segunda-feira, 29 de agosto de 2022

As figuras históricas muito diversas que o cristianismo assumiu no correr dos séculos: O Milenarismo, O Cesaropapismo A Cristandade, A Secularização e a Terceirização


 

 Os messianismos na historia da Igreja

Há um messianismo cristão que perpassa transversalmente a história do cristianismo até o concílio Vaticano II. Este messianismo cristão é a continuação do messianismo de Israel. Em que consistia? O conjunto de crenças relativas à vinda de um Messias enviado por Deus, para ressuscitar a glória do povo de Israel sobre as nações e exercer a vingança, onde todas as nações da terra estariam debaixo do mando dos reis de Israel mandados por Deus. Era portanto um messianismo nacionalista e teocrático. Não discutimos aqui a ideia e atuação concreta de Jesus a respeito. Partimos num salto da historia e veremos as figuras históricas muito diversas que o cristianismo assumiu no correr dos séculos: a época do milenarismo, a época da cristandade, a época do secularismo e a época da terceirização.

A época do milenarismo abrange os três primeiros séculos, justamente a época em que se firmou a literatura cristã da Bíblia. Era a época onde reinava a crença numa volta de Cristo para breve, e conjugava a esperança messiânica de Israel numa ambição universalista. Apesar da ingenuidade das representações, este milenarismo reapareceu várias vezes durante os três primeiros séculos da Igreja nascente.

No início do século IV este milenarismo ficou reforçado com a conversão de Constantino, o primeiro imperador cristão, que inaugurava a segunda época, a época da cristandade, ou cesaropapismo. Esta expressão veio depois de Constantino mas traz os nomes de Cézar e de Papa juntos num só, quando os Cézares eram os imperadores de Roma, e o Papa bispo de Roma. Aí cabia perfeitamente o sonho do messianismo como realizado: um único imperador e um único Deus (teocracia). Aqui se realizava e se casava o sonho do profetismo bíblico e do messianismo cristão. O imperador convertido introduz a lei de Cristo como lei da nova sociedade política; o cristianismo sendo promovido como religião do Estado, tudo como acontecia em Israel, até que quando falhou permaneceu como sonho, e o sonho acontecia agora. E assim a Igreja vinha embalada nesta áurea, que teve o seu ponto mais alto nos séculos XI e XV com o Papa Gregório VII até os Papas de Avinhão.

O resultado deste casamento entre a Igreja e os reis gerou a época que se chamou da cristandade, quando todo mundo era cristão e era obrigado a ser cristão, na lei e na marra, com excomunhões da Igreja e as armas do Estado. Era a chamada “verdade obrigatória”: ou aceita ou morre. Daí vieram os crimes contra a pessoa humana, os seus direitos religiosos e civis, contra a liberdade de consciência, e os crimes de condenação à prisão, à fogueira e à morte. A religião que pregava a vida praticava a morte porque era a religião contaminada com a ditadura do imperialismo. Este imperialismo religioso e civil recebeu um respaldo com santo Agostinho com o seu livro a “Cidade de Deus” onde fazia um juízo pessimista sobre a história profana como história de perdição. Filosofia esta que ainda reina hoje na cabeça de muitos eclesiásticos, padres, clero, cristãos de reza e leigos tradicionalistas de fachada. Não seria isso que estava na cabeça dos pastores que fizeram o gabinete paralelo no MEC, junto com os milh$ões que desviavam do Ministério da Educação, no comando do ministro da Educação “terrivelmente evangélico” Milton Ribeiro?

Essa etapa da cristandade chegou até à Revolução Francesa quando o mundo se deu conta e se libertou da tutela dos reis ligados com a Igreja. Desde o séc.18 o mundo se deu conta que a Igreja e o Estado não poderiam morar no mesmo palácio. E também se deu conta que Deus não fala pela boca dos reis como se arrogavam esse direito para ludibriar o povo, nem fala só pelas Escrituras, mas pelos pobres sofridos e esquecidos da sociedade. E fala também pelos homens das leis, e pela sabedoria dos sábios e cientistas das ciências humanas, sociais e antropológicas e culturais. Tempos atrás se pensava que Deus governava em pessoa, mas é mais certo o seguinte: Deus terceirizou o mando do mundo aos homens, e não é mais o mando de Deus direto como metaforicamente a Bíblia falava: “Deus mandou a ’Salomão construir o templo e deu aquelas medidas”, e “Deus falou com Samuel” etc. Também começou a época da autonomia da sociedade e independência do poder político em relação ao poder religioso. Chegou a Declaração Universal dos Direitos Humanos e surgiu a sociedade civil como sociedade laica, democrática e pluralista. Não é mais uma religião de Estado porque o Estado é composto por gente de todas as religiões, e de nenhuma em particular.

Como dissemos todas as leis são feitas pelo voto. Voto de escolher o Papa e voto das eleições democráticas das Nações. Há corrupção? Há, dos dois lados. Vem à lembrança que na Igreja um candidato a Papa oferecia uma mula carregada de ouro para ser eleito Papa (Alexandre VI). E nos governos         existe uma mula carregada com um “Orçamento Secreto” e um Centrão de bilh$ões. E Para definir o dogma da “infalibilidade” um Papa deu propinas e fazia ameaços, tal como hoje entre eles nos governos. E por aí adiante. Tanto é santa a historia da Igreja como a profana, mas cada uma na sua área são terceirizadas. E Deus deve dar rizadas. Deus terceiriza.

