segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

RADIOSCOIA DOS EVANGELHOS -2

 

Na página anterior falámos como os primeiros cristãos encontraram as maneiras de falar sobre Jesus com os seus títulos de glória, abstraindo de sua realidade terrena. A respeito disso vejamos o que nos dizem os estudiosos: “Marcos demonstrou que os critérios da propaganda helenística não tinham condição de definir a identidade de Jesus. As ações de Jesus como “homem divino” e Messias se tornaram um paradoxo na perspectiva do seu sofrimento e morte como Filho do Homem” (H.Koester, Introdução ao N.T. vol.II,p.190). E também o próprio Paulo foi nesta mesma linha e mandou o mesmo recado.(Fil.2.6.9).  Numa tentativa de radioscopia dos evangelhos avancemos sobre a infância e o anúncio do nascimento de Jesus. O evangelho de Marcos que foi o primeiro, e que serviu de suporte para os outros evangelhos não faz referência nenhuma ao nascimento e infância de Jesus. Na verdade, como vimos na página anterior, o evangelho começou pelo querigma ou anúncio da Paixão. E isto se chamavam “Memórias dos apóstolos”. E nas “memórias” pouco mais se lembravam além da Paixão. E ainda assim foi necessário recorrer ao Antigo Testamento no Cântico do servo sofredor de Is.40-56 e dos Salmos para compor a narrativa. (Cf. H.Koster, Introdução ao N.T. vol II,p.191). Portanto, sobre o nascimento e infância nem eles tinham memória porque não podiam ter mesmo, e já ninguém não tinha. E não adianta dizer que “Lucas investigou de Maria”, porque não foi Lucas que escreveu o evangelho, e quando esse evangelho foi escrito Maria já não existia nem qualquer testemunha. Por esse motivo, essa foi uma composição que cada comunidade, a seu modo, se virou para “compor” e ajuntar às outras memórias, um tipo de “comparação”, ou “parábola” de uma biografia de Jesus. Então prossigamos. Já vimos que em Marcos é nula qualquer informação sobre o nascimento de Jesus. E Lucas? Lucas valeu-se do recurso dos esquemas de anúncios e nascimentos míticos do Antigo Testamento, que carregou para o Novo Testamento, no nascimento tanto de João Batista como de Jesus sem distinção. (Cf. E. Boring. Introdução ao N.T. vol II, p.1054). E já Mateus rompe com todas as barreiras e adota o gênero das genealogias começando em Adão, seguindo por Abraão e chegando onde ele queria chegar que era provar que Jesus era da descendência de Davi. No caso, tanto provou como Lucas, que não provou nada, nem provocou descendência nenhuma, e nem Marcos e muito menos João. É digno de nota que neste ponto de genealogia e descendência de Davi há uma passagem que contraria esse imaginário quando é apresentada a mãe de Jesus e irmãos de Jesus, e Jesus dá uma resposta surpreendente: “quem é minha mãe, minha irmã e meus irmãos? Todo aquele que faz a vontade do meu Pai que está nos céus é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mt.12,46). Aliás outras contradições aparecem também em Mateus quando disse que Jesus veio “dar pleno cumprimento à lei” Mt.5,17, e por outro lado se revoltou contra a prática da lei, como a lei das purificações, a lei do sábado e do jejum (Mt.cap.23). E agora vamos para o evangelho de João. João não começa com o nascimento ou anúncio de Jesus. Começa com a teoria grega do Logos preexistente. Logos grego que ficou traduzido com a palavra Verbo (Jo.1,1). Verbo quer dizer palavra. Esse Logos era a inteligência do cosmo, a força da organização do Universo. Da filosofia do “Logos” veio a palavra “Lógica”, a arte de organizar os argumentos de um discurso. Por isso “logos” era preexistente ao mundo porque foi o organizador do mundo. E na mística das comunidades chamadas joaninas que compuseram o IV Evangelho de João, aplicaram esse “logos” a Jesus Cristo. Porquê? Porque o tema da preexistência fazia a base do gnosticismo. Bultmann pressupõe a existência entre os gnósticos da lenda-mito de um “Homem Original”, uma figura de luz e bondade que foi rasgada e dividida em pequenas partículas de luz. Essas partículas, como almas humanas, foram