sábado, 30 de abril de 2022

Nicodemos e Jesus; quem era Nicodemos.


 

Segundo a narrativa onde Nicodemos fala com Jesus no cap.3 de João, Nicodemos inicia assim o seu bate papo com Jesus: “Ninguém pode fazer esses milagres que tu fazes, se Deus não estiver com ele”(Jo.3,2). No entanto, os biblistas se deparam com um pormenor que até ao presente ainda não foi resolvido: de João não ter narrado nenhum milagre em Jerusalém. Para ser certo, esta conversa deveria ser feita muito depois. Dado isso, os biblistas falam mais que ele certamente teria ido para investigá-lo.

Outros veem que, a ser verdadeira a cena, ela está deslocada do contexto de toda a narrativa do conjunto do evangelho de João. Sendo assim, questiona-se, além do lugar certo, também o seu conteúdo histórico. Para corroborar esta questão, Jesus fala no plural como se a Igreja estivesse falando, e como se o Filho do Homem já tivesse subido ao céu. Estes problemas levam alguns autores a considerarem toda a cena como uma criação joanina. (Cf.R.Brown, o Evangelho de João, vol I, 340).

Notamos ainda o tema que vem em seguida, da luz, que se encontra também no cap.12,44-49. “Muitos estudiosos sugerem que ao menos alguma parte é uma homilia da autoria do evangelista. A referência ao batismo tem levado autores a observar que toda esta exposição pareceria mais natural nos lábios de um Catequista cristão depois da fundação da Igreja do que dos lábios de Jesus como suas palavras no início de seu ministério.”(o.c.p.340).

Há ainda motivos para considerar esta narrativa como um midrash ou digamos parábola, usando o nome de um “fariseu” como príncipe dos judeus, “havia um homem entre os fariseus, chamado Nicodemos, príncipe dos judeus, que foi ter com Jesus, de noite”. Toda a encenação é desconcertante, e aponta para o seguinte objetivo: dar um exemplo para os judeus das Sinagogas de se decidirem à conversão e entrar na comunidade, no caso a comunidade joanina, que estava em jogo. Na verdade, os judeus que se convertiam corriam o risco de ser perseguidos pela Sinagoga, que eles deixavam, e por outro lado também o risco da perseguição por parte dos romanos quando fosse o caso. Para animar esses indecisos que estavam “em cima do muro” teria sido construída a cena do “Nicodemos”, um midrash ou, para nós, uma parábola. Note-se a terminologia nunca usada príncipe dos judeus  e ainda de noite, ou seja, por medo de ser reconhecido. E daí o autor parte para um “sermão” sobre o Batismo, começando com o exemplo de um fariseu ilustre, o qual depois é “reabilitado” quando teria colaborado no sepultamento de Jesus, junto com José de Arimateia,(Jo.19,39), numa cena também questionada, e que carrega consigo o final da lição ou midrash do cap.3 de João, como conclusão da catequese batismal.

Em segundo lugar, vem aí um tema que era o foco e o interesse principal da Igreja inicial, o tema de aceitar Jesus como salvador. “Quem nele crê não é condenado, mas quem não crê já está condenado” que tem o outro paralelo ”quem crer e for batizado será salvo; quem não crer será condenado” (Mc.16.16). Isto era o cerne das Catequeses do batismo, e tem suas raízes na herança do Antigo Testamento: a Circuncisão e a Torah. Assim como a Circuncisão era necessária para a salvação no Antigo Testamento, assim o Batismo para o Novo Testamento. E assim como a Torah era a fé de Abraão, assim agora a fé em Jesus Cristo. Esta herança vigorou como camisa de forças em toda a Idade Média. Acrescentando ainda a autoridade do Papa, o qual começou a ocupar o lugar do imperador como “dono do mundo”, e sendo considerado como o “rei dos reis” e não “havendo  ninguém igual a ele depois de Deus”(Dictatus Papae, de Pio IX).