Em terceiro lugar, a época da secularização que teve início com a Revolução Francesa, com a qual foi tirado o poder absoluto dos reis e imperadores, e questionado também o autoritarismo do poder religioso. Desde então começou o esforço pelas democracias, segundo as quais o pode emana do povo ou do voto popular. A secularização resume-se na separação dos poderes, o civil e o religioso, de onde vem o chamado Estado Laico.

Finalmente, como consequência, a época da terceirização. Enquanto que, segundo a mentalidade bíblica, tudo era feito por Deus em pessoa desde o relâmpago às chuvas para as lavouras, até às doenças e ao governo dos povos, na última época reflete-se sobre a terceirização. Deus terceiriza a governança das nações, a cura das doenças, a invenção das vacinas, assim como terceiriza a fabricação dos filhos e o numero que cada casal se propõe. No que se refere ao governo das nações, à constituição das leis e seu cumprimento tudo é feito pelo voto e pela maioria. Passou o tempo em que o poder do rei se incluía à intervenção “direta de Deus”.

É significativa aquela afirmação do evangelho de João “Na casa de meu Pai há muitas moradas, e eu vou preparar um lugar para vocês”(Jo.14,2). Na verdade neste mundo Deus bem queria que cada um tivesse sua morada, mas como ele terceirizou, acontece que os que detêm o poder e o dinheiro se abastecem de mansões e campos e deixam os outros sem nada, porém na ”Casa do Pai” não vai ter terceirização e todos vão ganhar.

Conclusão. Tivemos a reflexão de que a Igreja não tem o monopólio da salvação. Em virtude de desígnio de Deus, o Reino de Deus vem também nas outras tradições religiosas da humanidade. Desde o Vaticano II a passagem do eurocentrismo coincidiu com a chegada da era pós-colonial e da globalização de modo que, pela primeira vez na história do cristianismo a inculturação em nome da universalidade do Evangelho não coincidiu mais com a influência da cultura ocidental. Até porque, como vimos, a pretensão universalista do cristianismo não se verifica historicamente, pelos lugares reduzidos que conquistou, e deixou de conquistar mais quando lhe faltou o braço das armas e dos poderes coloniais. Com o Vaticano II começa um terceiro período no qual a Igreja do Ocidente se tornou minoritária. Basta lembrar que na Ásia o cristianismo não passa de 3% por cento em toda a população. O futuro do cristianismo está principalmente na América Latina e África. Quase se pode dizer que a Igreja hoje se tornou Igreja do Terceiro Mundo, com raízes europeias e ocidentais. Isto coincide com o fim da era colonial e do imperialismo cultural. Pela primeira vez, depois do séc,18, o Concilio inaugurou uma atitude de respeito e de estima perante as religiões não cristãs”(Claude Geffré, o.c.p.348).

P.Casimiro João

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segunda-feira, 22 de agosto de 2022

O que é o significado de “salvação” judeu-cristão e nas outras religiões mundiais. Além da nossa galáxia do cristianismo, há outras galáxias de outras religiões e com gente 10 vezes mais do que a nossa.



 

A palavra “salvação” não existia só na religião judaica, mas é expressa em todas as religiões. Porém, debaixo de conceitos históricos e culturais diferentes. Nos judeus, a palavra salvação incluía um intermediário ou “mediador” tipo bode expiatório”, muito da cultura judaica. O bode expiatório assumia os pecados do povo e seria castigado ou imolado no lugar das pessoas. Digamos à parte que é uma ideia que induz muito a um egoísmo feroz, de “lavar as mãos” porque outro já pagou por mim, ainda que fosse um animal, e eu me “safei,” me “salvei”.

Nas outras religiões mundiais há outros significados de “salvação”. Nelas há um significado de transformação da existência humana no sentido filosófico que tudo o que é criado tem destino de crescer, de evoluir e se transformar e sublimar como a borboleta que ganha asas depois da transformação do seu ser. Não inclui culpa nem castigo.

Historicamente, derivado de nossas origens judaicas, desenvolvemos o conceito judaico de culpa, castigo e terceirização: terceirizamos o castigo no bode expiatório e cantamos vitória enquanto continuamos muitas vezes alienados. Além disso, herdamos também dos judeus as pretensões exclusivistas de sermos os melhores e temos a melhor religião e a salvação ao nosso alcance. Com efeito a Torá, a Lei, para os judeus era o único caminho de salvação. Eles tinham escrito: “A Sabedoria diz, em mim encontra-se o caminho de toda a verdade, da virtude e da vida”(Prov.cap.8). E os evangelhos foram aí, e copiaram e aplicaram a Jesus: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”(Jo.14,6). Para citar um exemplo, nestes dias houve o X Encontro mundial das Famílias em Roma. O Papa Francisco orou pela situação das famílias que tiveram que seguir em frente por outras opções para “encontrarem outro caminho do amor”. Vale dizer, não há só o caminho do matrimônio inicial; se por ventura não deu certo há outro caminho de exercitar o amor. A Igreja pretende colaborar agora com a felicidade do novo casal, e não no papel do fariseu. Mas tem eclesiásticos que condenam os casais em segundas núpcias ao inferno. Repare bem, na época de santo Agostinho as crianças sem batismo também eram condenadas ao inferno, só que agora não, pois a Constituição Teológica Internacional declarou que elas têm entrada direta no céu, e também as que foram abortadas. (www.vaticano,28 abr.07/01:58 am (ACI). Ai, esses que condenam os tais casais, quando irão dizer que também os casais em segunda união estão no caminho do céu? E “eles” que condenam com tanta facilidade, para onde irão?...