semeadas em um mundo de trevas, e tem sido a tarefa dos demônios fazê-las esquecer de suas origens celestiais. Então Deus envia seu Filho em forma corporal para despertar essas almas, libertá-las de seus corpos de trevas e guiá-las de volta ao seu lar celestial. Ele fez isso proclamando a verdade e dando às almas o verdadeiro conhecimento, gnósis, que as capacitará a encontrar seu caminho de volta. Bultmann encontra traços de tal mito nos discursos de João. Aí Jesus era o preexistente (Jo.1,1) que se  fez carne, e finalmente voltou para Deus. Ele era a luz que entrou no mundo, Jo.1,9 e 8,12; ele era o caminho para Deus Jo.14,15”. (Apud R.Brown, Comentário ao evangelho de João vol.I, p 47). De acordo com Irineu, a iniciação gnóstica ligava o seu status com sua teologia de preexistência.”Tiro o meu ser daquele que é preexistente e volto para o meu lugar do qual eu vim” (Adv.Heresis,1,57). E mais: a preexistência era participada também por nós, seres mortais. “Uma tese comum aos sistemas gnósticos envolve a preexistência dos seres humanos na esfera divina antes da nossa vida terrena”(R.Brown, o.c.p.48). Uma referência gnóstico-doceta da encarnação é subentendida desta maneira no episódio do batismo de Jesus. É historicamente certo que o evangelho de João foi alvo de muitas intrigas entre as primitivas comunidades antes de ser aceito no cânon, justamente devido às suas influências gnósticas e docetas. Vejamos que sobre a encarnação há única referência doceta partindo da cena do Batismo de Jesus: “Se isolarmos o evangelho de João e o lermos com as lentes dos docetas, poderemos supor que a vinda da luz ao mundo é o momento de o Verbo se fazer carne, e teria sido exatamente depois do batismo de Jesus, quando o Espírito desceu sobre ele, que teria acontecido a encarnação, no pensamento docetista. É como João Batista afirma ‘eu não o conhecia, mas, para que Ele fosse manifestado a Israel é que eu vi o Espirito descer do céu como uma pomba e permanecer sobre ele’(Jo.1,30). Isto também é afirmado no Evangelho de Verdade da Biblioteca de Nag Hammadi”(R.Brown, “A Comunidade do Discípulo Amado”, p.159). Então, na nossa radiscopia, o fulcro dos evangelhos é o querigma da Paixão-morte-ressurreição, onde posteriormente, a modo de biografia, foram acrescentando do jeito de cada comunidade, os diversos imaginários do anúncio e do nascimento. Daí em diante os redatores valeram-se de coleções dos “ditos” de Jesus e de coleções de discursos e parábolas e de coleções de curas e milagres. Entre estes, a maior polêmica se deu entre comunidades de judeus cristãos que tinham arrumado as suas coleções e conseguiram que entrassem como links para os evangelhos, muitos dos quais eram dos profetas do A.T. como os contos e narrativas das sagas de Elias, Eliseu, dos Salmos e do canto do servo sofredor do II Isaías, 40-56. Pelo meio há temas fundamentais sobre “puro e impuro”, a observância do sábado que aparece a todo momento, porque estavam na época da transição da observância do sábado para o domingo, “o primeiro dia da semana”, que começava a ganhar força. Note-se que a arte dos evangelistas chegava ao ponto de arrumar discursos para que fossem atribuídos a Jesus, entre eles o famoso discurso “da despedida”, do cap.17 de João, seguindo o costume dos escritores da sua época que faziam a mesma coisa.

Conclusão. Marcos demonstrou que os critérios da propaganda helenista não tinham condição de definir a identidade de Jesus. Por isso esse evangelho já logo de início preveniu o que pairava pelo ar sobre a filosofia helenística a respeito dos apelidos que eles estavam inventando para classificar Jesus, mas que no final das contas foram mesmo adotados pelas comunidades da Síria onde reinava a filosofia não só helenística mas também gnóstica muito reinante nos ambientes das comunidades joaninas. E das comunidades da Síria passou para o Novo Testamento em geral. (Cf. R.Brown, As comunidades do discípulo amado, p.155).

P.Casimiro João       smbn

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