecias de coisas futuras. Aliás, em comprovação do que falamos, há “profecias” na Bíblia que nunca se cumpriram, como aquela sentença: “Não passará esta geração antes que tudo isto aconteça”(Mc.13,3 e Lc.21,32). O que era “tudo isto”? “Este evangelho do Reino será pregado pelo mundo inteiro para servir de testemunho a todas as nações, e então chegará o fim”(Mt.24,14). E: “A vinda do filho do homem sobre as nuvens” (Lc.21,27). E: “Não acabareis de percorrer as cidades de Israel antes que volte o filho do homem”(Mt.10,23).

Voltemos ainda à reflexão de Lucas sobre o fim do Templo. Comparando com a narrativa de Mateus, qual é a diferença que existe? É que em Mateus não é mencionado o Templo mas só as construções da cidade: “Os discípulos aproximaram-se de Jesus e fizeram-no apreciar as construções. Jesus porém respondeu-lhes: vedes todos estes edifícios? Em verdade vos declaro? Não ficará pedra sobre pedra, tudo será destruído”(Mt.24,1-2). E do mesmo modo em Marcos (Mc.13,1-37). Concluímos daqui que a intenção de Lucas era expressamente trazer aqui a mesma lição de Jeremias, 600 anos atrás. Enquanto que a dos outros evangelistas era só de chamar para a vigilância e espera do final da história. “Naqueles dias depois desta tribulação o sol se escurecerá, a lua não dará o seu resplendor, cairão os astros do céu e as forças do céu serão abaladas. Então vereis o filho do homem voltar sobre as nuvens com grande poder e glória. E enviará os anjos e reunirá os seus escolhidos dos quatro ventos, desde a extremidade da terra até a outra extremidade do céu”(Mc.13,24-27). É impressionante a teologia de Lucas, e como conseguiu unir os episódios dos eventos dos três templos para enfocar numa única visão a atual época histórica vivida pelas comunidades, desenhando assim numa pirâmide de três faces a sua intenção e a sua teologia. Apontando para o vértice da pirâmide que o “templo não é um covil de ladrões para eles se esconderem e com esse pretexto de uma “falsa religião” enganarem a população de que eram “muito religiosos” mas à sombra do templo praticarem todas as hipocrisias.

Conclusão. O final dos tempos ou escatologia era tema sempre presente em Israel. No livro de Isaias vem que “os céus se enrolarão como um lençol, e as estrelas cairão como folhas de figueira” (Is.34,4). Claro que eles pensavam que as estrelas estariam presas no grande “lençol” do “céu e por isso iriam todas cair. Devido a isso no Novo Testamento se fala em “sinais no céu, na lua e nas estrelas” (Lc. 21,25; Mt. 24 14; Mc cap.13) e de quebra em tudo que atingiria o Templo.

P.Casimiro João    smbn

www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br