Portanto, o conceito de salvação é abrangente, e ainda não está esgotado. Só para dar mais outro exemplo, vejamos como era severamente castigado o adultério no Antigo Testamento: “os dois serão réus de morte”(Lv.20,10), no entanto como era fácil o divórcio: “se o homem encontrar na esposa algo que lhe desagrade, dê-lhe documento de divórcio” (Dt.24,1).

Retomemos o conceito de salvação. Apesar das declarações da própria Igreja que os 11 primeiros capítulos do Gênesis são uma parábola ou mitos, no entanto ainda todo nosso imaginário continua grudado na letra da queda original. Não nos damos conta de que a humanidade e a ciência caminham mais além, isto é, nos caminhos de uma nova cosmologia e antropologia. Por isso achamos que não é adequado se basear nas projeções dessa teoria religiosa de uma cosmologia que não é mais a de hoje para fazer dela um padrão universal de “salvação” para todas as religiões do mundo (cf.C.Geffré Babel a Pentecostes, p.265).

Além disso, é incontestável que a evolução da ciência comanda mais em todas as esferas e no agir e na vida moderna do que as convicções antigas, sem falar no poder da Literatura, das Novelas, e da Arte cinematográfica.

 Hoje muitos intelectuais se sentem bastante sintonizados com as teorias de muitas religiões e filosofias orientais para os quais o Absoluto, ou aquele a quem é dado o nome de Deus escapa aos diversos rostos pessoais que as religiões históricas lhe têm atribuído. O esforço do cristianismo tem consistido em levar uma versão da nossa experiência religiosa tipicamente ocidental para outras geografias do mundo. Há religiões que podem aportar filosofias e experiências religiosas de uma magnitude não imaginada e não vivida pela experiência ocidental. Por exemplo, na religião do Atmã se diz que no fundo do coração a lei do céu não é diferente da lei moral inscrita no coração de todo humano: “O céu e homem fazem um só”. “É o serviço dos homens que é a melhor parábola do serviço do céu.” E assim se expressa o sábio Wang Yangming: “A razão pela qual  o homem  superior ou santo é capaz de ser um com o céu não está na sua inteligência, mas na virtude de humanidade inscrita no seu coração, a qual é fundamentalmente de tal espécie que ele se une ao céu”(o.c.p.270).

A humanidade mais consciente preza a ideia de uma religião mais abrangente do que aquela que vive de tirar a culpa da própria pessoa, pelo contrário, tem mais interesse numa entrega mais prática para aliviar as dores da humanidade, como as vitimas das calamidades, e da fome e doenças endêmicas e feridos de guerras.  Estão nesse caminho o Greenpeace, os Médicos sem fronteiras, e Organizações que praticam a solidariedade com o meio ambiente e com o cosmo.

No Ocidente nós separamos muito a alma e o corpo. Até se dizia antigamente “salvar almas”. Hoje no Oriente em geral eles procuram a salvação como cura integral do homem. Sabem proteger e unir na mesma defesa a alma e o corpo, o ser humano e o conjunto que o rodeia, o cosmo. E certamente objetivam mais a unidade radical da família humana. Na verdade, o corpo do mundo participa da mesma energia cósmica que é preciso captar.

Antes de concluirmos, podemos refletir ainda sobre os seguintes pressupostos: o cristianismo caminha com a pretensão de ser a única via de salvação. Hoje tal pretensão “parece exorbitante e até mesmo insultante para todos os fiéis de boa vontade das grandes religiões da humanidade”(o.c.p.274). Na Declaração “Dominus Jesus” da Congregação para a Doutrina Cristã, do ano 2000 o então Card. Ratzinger limitava-se ao jargão de que Cristo salva, mais do que àquele outro jargão que “Deus é quem salva”. Essa praia é maior do que só a praia de Cristo. Sem esquecer que este monopólio da salvação chamado cristianismo foi imposto pelas armas nos países onde chegou, fazendo apagar os rastos de luz de tantas estrelas das constelações que lá existiam. E quando o evangelho atribui a Jesus a afirmação : ”Eu sou o caminho, a verdade e a vida”(Jo.14,5) temos que saber que é uma cópia do que diziam os judeus sobre a Torá: “Em mim está todo o caminho da virtude, da verdade e da vida”(Prov.cap.8). Isso não era mais do que copiar o caminho do exclusivismo dos judeus.