Somente com o Concilio Vaticano II a teologia da salvação começou com uma outra luz: “A Igreja nada rejeita do que há de verdadeiro e santo nas outras religiões”(Decreto Nostra Aetate)sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs. Desde então nasceu a teologia da pluralidade das religiões e da afirmação da salvação presente em cada uma delas. No lugar do adágio criado por São Cipriano de Cartago no século III "fora da Igreja não há salvação" agora tem o outro adágio "fora da Igreja tem muita salvação". O Concílio Vaticano II reconhece nas outras religiões não cristãs"um valor salutar pela parte de verdade e santidade que elas contêm", e por isso se deve falar num pluralismo religioso de princípio e não apenas de fato", como diz Claude Geffré.(Ensaios de teologia inter-religiosa,p.38). Na verdade, todos esses valores foram confirmados na Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1945, no tocante à liberdade de consciência e liberdade de religião. Vimos que a Igreja tinha ficado parada na proposição gnóstica de S.Agostinho, de que as crianças sem batismo não tinham salvação”, proposição adotada por diversos concílios, como Cartago em 418; Viena, 1312; Florença, 1412, e Trento, 1560, e que agora foi revogada.

Conclusão.Como conclusão, fica mais claro que o cap.3 de João sem dúvida pertence ao gênero das Catequeses batismais, iniciando com a camisa de forças que estava-se tecendo nessa época, e que não abrange só a época da primeira escrita do evangelho, mas retocada que foi e modificada em várias outras edições pelo século segundo, e terceiro, até se estabilizar no séc. IV quando foi definido o cânon dos evangelhos.

P.Casimiro João    smbn

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sábado, 23 de abril de 2022

As catequeses apostólicas após-Páscoa nos Evangelhos


 

Vêm cenas como esta no final do evangelho de Lucas, em que após a viagem dos discípulos de Emaús, Jesus foi visto pelos onze que, surpresos, mas ao mesmo tempo cheios de alegria, estavam sem acreditar. O que nos surpreende é que Jesus pediu para comer um pedaço de peixe assado na presença deles. “Então Jesus disse: tendes alguma coisa para comer? Deram-lhe um pedaço de peixe assado. E o tomou comeu diante deles” (Lc.24,41-42). Quem come, o que faz depois? Há alguma coisa aqui que não bate. E quando alguma coisa não bate ou não adéqua, é porque quer dizer outra coisa. Na catequese rabínica tinham os “midrash” que eram contos para daí tirar uma lição moral. E aqui também a lição moral vem logo em seguida: ”São estas as coisas que vos falei quando ainda estava convosco, era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na lei, nos profetas e nos salmos: que o Cristo sofrerá e ressuscitará dos mortos ao terceiro dia, e no seu nome serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados”.  Portanto aqui neste midrash ou parábola a lição moral era uma catequese de recordar tudo o que os discípulos tinham escutado no princípio da convivência com Jesus e que tinham esquecido. Como quando declarou “eu não vim para ser servido mas para servir, e o Filho do homem vai sofrer muito e ser entregue às mãos dos pagãos”(Mt.17,22).

Pouco antes Jesus já tinha dito: “Porque estais preocupados e porque tendes dúvidas no coração? Vede minhas mãos e meus pés, sou eu mesmo; um fantasma não tem carne nem ossos como estais vendo que eu tenho”. Esta parte traz à mente dos discípulos aquela outra cena em que Jesus foi tomado por um fantasma quando os discípulos o viram caminhando sobre as águas, e ficando com medo gritaram ‘é um fantasma’ (Mt.14,26).

Num outro episódio Jesus foi ao encontro das mulheres e lhes disse: Não tenhais medo, ide anunciar aos meus irmãos que se dirijam para a Galileia. Lá eles me verão” (Mt.28,10). A lição moral aqui será a seguinte: Foi na Galileia o inicio do chamado aos discípulos, e o início das catequeses de Jesus aos discípulos, isto é, o início do  kerigma. Jesus estaria remetendo os discípulos para os primeiros bancos da escola na Galileia, pois tinham esquecido as lições. Porquê? No teste da Paixão, eles saíram-se mal, porque todos abandonaram Jesus (Mc.14,50). Enquanto que as mulheres saíram-se bem no teste porque todas elas o acompanharam (Mc.15,40). Por isso o recado terceirizado das mulheres para eles, “vão de volta para a Galileia para lembrar as primeiras lições esquecidas”. Era o recado da primeira lição do kerigma de Jesus.

