Na página anterior falámos como os
primeiros cristãos encontraram as maneiras de falar sobre Jesus com os seus
títulos de glória, abstraindo de sua realidade terrena. A respeito disso
vejamos o que nos dizem os estudiosos: “Marcos demonstrou que os critérios da
propaganda helenística não tinham condição de definir a identidade de Jesus. As
ações de Jesus como “homem divino” e Messias se tornaram um paradoxo na
perspectiva do seu sofrimento e morte como Filho do Homem” (H.Koester,
Introdução ao N.T. vol.II,p.190). E também o próprio Paulo foi nesta mesma
linha e mandou o mesmo recado.(Fil.2.6.9). Numa tentativa de radioscopia dos evangelhos
avancemos sobre a infância e o anúncio do nascimento de Jesus. O evangelho de
Marcos que foi o primeiro, e que serviu de suporte para os outros evangelhos não
faz referência nenhuma ao nascimento e infância de Jesus. Na verdade, como
vimos na página anterior, o evangelho começou pelo querigma ou anúncio da
Paixão. E isto se chamavam “Memórias dos apóstolos”. E nas “memórias” pouco
mais se lembravam além da Paixão. E ainda assim foi necessário recorrer ao
Antigo Testamento no Cântico do servo sofredor de Is.40-56 e dos Salmos para
compor a narrativa. (Cf. H.Koster, Introdução ao N.T. vol II,p.191). Portanto,
sobre o nascimento e infância nem eles tinham memória porque não podiam ter
mesmo, e já ninguém não tinha. E não adianta dizer que “Lucas investigou de
Maria”, porque não foi Lucas que escreveu o evangelho, e quando esse evangelho
foi escrito Maria já não existia nem qualquer testemunha. Por esse motivo, essa
foi uma composição que cada comunidade, a seu modo, se virou para “compor” e
ajuntar às outras memórias, um tipo de “comparação”, ou “parábola” de uma
biografia de Jesus. Então prossigamos. Já vimos que em Marcos é nula qualquer
informação sobre o nascimento de Jesus. E Lucas? Lucas valeu-se do recurso dos
esquemas de anúncios e nascimentos míticos do Antigo Testamento, que carregou
para o Novo Testamento, no nascimento tanto de João Batista como de Jesus sem
distinção. (Cf. E. Boring. Introdução ao N.T. vol II, p.1054). E já Mateus
rompe com todas as barreiras e adota o gênero das genealogias começando em
Adão, seguindo por Abraão e chegando onde ele queria chegar que era provar que
Jesus era da descendência de Davi. No caso, tanto provou como Lucas, que não
provou nada, nem provocou descendência nenhuma, e nem Marcos e muito menos
João. É digno de nota que neste ponto de genealogia e descendência de Davi há
uma passagem que contraria esse imaginário quando é apresentada a mãe de Jesus
e irmãos de Jesus, e Jesus dá uma resposta surpreendente: “quem é minha mãe,
minha irmã e meus irmãos? Todo aquele que faz a vontade do meu Pai que está nos
céus é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mt.12,46). Aliás outras contradições
aparecem também em Mateus quando disse que Jesus veio “dar pleno cumprimento à
lei” Mt.5,17, e por outro lado se revoltou contra a prática da lei, como a lei das
purificações, a lei do sábado e do jejum (Mt.cap.23). E agora vamos para o
evangelho de João. João não começa com o nascimento ou anúncio de Jesus. Começa
com a teoria grega do Logos preexistente. Logos grego que ficou traduzido com a
palavra Verbo (Jo.1,1). Verbo quer dizer palavra. Esse Logos era a inteligência
do cosmo, a força da organização do Universo. Da filosofia do “Logos” veio a
palavra “Lógica”, a arte de organizar os argumentos de um discurso. Por isso
“logos” era preexistente ao mundo porque foi o organizador do mundo. E na
mística das comunidades chamadas joaninas que compuseram o IV Evangelho de
João, aplicaram esse “logos” a Jesus Cristo. Porquê? Porque o tema da
preexistência fazia a base do gnosticismo. Bultmann pressupõe a existência
entre os gnósticos da lenda-mito de um “Homem Original”, uma figura de luz e
bondade que foi rasgada e dividida em pequenas partículas de luz. Essas
partículas, como almas humanas, foram semeadas em um mundo de trevas, e tem