Conclusão. Os astrônomos têm hoje o maior telescópio mundial James Webb a 1.500 milhão de quilômetros da Terra. Distâncias de galáxias e estrelas são medidas em anos luz. Um ano luz é mais do que 9 trilhões de quilômetros. Sabemos que existem mais de 200 bilhões de galáxias além da nossa galáxia Via Láctea que fica 25.800 anos-luz da Terra. E cada uma dessas galáxias tem mais de 100 bilhões de estrelas. Transferindo para a religião, também, além da nossa galáxia do cristianismo, há outras galáxias de outras religiões e com gente 10 vezes mais do que a nossa. Vale dizer que só no cristianismo somos 3 tipos de cristãos: católico, protestante e Oriental. E nós católicos somos dois tipos de católicos, os de Roma e os Ortodoxos de Constantinopla (Oriental: grecocopta - russo).

Foi fácil até aqui imaginarmos como foi possível admitir que o cristianismo tivesse o monopólio da salvação e do sagrado. Já vimos no tema anterior sobre o monopólio do sagrado, e agora tivemos ocasião de refletir sobre o monopólio da salvação, que está sendo questionado. Além da nossa constelação há todas as outras constelações cheias de estrelas.

P.Casimiro João   smbn

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segunda-feira, 15 de agosto de 2022

A violência do sagrado nas teocracias antigas e nos regimes ditatoriais e enfrentar o desafio da secularização e da terceirização

Desde alguns anos a esta parte uma parcela da humanidade deu-se conta que a Bíblia era considerada como tendo o monopólio do “sagrado”. Enquanto que hoje pensamos que toda a história é “história sagrada”. A consideração desse “monopólio” daria direito a usá-lo como uma arma, não só da parte do cristianismo mas das outras religiões as quais  cada uma tinha isso também. O que legitimava esta “violência do sagrado” era: o que pertencia a Deus  era bom, o que pertencia ao mundo não era bom. Até João no evangelho se reporta algumas vezes a isso: “o chefe deste mundo, já será vencido”(Jo.14,27), porque este mundo teria sido criado mau, na cultura milenar judaica.

O sagrado arcaico se baseava na cultura do “mistério”, do mito, e do medo. Diante desses fantasmas o ser humano seria assim como um avatar fabricado para obedecer ao mito e ao mistério. E assim se dava o rebaixamento de seu ser, a sua mente ficando diminuída, só em não pensar e não decidir livremente sem as amarras do medo e do castigo. Todas as ações do homem traziam o severo “senão”. Então se praticavam as coisas ou não, só pelo ameaço do castigo. Exemplo: “morrerás, e não viverás longos anos”; “os teus filhos não viverão por mil gerações” (cf.Dt.7,9). Vejamos mais exemplos: “Mandarei contra vocês o terror e a febre que embaçam os olhos e consomem a vida. Vocês espalharão as sementes em vão, pois o inimigo de vocês as comerá. Eu me voltarei contra vocês e vocês serão derrotados pelo inimigo. Se vocês se opuserem a mim e não obedecerem eu os castigarei sete vezes mais. Vocês comerão a carne de seus filhos e a carne de suas filhas, e devastarei suas cidades” (Lv. 26,16-27). Mais: “O homem que cometer adultério se tornará réu de morte, tanto ele como a sua cumplice. O homem que se deitar com a concubina de seu pai, ambos serão réus de morte. O homem que se deitar com a sua nora será morto juntamente com ela” (Lv.20.10 ss). “Se  alguma pessoa pecar, ainda que não o soubesse, contudo será ela culpada e levará a sua iniquidade”(Lv.5,17). “Como o homem castiga o seu filho, assim te castiga o Senhor teu Deus”(Dt.8,5). “O Senhor reservará os injustos para o dia do Juizo para serem castigados”(2R.2,9). “Pela ira de Javé dos exércitos a terra queima-se, e o povo se torna pasto do fogo”(IS.9,18). “Aquele que não crê no Filho, sobre ele pesará a ira de Deus”(Jo.3,36). “A ira de Deus se manifesta do alto do céu sobre toda a impiedade”(Rom.1,18). Por aqui vemos que o “sagrado arcaico” colocava Deus como o grande polícia do mundo. Era o regime das teocracias. Porém, no atual sagrado, Deus terceiriza as nações para o policiamento do mundo. É a democracia.

Na verdade, o sagrado arcaico das teocracias era composto de mitos, em vez de ciência; de cosmologia da imaginação em vez da cosmologia científica; da antropologia ancestral do homem das cavernas baseada em dualismos maniqueístas e zoroastristas das primitivas religiões, em vez da antropologia atual; da pedagogia do medo e do ameaço em vez da pedagogia libertária, a qual gerava espíritos aprisionados e doenças psicofisiológicas. Em resposta à narrativa de que havia no povo de Israel uma “história sagrada” em contraposição à “história profana”, hoje a teologia afirma de bom grado que toda a história é uma “história sagrada”. O ideal é que os Estados sejam regidos e fundados sobre a independência da justiça onde muitos cidadãos se encontrem dispostos a respeitar a famosa regra de ouro “não faças aos outros o que não queres que te façam”.