Para completar o kerigma destas catequeses apostólicas da ressurreição vem ainda aquele episódio de João, na praia(21,1-31) onde Pedro se vê exclamando “eu vou pescar”, e um grupo o seguiu. É o recomeçar a vocação, onde Jesus falou “eu farei de vocês pescadores de homens”. É voltar ao início da vocação. Aí vem imbutida a polêmica histórica do “discípulo amado” que reconheceu o Senhor na praia(Jo.21,7) Igual como quando “correu mais depressa e chegou primeiro ao túmulo” (Jo.20,3), polêmica que reflete a consciência da comunidade joanina que se julgava a perfeita e a preferida do Senhor, e por isso esse discípulo significava a comunidade; e também pelo motivo de que um elemento chave da mesma comunidade (que não era o João filho de Zebedeu) mas um dos primeiros seguidores simpatizantes de Jesus e que não fazia parte do Doze e que sobreviveria até idade avançada na comunidade joanina, alimentando essa polêmica de que já vem desde a Ceia onde "Pedro recusa a lavagem dos pés", e um discípulo "amado", entenda essa comunidade joanina, se reclinou sobre o peito de Jesus".

Mais à frente o evangelho de João termina com a mesma aparição de Lucas, mas transformada ao jeito de João e dos redatores posteriores, com o tema da dúvida de Tomé. Para termos uma ideia sobre Tomé precisamos ter em conta que Tomé pregou na Índia e na Etiópia lugares bem distantes dos outros evangelistas. E que no séc.IV, (312) o imperador Constantino convocou o concilio de Niceia (312), e  quis unificar a Igreja em volta do Império, e pelejou para que todos os bispos se fixassem nos mesmos pontos e deixassem os pontos controversos, pois ele tomou o lugar dos Bispos para essa situação, e assim se começaram a considerar os escritos evangélicos como canônicos, muito em parte pela visão de Santo Irineu de Lião. E assim foram catalogados os 4 evangelhos para acabar com a discussão, correspondentes “aos 4 cantos da Terra”. E porque o evangelho de Tomé ficou de fora do cânon? Simplesmente porque sendo redigido na Índia, muito distante, ele era pouco conhecido nos ambientes mais próximos, e não vinha fazendo parte das leituras das comunidades.

Temos um segundo elemento: como o imperador proibia e exilava quem tivesse outros evangelhos além dos quatro estabelecidos, os cristãos coptas das regiões da Índia esconderam-no. Ele foi descoberto na Biblioteca de Nag Hammabi no Egito em 1945.

Agora podemos ver como os escritos chamados de evangelho de João descriminaram esse evangelho de Tomé, (assim como "discriminavam" Pedro) começando a descriminar o próprio Tomé como o “incrédulo”, e o menos feliz, contando um quadro possivelmente construído e muito retocado por vários redatores, sempre como que debochando do apóstolo sobre a ressurreição, que era o ponto central do evangelho de João.”Felizes os que creram sem terem visto”(Jo.20,29). (Cf.R.Brown, O Evangelho de João,vol II,p.1720ss.). Enquanto que nos Sinóticos, durante a vida de Jesus ele é considerado como apóstolo de bem. Quando fizeram a viagem para Jerusalém Tomé foi o único que se expressou: “vamos para morrermos com ele”(Jo.11,16).

Conclusão. Podemos constatar a finalidade de muitos escritos como menos históricos e mais kerigmáticos e catequéticos, como relatados nestas páginas. Assim como para os nossos dias conservam seu kerigma. Como afirmado atrás, a Galileia não tinha só um significado geográfico, mas teológico. Por isso a ordem de Jesus ainda fica atual: “vão de volta para a Galileia” para lembrar as primeiras lições esquecidas. E a Galileia é aqui.

P.Casimiro João    smbn

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sábado, 16 de abril de 2022

O Jesus antes da Páscoa e o Jesus depois da Páscoa.


 

Existe um Jesus que viveu na Palestina, e existe um Jesus como estava na cabeça dos cristãos depois da Páscoa.

“Não temos acesso direto ao Jesus antes da Páscoa pelos evangelhos e Cartas apostólicas”  nos diz o teólogo João Batista Libãnio, “Creio na Trindade”, Paulus, p.59). O Jesus antes da Páscoa não é relatado por ninguém. O Jesus que é relatado pelos evangelhos é o Jesus que estava na cabeças dos cristãos muitos anos depois. Se você tem um grande amigo que morreu há 50 anos, alguém vai dizer-te: “não, você é suspeito, vou procurar outra pessoa para falar sobre ele porque você é suspeito”.