sido a tarefa dos demônios fazê-las esquecer de suas origens celestiais. Então
Deus envia seu Filho em forma corporal para despertar essas almas, libertá-las
de seus corpos de trevas e guiá-las de volta ao seu lar celestial. Ele fez isso
proclamando a verdade e dando às almas o verdadeiro conhecimento, gnósis, que
as capacitará a encontrar seu caminho de volta. Bultmann encontra traços de tal
mito nos discursos de João. Aí Jesus era o preexistente (Jo.1,1) que se fez carne, e finalmente voltou para Deus. Ele
era a luz que entrou no mundo, Jo.1,9 e 8,12; ele era o caminho para Deus
Jo.14,15”. (Apud R.Brown, Comentário ao evangelho de João vol.I, p 47). De
acordo com Irineu, a iniciação gnóstica ligava o seu status com sua teologia de
preexistência.”Tiro o meu ser daquele que é preexistente e volto para o meu
lugar do qual eu vim” (Adv.Heresis,1,57). E mais: a preexistência era
participada também por nós, seres mortais. “Uma tese comum aos sistemas
gnósticos envolve a preexistência dos seres humanos na esfera divina antes da
nossa vida terrena”(R.Brown, o.c.p.48). Uma referência gnóstico-doceta da
encarnação é subentendida desta maneira no episódio do batismo de Jesus. É
historicamente certo que o evangelho de João foi alvo de muitas intrigas entre
as primitivas comunidades antes de ser aceito no cânon, justamente devido às
suas influências gnósticas e docetas. Vejamos que sobre a encarnação há única
referência doceta partindo da cena do Batismo de Jesus: “Se isolarmos o
evangelho de João e o lermos com as lentes dos docetas, poderemos supor que a
vinda da luz ao mundo é o momento de o Verbo se fazer carne, e teria sido exatamente
depois do batismo de Jesus, quando o Espírito desceu sobre ele, que teria
acontecido a encarnação, no pensamento docetista. É como João Batista afirma
‘eu não o conhecia, mas, para que Ele fosse manifestado a Israel é que eu vi o
Espirito descer do céu como uma pomba e permanecer sobre ele’(Jo.1,30). Isto
também é afirmado no Evangelho de Verdade
da Biblioteca de Nag Hammadi”(R.Brown, “A Comunidade do Discípulo Amado”,
p.159). Então, na nossa radiscopia, o fulcro dos evangelhos é o querigma da
Paixão-morte-ressurreição, onde posteriormente, a modo de biografia, foram
acrescentando do jeito de cada comunidade, os diversos imaginários do anúncio e
do nascimento. Daí em diante os redatores valeram-se de coleções dos “ditos” de
Jesus e de coleções de discursos e parábolas e de coleções de curas e milagres.
Entre estes, a maior polêmica se deu entre comunidades de judeus cristãos que
tinham arrumado as suas coleções e conseguiram que entrassem como links para os
evangelhos, muitos dos quais eram dos profetas do A.T. como os contos e
narrativas das sagas de Elias, Eliseu, dos Salmos e do canto do servo sofredor
do II Isaías, 40-56. Pelo meio há temas fundamentais sobre “puro e impuro”, a
observância do sábado que aparece a todo momento, porque estavam na época da
transição da observância do sábado para o domingo, “o primeiro dia da semana”,
que começava a ganhar força. Note-se que a arte dos evangelistas chegava ao
ponto de arrumar discursos para que fossem atribuídos a Jesus, entre eles o
famoso discurso “da despedida”, do cap.17 de João, seguindo o costume dos
escritores da sua época que faziam a mesma coisa.
Conclusão.
Marcos demonstrou que os critérios da propaganda helenista não tinham condição
de definir a identidade de Jesus. Por isso esse evangelho já logo de início
preveniu o que pairava pelo ar sobre a filosofia helenística a respeito dos
apelidos que eles estavam inventando para classificar Jesus, mas que no final
das contas foram mesmo adotados pelas comunidades da Síria onde reinava a
filosofia não só helenística mas também gnóstica muito reinante nos ambientes
das comunidades joaninas. E das comunidades da Síria passou para o Novo
Testamento em geral. (Cf. R.Brown, As comunidades do discípulo amado, p.155).
P.Casimiro João smbn
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