Paralelamente existe outro fator que faz parte inexoravelmente da democracia dos Estados de direito, que é a liberdade de consciência e de expressão, e a livre escolha da governação. Ninguém nega as dificuldades do pensar moderno sobre a democracia, no entanto é a melhor maneira de governo já encontrada. A democracia lida com as várias liberdades, e com a vénia e o respeito a todas. Lógico que aqui surge a necessidade do diálogo, que só anda acompanhado da paciência política. Seria mais confortável resolver tudo só com uma canetada, e com isso voltar a fazer do cidadão gente de menoridade, em obediência cega e onde o castigo e a prisão ou morte estariam de novo em frente.  Deste modo, o que nas religiões antigas fazia a teocracia, com o medo, a ditadura faz na governança civil, com a canetada. O medo resolvia tudo na teocracia, e a canetada resolveria tudo na ditadura.

Paulo Freire descreve muito bem a democracia” Nas minhas relações com os outros, que não fizeram as mesmas opções que fiz, no nível da política, da ética, da estética, da pedagogia, nem posso partir de que devo “conquistá-los”, não importa a que custo, nem tampouco que pretendam “conquistar-me”. É no respeito às diferenças entre mim e eles ou elas, na coerência entre o que faço e o que digo, que me encontro com eles ou com elas. Minha segurança se funda na convicção de que posso saber melhor o que já sei e conhecer o que ainda não sei” (Paulo Freire, A Pedagogia da autonomia, 51ªed.p.137).

Na democracia, apesar de toda a abertura e diálogo, mesmo assim o cidadão tem que sempre atender à imposições que os meios poderosos da economia ou da midia querem impor, e às suas armadilhas e arapucas. Por isso, o mesmo sociólogo e pedagogo Paulo Freire nos dá o alerta nas seguintes atitudes: “Atentos como desocultar verdades escondidas, como desmitificar a farsa ideológica, espécie de arapuca atraente em que facilmente caímos. Como enfrentar o extraordinário poder da mídia, da linguagem da televisão, de sua “sintaxe”    que reduz a um mesmo plano o passado e o presente e sugere que o que ainda não há, já está feito. É que pensar em televisão ou na mídia em geral nos põe o problema da comunicação, processo impossivel de ser neutro. Na verdade, toda comunicação é comunicação de algo, feita de certa maneira em favor ou na defesa, sutil ou explícita, de algum ideal contra algo e contra alguém, nem sempre claramente referido. Seria uma ingenuidade esperar de alguma emissora de televisão de grupo do poder que, noticiando uma greve de trabalhadores declarasse a intenção de defendê-los. Talvez melhor contar de UM até DEZ antes de fazer a afirmação categórica: ‘é verdade, ouvi no noticiário das dez horas’ como já dizia Whright Nills” (Paulo Freire,o.c.p.136).

Temos agora ocasião de poder avaliar melhor a “violência do sagrado” da parte da religião, e a “violência do Estado.”  Ambas se arrogam o direito do monopólio da salvação; o direito de estar no lugar de Deus; o direito de condenar as outras religiões; e desprezo para a ciência; o desprezo para com os pobres, para quem é de cor diferente; de outras culturas; de outras raças; outro gênero e outras ideologias. Porque se apoderaram de Deus, querem impor a sua ideologia. O que é diferente não tem valia e é considerado inimigo para abater. O que tem mais de sagrado e divino é a sua violência.

Daí nasce a xenofobia, o racismo, e o despotismo e os genocídios, e a revolta contra a ciência e não aceitá-la. Impõe-se o imperialismo religioso e civil. A consequência é um “estado de autodemissão da mente, de conformismo do individuo diante de intenções consideradas fatalistamente imutáveis, e a posição de quem encara os fatos como algo consumado, como algo que se deu, e a posição de quem entende e vive a história como determinismo, e não como desafio”(Paulo Freire o.c.p.112).

E Paulo Freire continua: “Sempre recusei os fatalismos. Prefiro a rebeldia que me confirma como gente e que jamais deixou de provar que o ser humano é maior do que mecanismos que o minimizam”(o.c.p.113).

Conclusão. Não será fora de contexto dizer, no final desta reflexão, que a “violência do sagrado” que funciona nas religiões é comparável à violência do Estado que é a ditadura, onde a canetada manda, e a canetada castiga. Em ambas falta a liberdade, e o individuo não existe como parte dialogante a respeitar. Apraz-me lembrar a parte do evangelho que afirma ”numa casa de 5 pessoas, três estarão divididas contra duas...” (Lc.12,52). Daqui se depreende que o conflito existe. Mas nós somos convidados a administrá-lo. Na igreja chamamos a isto ecumenismo: Na política chama-se democracia. Contra a ditadura onde tem a canetada contra a liberdade; a arma contra o diálogo e a ignorância do cidadão em vez do estudo e da ciência.

P.Casimiro         smbn
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segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Será que os milhões de seres humanos que não reconhecem Jesus Cristo como mediador único, eles poderão obter a salvação em e através das suas tradições religiosas? - Teologia das religiões e o Ecumenismo planetário e inter-religioso.


 Até ao Vaticano II havia o capítulo da teologia que tratava da “salvação dos infiéis”. E cabia aí a tese de que os “infiéis”, isto é, os não batizados, poderiam se salvar se cumprissem os ditames da sua consciência. A nova teologia das religiões ela se interessa menos pelas disposições subjetivas dos membros dessas religiões do que pelas próprias religiões, nos seus elementos constitutivos. E não hesita em afirmar que elas podem ser portadoras de valores positivos de salvação. Deste modo, ”a grande maioria dos teólogos sustenta de bom grado que os milhões de seres humanos que não reconheceram e não reconhecem Jesus Cristo como o único Mediador entre Deus e os homens podem se salvar, malgrado sua pertença a esta ou àquela tradição religiosa, mas nela e através dela. Esse otimismo teológico era impensável ontem tanto no seio do catolicismo como do protestantismo” (C.Geffé, Babel ao Pentecostes, p.149).