Tem acontecimentos com duas dimensões; a dimensão histórica, e a dimensão da interpretação (da admiração). No acontecimento da crucificação de Jesus, por exemplo, tem a dimensão histórica, igual como a morte de Tiradentes. E tem também a dimensão da interpretação. A dimensão da interpretação é a dimensão da fé. E nos relatos as duas dimensões se entrelaçam tanto, que nem dá para distinguir ou então levam à “ilusão” que ambas são históricas. Na crucificação, os dados que são da interpretação, são os seguintes, só para falar em alguns: Sobre o enforcamento de Judas, que muitos autores põem em dúvida, uma vez que os evangelhos foram buscar estes dados no Antigo Testamento para colarem nos seus relatos: “E eles pegaram trinta moedas como preço daquele que for avaliado pelos filhos de Israel; eles o deram pelo campo do Oleiro. Então eles pegaram o dinheiro do meu pagamento, trinta moedas de prata” (Zac.11,11-12).

 Outros dados do Antigo Testamento aí colados: Quando na crucificação é dito que “porém a ele não lhe quebraram as pernas” (Jo.19,3), foram buscar do A.T. assim: “Cada cordeiro deverá ser comido dentro de uma casa e não se deverá quebrar nenhum osso”(Êx.12,46). Sobre lançar sortes sobre a túnica (Mt.27,35): “Repartem entre si as minhas vestes e lançam sortes sobre a minha túnica” (Sl.21,19).  Sobre as palavras de deboche ao crucificado para descer da cruz(Mc.15,30), foram buscar no mesmo salmo: “Esperou no Senhor, pois que ele o livre, que o salve, se o ama”(Sl.21,9). Sobre os dois ladrões, que é também posto cientificamente em dúvida o caso(Mc.15,28): “Foi colocado entre malfeitores” (Is.53,12). Mais aportes: “Em toda a terra houve trevas desde a hora sexta até a hora nona; obscureceu-se o sol e o véu do templo se rasgou pelo meio”(Lc. 23,44) encontra-se em Zacarias: “ Nesse dia não haverá mais luz e nem gelo; não haverá mais dia  e noite” (Zac. 11,12). Sobre a exclamação de Jesus na cruz”meu Deus, meu Deus porque me abandonaste”(Mc. 15,23) tem seu paralelo no salmo: “Meu Deus, meu Deus porque me abandonaste”?(Sl.21,2). As pedras quebraram-se, a terra tremeu, e os túmulos se abriram e muitos corpos dos justos ressuscitaram e apareceram a muitas pessoas”(Mt.27,51) faz parte da escatologia do Antigo Testamento onde as pedras se abrem, a terra treme e os túmulos se abrem e o s justos ressuscitam. Vejamos:”Os teus mortos viverão  e os seus corpos ressuscitarão”Is.26,19; “E muitos que dormem no pó da terra acordarão”(Dn.13,14).

Estes são os dados da interpretação que foram grudados no histórico da crucificação de Jesus mas não são da fala de Jesus. Estes foram colocados na boca dele como se ele mesmo tivesse falado. Os escritores foram pesquisar no Antigo Testamento para adaptar ao acontecimento. Agora, afloram duas atitudes possíveis: ou você fica na primeira dimensão histórica do puro acontecimento e não sai dali; ou aceita também a segunda dimensão e se ajunta à multidão dos que escreveram, e acompanha os que têm aceitado até o presente: esta é a dimensão da fé. E não só. Nesta segunda dimensão tem ainda duas opções: os que aceitam estes acrescentos do Antigo Testamento como sendo históricos, talvez porque não sabem; e os que sabem que eles não são históricos nem falados por Jesus. “ O choro é livre” dizia a Juju; e aqui a escolha também é livre.

