Para quem se sentir sem chão ao ler
esta matéria, pode reavaliar seu pensamento sobre a dúvida da fé com a seguinte
afirmação de Umberto Galimberti: “Aqui concordam Paulo, Agostinho e Tomás: ‘Não
existe uma fé que não seja acompanhada pela disposição da dúvida” (Umberto
Galimberti, “Rostos do Sagrado”, pag.333, cf.Tomás de Aquino, Suma Teologica,
Questio de fide, quest.I,tr.it, Compêndio de Teologia, Marietti, Turim, 165).
É nesta disposição da dúvida que se
baseia a teologia. Percorrendo a Historia vemos que a caminhada tem sido uma
interrogação constante. Formaram-se vários sistemas filosóficos e a teologia
ia-se apoiando ora num ora noutro. E formaram-se correntes teológicas cada uma
respondendo de sua maneira a várias questões, resultando em várias aporias.
Concilios e mais concílios foram convocados para debates que se seguiam. Dogmas
e mais dogmas foram sendo forjados para tentar barrar mais perguntas a assuntos
que ficavam sem respostas. E os autores hoje em dia têm a consciência de que os
dogmas, igual a Sagrada Escritura têm a sua consistência na contingência
histórica e cultural da sua época em que foram redigidos. “A mesma batalha tem
de ser vencida em relação aos dogmas, onde mais uma vez a revelação divina foi
expressa por homens” (Raymond Brown, Biblical Reflections on Crises Facing the
Church,, London, 1975, p.116). Nesta disposição, vou fazer bastantes citações
do Livro “O Católico de Amanhã”, da Paulus,2013, que pode ser considerado uma
Introdução à Teologia para os dias de hoje. “Dentro do cristianismo, agnósticos
escreveram suas próprias escrituras, inclusive evangelhos, confiavam em suas
experiências e seu conhecimento religioso e em geral resistiam a quaisquer
exigências da autoridade concernentes ao “verdadeiro” ensinamento. Sua visão do
mundo era muito complexa: a matéria era má e Deus estava distante. Selecionavam
do pensamento cristão o que se adequava às suas ideias sobre a maneira como a
realidade se ligava ao divino. Em especial, dentro do cristianismo, alguns
aspectos do gnosticismo encontravam base comum com especulação fundamentada no
pensamento judaico: especulação sobre Adão e Eva; o papel da Sabedoria celeste
vindo esclarecer os seres humanos perdidos na escuridão; e a criação de rituais
batismais como meio de incorporar os seres humanos a uma nova raça celeste
livre das restrições deste mundo” (Pheme Perkins). Walter Kasper, bispo e
teólogo alemão diz: “A primeira fase no desenvolvimento da doutrina da Trindade
ocorreu no conflito com o gnosticismo”. A narrativa mítica de Adão e Eva
desempenhou papel fundamental nesse desenvolvimento. Significava, para eles,
que Jesus era interpretado no contexto de um modelo de raça caída que precisava
ser salva. Como já vimos, essa visão do mundo realçava o fato de nós, seres
humanos, não podermos salvar a nós mesmos e obter entrada no céu. A ênfase na dignidade de Jesus e as
perguntas complexas que levantou ofuscaram a realidade humana de Jesus.
Consequentemente, herdamos uma longa tradição suspeita quanto a falar de Jesus
como humano semelhante a nós (por exemplo era limitado; ele não sabia tudo).
Esse entendimento teológico desenvolveu-se em grande parte de acordo com
padrões do pensamento grego. Do pensamento grego os teólogos da Igreja
primitiva criaram um entendimento de Jesus como o Verbo preexistente que tinha
estado com Deus e que desceu ao nosso mundo, como se Deus estivesse em outro
lugar lá nas nuvens e viesse desse lugar passar algum tempo conosco. Do
pensamento grego desenvolveu-se o entendimento de duas naturezas unidas em uma
única pessoa. E da mesma filosofia grega desenvolveu-se a solução para a
questão teológica mais incômoda a respeito de Jesus – seu relacionamento com o
Deus Único da religião judaica. Assim surgiu a doutrina da Trindade.
Entretanto, a Igreja cristã ficou irrevogavelmente dividida quanto ao que
significava a expressão “da mesma natureza”. O Concílio de Calcedônia
definiu o que os cristãos devem crer, mas em uma estimativa em que 99,99% por
cento dos cristãos nos séculos que se seguiram não tinham e agora não têm
nenhum entendimento dessas palavras. Ao mesmo tempo foi uma época de
interferência e até domínio pelos imperadores, e de personalidades interessadas
e preocupadas em antagonismo rancoroso e lutas entre bispados importantes.