Antes do Vaticano II havia também a Apologética, paralelamente à teologia da “salvação dos infiéis”, ou “pagãos”. E já vimos noutras páginas deste Blog que até as crianças sem batismo eram incluídas nessa classe dos pagãos e portanto sem possibilidades de entrar no céu. A Apologética tinha por finalidade a defesa das verdades do cristianismo. Os primeiros Padres gregos descobriram sementes do Logos na sabedoria das nações, de modo especial na filosofia grega. O primeiro que falou nas “sementes do Verbo” foi São Justino. Porém, ao mesmo tempo condenavam severamente as religiões pagãs de seu tempo. A teologia contemporânea reconhece valores de bondade, de verdade e até de santidade nas grandes religiões do mundo. A Igreja, como as outras Igrejas mantinha a tese que só ela era a portadora da salvação. Porém, a teologia do ecumenismo e a teologia das religiões mantém a tese de que “toda a história humana, desde as origens, é uma história de salvação, muito antes da “história santa” de Israel que encontra seu acabamento com a vinda de Cristo” (o.c.p.150).

Entramos assim no conceito e no diálogo entre o inacabado das religiões. Partimos do princípio que todo o inacabado tem verdades, mas não a verdade por inteiro, inclusive o cristianismo. No entanto a Apologética mantinha que a verdade por inteiro estava no cristianismo. Na verdade, o diálogo se joga entre verdades plurais. Como dissemos no capítulo anterior, a verdade é plural. (www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br. 10/7/22). O diálogo é portanto uma ponte entre parcelas da verdade. É oportuno citar aqui o que diz uma afirmação do grande Paulo Freire: “Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado, mas, consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além. Esta é a diferença entre o ser condicionado e o ser determinado” (Pedagogia da Autonomia, p.53).

Se nos fosse permitido uma digressão pelas primeiras comunidades, iriamos constatar o seguinte: quando lemos no evangelho de João o episódio hilárico das três perguntas a Pedro, “se tu me amas?”(Jo.21,15), vem ao caso a polêmica das primeiras comunidades joaninas versus as “petrinas”, ou de Pedro. Diz-se de Pedro porque eram as comunidades de Antioquia, evangelizas por Pedro. Os autores estão de acordo que as primeiras, as comunidades joaninas, se consideravam as mais prestigiadas e mais preferidas, e mais perfeitas e iluminadas. Mas passados anos, um redator póstumo teve a ideia de acrescentar essa parte do cap.21 ao evangelho de João para “resgatar” as comunidades de Pedro, mas ainda assim apresentando um Pedro debilitado, fraco, e negador, ”Pedro ficou triste por ser perguntado por três vezes se tu me amas”(Jo.21,17). Para confirmar isto vejamos que o evangelho de João nunca faz referência às “chaves” do poder de Pedro confiadas por Cristo a Pedro em Cesareia de Felipe (Mt.16,18). Aliás também só as comunidades petrinas prestigiaram Pedro desse jeito no evangelho de Mateus. Só o evangelho de Mateus, escrito na Antioquia, é que traz esse elemento das “chaves”, porque Marcos e Lucas só trazem a afirmação “tu és o Messias”, mas nada sobre as “chaves”. Observe que Mateus foi buscar o “poder das chaves” a Isaias no episódio de Eliaquin, quando lhe foram entregues as chaves do palácio após a volta do exílio da Babilônia(Is.22,22). Cada evangelista apresentava o que convinha à sua comunidade. Sirva-nos essa digressão para constatar o inacabado que vem desde o inicio da Igreja.

Sobre esta filosofia e teologia do inacabado podemos avançar o seguinte: Um verdadeiro diálogo se situa num plano de igualdade e não estabelece preliminares no ponto de partida, como confirma o sociólogo Paulo Freire: “com meu interlocutor pela frente, não posso menosprezá-lo com um discurso em que, cheio de mim mesmo, eu o possa tratar com desdém, do alto de minha falsa superioridade” (Paulo Freire, a Pedagogia da autonomia, 2015, 51ª edição, p.49). Por outro lado, só há diálogo se cada um permanecer fiel a si mesmo, como diz o mesmo sociólogo: “a assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros. É a “outredade” do não “eu”, ou do tu, que me faz assumir a radicalidade do meu eu” (o.c.p.42). E no caso do diálogo inter-religioso é no seio mesmo de meu engajamento na minha verdade religiosa que encontro o outro na sua diferença, respeitada, e a sua própria pretensão à verdade. Graças ao debate de ideias posso superar meus preconceitos e chegar a outra visão não só da verdade do outro mas da minha própria verdade” (C.Geffé, o.c.p.154).