Concluindo: Na vida concreta de Jesus topamos com dados mais ou menos objetivos e controversos que aconteceram ou não aconteceram como são narrados. Para obter tais resultados se construiu o método crítico-histórico e literário, como analisou o teólogo Libanio. Um exemplo nos elucida: “Tomemos o caso da ressurreição de Lázaro. Não temos condição de provar que os pormenores da doença, morte e ressurreição de Lázaro, narrados por João, signifiquem descrição rigorosa dos fatos. A qualquer conclusão que o estudo crítico-histórico literário chegue sobre a ressurreição ou não de Lázaro, permanece a verdade definitiva e fundamental da confissão de Marta, “Sim Senhor, creio que és o Cristo, o filho de Deus que devia vir a este mundo”(Jo.11,24). Então o que permanece é a intenção de João que está pedindo a fé no filho de Deus, e dá o exemplo de Marta, independentemente ou não da veracidade factual do milagre. Reflexão semelhante pode-se fazer sobre as narrativas de Caná e do cego de nascença, que são uma catequese teológica tendo como fundo algum possível núcleo factual”(Libânio, o.c.p59-60).

Conclusão. Como no acontecimento da crucificação, também o citado autor colocou as duas dimensões dessas narrativas, que podemos chamar de parábolas: a dimensão histórica e a dimensão da fé. A dimensão histórica seria um pequeno núcleo “factual” impossível de discernir, uma vez que ele está orientado para a fé; e a dimensão da fé, que é o objetivo do narrador-catequista, onde ele aumentou dados culturais da época. Na parábola das bodas de Caná está subjacente a ideia da antiguidade de deuses que transformavam água em vinho, e a ideia do Antigo Testamento em que na futura vinda do messias uma videira produziria mil cachos, e cada cacho mil uvas. Além da transposição da lavagem ou ablução do Antigo Testamento representada pelos seis potes de pedra de 100 litros, pra dizer que todas as abluções do Antigo Testamento não eram nada em comparação com Jesus. Olhada nesta perspectiva a cena de Caná é uma grande parábola, e assim também inúmeras narrativas bíblicas, que para os hebreus eram “middrash”, e para nós parábolas. Como diz um autor anónimo, a piedade atrapalha a história. Temos um exemplo no Livro de Daniel, todo feito em piedade e não em historia.                      

P.Casimiro João    smbn

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domingo, 10 de abril de 2022

O Messias de Pedro e o Messias de São Francisco (Mc.8,27-33).


 

A cena do evangelho quando Jesus perguntou “quem sou eu” provoca Pedro que respondeu ‘tu és o Messias’. Em seguida Jesus continuou assim: “o filho do homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da Lei”(Mc.8,31-32). Ao que Pedro respondeu: “Que Deus não permita isto, isto não te acontecerá”. Aí são representados o Messias de Pedro e o Messias de São Francisco: o Messias de Pedro é o Messias do poder temporal, dos imperadores; o Messias de São Francisco era  o Messias do povo sofredor e de Isaías no cântico do Servo, cap.50.

Estas duas tendências ou visões de Messias continuaram na Igreja por toda a Idade Média e ainda estão presentes até hoje. A teologia do Pedro, do poder temporal, sempre esteve presente na teologia do Vaticano, como vimos no blog anterior (www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br, 3/4/22). A segunda era a teologia e a prática de São Francisco.

Como vimos no “Ordenamento do Papa”(Dictatus Papae) do séc.XI, o Papa tinha o direito de vestir as insígnias imperiais. E não só, os príncipes tinham que beijar os pés do Papa. Podia julgar todos os homens, e não ser julgado por ninguém, e abaixo de Deus não havia ninguém maior do que o Papa. Com isto então se formou a corte do Papa, ou Cúria romana, imitação do Senado romano(H.Kung, A Igreja tem salvação? 235-240).

Já bem outra é a teologia e a prática do Francisco de Assis, que seguiu a teologia e a prática do 2ºIsaías do Servo sofredor, de que iremos falar, e no qual os pobres têm se inspirado para se olharem como sendo esse servo desprezado, marginalizado e abandonado ‘quase por Deus’ mas sobretudo pelos poderes temporais. E não só, mas crucificado e roubado. Não é em vão que os autores das cerimônias da Paixão foram buscar a letra dos Salmos e os capítulos do Servo sofredor de Isaías. E nem imaginavam que estavam fazendo um serviço à corte ou Cúria do Papa, pois com isso desviavam a atenção do povo, de seus próprios sofrimentos para “aplicá-los” à pessoa de Cristo, desviando da pessoa do pobre.  E de tal maneira isso nos envolve que estamos pensando que essas palavras da hora da “Paixão” são mesmo de Cristo, e que aquelas “orações” saíram da boca de Cristo.