Termos técnicos sem origens bíblicas transformaram-se em palavras-chave em
respeitadas declarações de crença. Seu emprego fez com que o Ocidente e o
Oriente entendessem mal e dessem uma ideia falsa um ao outro. Doutrinas sobre
Jesus, desenvolvidas dentro do contexto de um determinado tempo e cultura, em
um entendimento literalista da Queda, uma visão religiosa do mundo que entendia
estar Deus distante de nós e a necessidade de Jesus ser uma figura de Deus para
sermos realmente salvos passaram a ser consideradas imutáveis. Devemos
continuar a contar uma história de nós mesmos em relacionamento com Deus que
nos vê primordialmente como uma “raça caída”? Tem um Deus masculino, localizado,
que reage e nos deixa de fora, depois envia seu filho que caminha nesta Terra
conhecendo o “plano eterno”? e depois faz esse seu Filho ter morte terrível
planejada com antecedência, para podermos ser reconduzidos à amizade com esse
Deus? Vamos continuar a citar a Escritura para apoiar essa história sem
qualquer referência à visão do mundo e aos padrões de pensamento nos quais os
autores e editores bíblicos operaram?”(Michael Morwood, O Católico de Amanhã”
Paulus, 2013, p.68-73). Em páginas anteriores falei no comunicado da Pontifícia
Comissão Bíblica que já em 1993 afirmava que nos evangelhos há inúmeros
escritos que dependem de “cosmologias antigas e ultrapassadas”, e que essas
teorias “antigas e ultrapassadas” continuam fazendo o substrato de grandes porções
de nossa teologia. Quando as novas edições de novas teologias ficarão
acessíveis para colocar nas mãos dos alunos dos novos cursos acadêmicos, e daí
passando a fazer parte do ensino das catequeses e das homilias? Será um
trabalho de anos e anos ou centenas, mas por algum lado se deve começar. Acho
que esta é a questão deste autor da
presente matéria.
Vejamos o trato que tem sido dado ao
perfil de Jesus. “Depois de sua morte, camadas e camadas de interpretação e
entendimento foram colocadas em sua vida e seu ministério, de modo que ficou
extremamente difícil conhecer a realidade de carne e osso de Jesus. Quem esse
homem realmente pensava que era? O que ele pensava que estava fazendo? O que
ele esperava alcançar? Depois de 2000 anos puseram um manto de entendimento sobre
a realidade original e continuamos a ver Jesus à luz do manto em vez de
refletir sobre a realidade original: a vida e o ensinamento de Jesus. Por
exemplo, que pensamentos e sentimentos teriam ocupado a mente de Jesus quando
se dirigia para o rio Jordão? Quais eram as convicções que o guiavam? Talvez
ele se sentasse na margem do rio algum tempo antes de avançar e se comprometer”
(o.c.p.78). Segundo, o que mais intrigava Jesus? Não seria a multidão de
pessoas que o procuravam, mas ao mesmo tempo condicionadas pela educação
recebida, pelos costumes sociais e pelas atitudes religiosas que os levavam a
crer que Deus não estava perto deles? E como eram desprezados pelos outros não
seriam também desprezados por Deus? Atitudes de medo, ignorância e um
sentimento de distância do sagrada enchiam os seus dias. O que ele teria que
fazer para mudar essa situação? O que mais impressionava Jesus era a
generosidade entre os pobres. No entanto eles pensavam que Deus não estava
perto deles. Jesus teria que chamá-los para mudar essa maneira de pensar.
Tinham que mudar a cabeça. Tanto os “bem estabelecidos” não lhes davam
importância que eles assim se julgavam sem importância nenhuma diante de Deus.
Tanto eram chamados de pecadores, que eles assim se consideravam como pecadores.
Tanto eram chamados de impuros, que eles assim se consideravam como impuros. Eles
olhavam os “bem estabelecidos” como “ditadores”. E claro, como o filho põe em
Deus o que ele vê no pai, eles punham em Deus isso de ser também “ditador”.
Porque nossa espiritualidade segue as imagens e pensamentos que temos sobre
Deus: ditador e cruel. Nós herdamos, muitas vezes sem questionar
e procuramos ser fiéis a essa falsa visão. Dá para termos uma ideia do trabalho
que Jesus ia enfrentar entrando nesse mar de lutas.
Conclusão.
Grande parte de preconceitos que Jesus enfrentou, não habitarão ainda a cabeça
de muitos de nós agora no século XXI? Qual é o novo discernimento que a nova
era da nossa história terá que adotar? O escritor Frei Beto inventou o bordão
“não estamos numa época nova, estamos numa nova época”. A Igreja como um todo
já se deu conta dessa nova época, ou se recolhe e se enrola nos mantos dourados
do passado, proclamando que nada mudou, mas que tudo está igual? Como? Se mudou
a visão do mundo, transplantam-se corações e rins, dois gêmeos com uma só
cabeça se fazem viver cada um com sua cabeça, e está tudo igual? Ou talvez a
Igreja continue querendo realizar cirurgias cardíacas num hospital moderno só
com o conhecimento do século primeiro depois de Cristo?
P.Casimiro João smbn
www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br