No diálogo “há um que, ensinando, aprende; outro que, aprendendo, ensina. ”(Paulo Freire o.c.p.68). E continua: “Como um vivente crítico, sou um ‘aventureiro’ responsável, predisposto à mudança, à aceitação do diferente. A assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros. É a “outredade” do não “eu”, ou do tu que me faz assumir a radicalidade do meu eu” (o.c.p.42), como dissemos. No seu livro "Curso fundamental da Fé" Karl Rahner traz a seguinte afirmação: "Não é o conteúdo concreto dessa história antes de Cristo na antiga aliança que a constitui históra da revelação (pois categorialmente nada acontece que não aconteça também na história de outros povos), mas é a interpretação dessa história como evento de comunhão dialogal com Deus e como tendência para o futuro aberto que torna essa história, históra de revelação"(o.c.p.204).

Conclusão. Como antes dito, tivemos ocasião de ver a evolução do ecumenismo interconfessional para o inter-religioso, abrangendo as religiões dos que a Igreja tradicionalmente chamava de “infiéis”. Este ecumenismo está evoluindo agora para um ecumenismo planetário. E vimos que a nova teologia deve ser abrangente até a inclusão da visão de como Deus é experimentado nas religiões do planeta. Porque os milhões de seres humanos que não reconhecem Jesus Cristo como mediador único, eles poderão obter a salvação em e através das suas tradições religiosas.

Só há um caminho para o êxito deste novo ecumenismo planetário, a teologia das religiões e o diálogo com esse grande mundo agora tão próximo e antes tão desconhecido. Como dizia o velho adágio “não há ninguém tão pobre que não possa dar nada, e nem tão rico que não precise de nada”. O que agora se traduz no adágio que falou Paulo Freire: “O que pensa ensinar aprende, e o que pensa em aprender, ensina”.

P.Casimiro João    smbn

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segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Só Cristo salva, ou é Deus quem salva? “só por Cristo” ou “também sem Cristo”? O pluralismo de direito das religiões.


 

Tem gente que “fechou” com Cristo e que declara que “só Cristo salva”. Porém, 80%por cento da humanidade está consciente que “só Deus salva”. Eles sabem que só Deus salva “por Cristo”, ou quem sabe, também “sem Cristo”. Iremos colocar a nossa reflexão hoje neste campo, e, como prometi no tema anterior, focar hoje a atenção sobre a teologia do pluralismo de direito das religiões, uma vez que já falei no pluralismo de fato.

Partimos do dado que “a verdade cristã é um permanente futuro e depende das questões novas levantadas pela evolução do homem e do mundo, e a Igreja permanece sempre aberta para um futuro inédito”. (Claude Geffé, Pentecostes e Babel, p.142). Galileu Galilei disse que a verdade não vem da autoridade mas da história.

“A teologia clássica apelou para uma concepção de tal modo absolutista da verdade objetiva, que não imaginava poder reconhecer verdades diferentes sem comprometer, no mesmo instante, sua pretensão à verdade. Teimava em considerá-las como verdades degradadas, ou preparações longínquas da única verdade de excelência e de integração”(o.c.p.143). “A essência da verdade é ser partilhada, porque é  uma parte de Deus”, disse o místico alemão Frei Rosenzwueg.

Aristóteles definia a verdade metafísica como adequação da inteligência com a realidade. A teologia tem a verdade bíblica como manifestação ou antecipação da plenitude da verdade divina e do sentido da história que está sempre em devir e em evolução e por isso com dimensões ainda por desdobrar no seu radar. A oposição de uma afirmação verdadeira é uma afirmação falsa, mas o oposto de uma verdade profunda pode ser uma outra verdade profunda, disse o físico Niels Bohr. Por isso constatamos que a verdade já é plural no interior do cristianismo e que ela contém seus próprios princípios  de relativização (o.c.p.139).

A questão da “Única religião” nos convida a instaurar, na teologia cristã, uma nova relação com a verdade. Num primeiro tempo essa constatação de uma pluralidade de verdades religiosas é vivida como uma experiência que põe em questão o conforto de nossas certezas cristãs. E nos leva a nos questionar sobre o tradicional jargão de “religião verdadeira”. Num segundo tempo, a experiência do pluralismo religioso nos convida de preferência, a encontrar o sentido original da verdade cristã, que é de ordem diferente da ordem da verdade mais comumente admitida na nossa teologia escolar.(o.c.p.139). Como falámos, já a verdade cada vez mais aparece no nosso radar como plural no interior do cristianismo, e que ela contém seus próprios princípios de relativização.

Na 1.a Carta aos Coríntios Paulo enxerga uma luz no fundo do túnel para esta teologia quando diz: “Hoje vemos como por  um espelho, confusamente. Hoje conheço e em parte sou conhecido...Por ora subsistem a fé, a esperança e o amor – as três. Porém, a maior delas é o amor”(1Cor.13,13). Vale dizer, o amor vale mais do que a fé. A fé se traduz em teologias, e “em verdades” parceladas. Só o amor é total. Deus não cabe nas parcelas da fé, só cabe no total da caridade. A fé pode dividir, só o amor une.