Alguns exemplos: “Ofereci as minhas costas para me baterem  e as faces para me arrancarem a barba; não desviei o rosto de bofetões e cusparadas” (Is.50,6); “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes”(Sl.21,1); “Esperou no Senhor, que ele o salve, se é que o ama”(Sl.21,9); “Traspassaram minhas mãos e meus pés, poderia contar todos os meus ossos; eles me olham, observando...”Repartiram entre si as minhas vestes, e lançaram sortes sobre a minha túnica"(Sl.21,19).  Os redatores da Paixão foram buscar todas essas expressões no Antigo Testamento. Essas leituras na Sexta feira Santa são do profeta Isaías, e dão a ideia que são sobre Jesus mas é sobre Israel, que Isaías comparava a um Servo do Senhor, e por isso estes trechos são chamados “o Canto do Servo”. Vejamos: “Ei-lo o meu servo será bem sucedido, sua ascensão será ao mais alto grau. Assim como muitos ficaram pasmados ao vê-lo, tão desfigurado ele estava, que não parecia ser um homem ou ter aspecto humano. Era desprezado, o último dos mortais, homem coberto de dores, cheio de sofrimentos; passando por ele tapávamos o rosto, tão desprezado que ele era, não fazíamos caso dele. A verdade é que tomava sobre si nossas enfermidades e sofria ele mesmo nossas dores; e nós pensávamos que era um chagado, golpeado por Deus e humilhado! Mas ele foi ferido por causa de nossos crimes; a punição a ele imposta era o preço da nossa paz, e suas feridas, o preço da nossa cura. Todos nós éramos como ovelhas desgarradas, cada qual seguindo o seu caminho, e o Senhor fez cair o pecado de todos nós. Foi maltratado e submeteu-se, não abriu a boca. Quem se preocupa com a sua origem? Foi eliminado do mundo dos vivos; e por causa do pecado do meu povo foi golpeado até morrer. Deram-lhe sepultura entre os ímpios, um túmulo entre os ricos porque não praticou o mal nem se encontrou falsidade em suas palavras. O Senhor quis macerá-lo com sofrimentos. Oferecendo sua vida em expiação, ele terá descendência duradoura e fará cumprir com êxito a vontade do Senhor. Por esta vida de sofrimento alcançará luz e  uma ciência perfeita. Meu servo o justo fará justos inúmeros homens, carregando sobre si suas culpas. Por isso compartilharei com ele multidões e ele repartirá suas riquezas com os valentes seguidores, pois entregou o corpo à morte, sendo contado como um malfeitor; ele na verdade resgatava o pecado de todos e intercedia em favor dos pecadores” (Is.52,13-15 ss).

Estas palavras são do profeta Isaías lamentando os sofrimentos e os martírios do povo de Israel quando chegou do cativeiro da Babilônia. Por ser um cântico e uma poesia foi chamado o Canto do Servo. E o servo era o povo de Israel. Está bem evidente, como ilustram os estudiosos que aquele povo, o povo de Israel considerado o “servo do Senhor” por aquela vida de sofrimento iria alcançar luz e uma ciência perfeita (Is.53,11). Como diz o ditado, iria aprender com a própria experiência e ter mais juízo. Aliás, enquanto neste hino o profeta trata o povo como uma pessoa, um “homem”, por outro lado diz “eles”. “Eles já receberam duas vezes mais do que os pecados que cometeram”(Is.40,2).

Quase concluindo, é evidente que a teologia do Messias de Pedro tinha toda a vantagem em aplicar este cântico do Servo a Jesus porque assim desviava a atenção de toda a Igreja dos sofrimentos do povo sofrido. Reparemos que ainda hoje não será ainda assim? Nas Vias Sacras da Quaresma para quem dirigimos nossa atenção, nosso olhar e nossa compaixão? Não é para o Cristo nos Quadros e na cruz? Ainda bem que nas últimas vias sacras da CNBB se tem voltado já a atenção e os olhares para o povo sofrido, o povo de São Francisco, como violência, salário, desmatação da Amazônia, e segregação racial.