Os primeiros Padres da Igreja reservavam para as filosofias dos grandes filósofos gregos o privilégio de serem “sementes do Verbo”. Os Padres conciliares do Concilio Vaticano II expandiram as “sementes do Verbo” para todas as religiões.(Decr. Ad gentes, c.2,n.11). Isso nos leva a não confundir a universalidade do mistério de Cristo com a universalidade do cristianismo, o que significa dizer que encarnação de Cristo é mais universal do que o cristianismo histórico e concreto. Isto nos leva ao fundamento teológico da teologia cristã das religiões: “O Logos é o princípio da automanifestação de Deus tanto no universo como na história. E a “carne” não designa uma substância material mas a existência histórica do homem”, como afirma Paul Tillich, na sua Systematic Theology (o.c.p.96). E Paul Tillich vai buscar este fundamento na 2.a Carta aos Corintiios:”Porque é Deus que em Cristo reconciliava consigo o mundo, não levando mais em conta os pecados dos homens” (2Cor.5,19).

Por outro lado, C.Ducquoc afirma esta realidade por outras palavras na publicação “Dieu different“, Paris 1978: “Deus não torna absoluta uma particularidade: ele declara, ao contrário, que nenhuma particularidade histórica é absoluta e que, em virtude desse relatividade, Deus pode ser encontrado na nossa história”(o.c.p.99).

Daí que os teólogos afirmam que há uma “revelação geral” imanente à história religiosa da humanidade, a qual também Karl Rahner chama “revelação transcendental” de combinado com a revelação “categorial” da revelação bíblica. Tudo isto de acordo com o Concílio Vaticano II que admite a presença universal do Logos que “ilumina todo homem que vem a este mundo”(Jo.1,9) e adequando com João Paulo II em Assis, que “toda a oração autêntica é inspirada por Deus. Aliás, já os Atos dos Apóstolos logo sinalizaram isso mesmo quando falam que o “Espirito fala em todas as línguas”(Cf.At.2,4).

Esta ordem que estamos seguindo nos leva ao paradoxo da relação entre o concreto e o Absoluto que se encontra presente na revelação bíblica e nas revelação global das religiões. Qual é o paradoxo, e suas consequências? O paradoxo é que cada religião é um dado concreto e histórico mas pretende legitimamente possuir a revelação global do Absoluto. Isto é, concreto versus Absoluto. E devido a isso, a teologia das religiões coloca a seguinte tese, dos inconciliáveis: o paradoxo da revelação perfeita deriva do fato de que ela deve conciliar, em si mesma, o duplo aspecto da realização concreta, e ao mesmo tempo o protesto ou afirmação que faz irrupção e provoca o abalo. (o.c.p.101). Isto é, toda a revelação, e também o cristianismo, traz no seu bojo a certeza que alcança Deus, mas que é muito mais o que deixa de alcançar. E, como consequência, deve abrir os braços para as outras revelações.

Enquanto que cada religião é uma via concreta de salvação, enquanto histórica e particular, ao mesmo tempo se afirma e se nega a si mesma. Por outra perspectiva, atendendo à própria essência, por exemplo do cristianismo, é óbvio que esta essência não foi realizada ou atingida totalmente em nenhum época em nenhuma das realizações históricas. Por isso o slogan de “santa e pecadora” , e assim todos os humanos. Porquê? Porque em todos os tempos houve experiências fragmentárias da fé e práticas fragmentárias do amor. Por isso toda a religião está sob o julgamento do incondicional.

A consequência prática desta tese é colocada assim: a missão da Igreja não será tanto a de converter os membros de outras das outras religiões a esta religião particular, que é o cristianismo, mas a de convertê-los a incondicionalidade da revelação final, que é o Reino de Deus, e o apelo ao humano “autêntico”, tal como é reconhecido pela consciência humana universal, como está reconhecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1945.

Vimos que o kairós do acontecimento de Cristo é extensivo e coextensivo a todos os momentos e a todos os humanos da história. Por isso o paradoxo de Cristo como “Universal concreto” bate tanto com o cristianismo como com as outras revelações históricas. E pode nos ajudar a superar toda e qualquer forma de imperialismo cristão. Na verdade, “não só as outras religiões recusam o caráter absoluto do cristianismo, como também não aceitam reconhecer a mediação absoluta de Cristo para a salvação de todos os homens e de todas as mulheres. Todos eles sabem que Deus é maior de que Cristo,o Pai é maior do que eu”(Jo.14,28). E sabem que o Espírito fala também a linguagem deles: “Naqueles dias ficaram todos cheios do Espirito Santo e começaram a falar em outras línguas”(At.2,4).

Conclusão. Procurámos refletir sobre a pergunta inicial: “Só Cristo salva”, ou é Deus quem salva “só por Cristo” ou “também sem Cristo”? É preciso no entanto enfocar aqui que “sem Cristo” não significa uma ausência ontológica, mas de consciência, na teologia cristã do pluralismo. Com efeito, o Cristo como Verbo e como encarnação cósmica em toda a natureza humana que participa do Espírito do Absoluto não está ausente das revelações particulares a que nos referimos. E também está em jogo a teologia do “acabamento” que ainda respinga do Concílio Vaticano II, se referindo à revelação cristã, e que, como vimos, também está sendo entendida mas não absolutizada na teologia do pluralismo. Porque, como dissemos, as outras revelações são inacabadas e a cristã também não é absoluta. Como diz Paulo Freire, “onde há vida há inacabamento” (Paulo Freire, Pedagogia da Autonomia, p.50).

P.Casimiro João     smbn

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