Conclusão. Para a corte dos Papas foi levado o Messias de São Pedro. Para o povo foi levado o Messias de São Francisco. O Messias de São Pedro construiu a teologia medieval que chegou à Idade Moderna, que quis iniciar uma crítica e uma outra orientação para ela, com o aporte das mudanças e das luzes e da inteligência do Renascimento, e das novas ciências. Entre esses aportes e provocações estava a teologia da libertação, como fruta madura das outras ciências em curso. Antes de avançarmos vem ao caso uma citação da Carta de Tiago:”Irmãos, imaginai que na vossa reunião entra uma pessoa com anel de ouro e bem vestida, e também um pobre com sua roupa surrada, e vós dedicais atenção ao que está bem vestido, enquanto desprezais o pobre” (Tg.2,3). Aí estão descritas as duas teologias do Messias do Pedro e do Messias de São Francisco. Não será que a teologia de Roma se recusou a aceitar a teologia do Messias de São Francisco persistindo em recusar a teologia da libertação? Vós dedicais atenção ao que está bem vestido enquanto desprezais o pobre”.

P.Casimiro João    smbn

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domingo, 3 de abril de 2022

Primado de Pedro:Naquele tempo estava-se fabricando a teologia do primado de Pedro (Lc.5,3).

Era pelo final do século primeiro depois de Cristo, e algumas décadas mais tarde, quando os redatores do evangelho de Lucas escreveram: “subindo numa das barcas, que era de Simão, pediu que se afastassem um pouco da margem. Depois sentou-se e, da barca, ensinava as multidões”.(Lc.5,3).

Esta cena, além de ser uma parábola sobre a vocação dos apóstolos, é uma apologia do que estava sendo formado sobre o primado de Pedro. Eis alguns sinais: a barca, que é a Igreja, e sentado, que significava a autoridade do mestre na missão do ensino. Não passa pela cabeça de ninguém que Jesus podia ser escutado “sentado numa barca” por uma multidão  dispersa lá na praia. Como disse, estava-se fabricando a teologia do primado de Pedro onde tem o seu paralelo em Mt.16,16. (blog www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br 12/12/21). E isto tinha que ser à semelhança com o imperador romano. Na verdade, quando o império começava a desmoronar-se a Igreja começava ocupando o lugar do império: na autoridade, no fausto, no palácio, no mando e nas vestes. As vestes do imperador passaram para o Papa e os bispos, como veremos mais adiante. Inclusive os eclesiásticos começavam a exercer suas funções por meio de serviços pagos.

Por outro lado, havia duas chaves para a colação da auréola de autoridade do Papa: a primeira vinha do Antigo Testamento na figura do Sumo Sacerdote, (Cf.Hb.4,14); A segunda era a figura do imperador romano que o Papa assumia. Este arcabouço que funcionou em toda a Idade Média até há bem pouco tempo, estava sendo colocado agora nos seus alicerces. No Antigo Testamento o sumo sacerdote exercia as funções eclesiásticas, e a missão política junto e de acordo com o rei. Assim acontecia também na época da colonização romana e com a colonização da Europa sobre os povos das colônias. A chancela da autoridade absoluta do sucessor de Pedro foi feita nesta época. A afirmação contundente “toda a autoridade foi-me dada no céu e sobre a terra” (Mt.28,20) vem dessa época como os episódios das chaves(Mt.16,18; Cf. blog www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br, 10/9/21). Não era nada mais do que chancelar e juntar no primado a autoridade do sumo sacerdote e do imperador. Esta teologia começava a fazer parte do imaginário de todos os Papas.

Passando das formulações do duque Hildebrando, que era o jurista do tio, o imperador Henrique VIII da Baviera, o qual desse cargo passou a ser eleito Papa, o Papa Gregório VII (1075). Nos seus 27 ordenamentos chamados de “Dictatus Papae” (os Privilégios do Papa) de onde vou destacar os principais: 1.O Papa pode julgar todo mundo, e não pode ser julgado por ninguém; 2. O Papa tem o poder de investir e o poder de depor os imperadores; 3.Receber os dízimos de todos os Estados; 4.O Papa não pode errar nem nas coisas divinas e nem humanas; 5 Somente o Papa pode usar as insígnias imperiais; 6. O Papa é somente inferior ao próprio Deus; 7.Os Príncipes devem beijar os pés do Papa.

Embora nunca fosse proclamado o dogma da infalibilidade nessa época no entanto era a prática e a teologia formada. Estavam sendo colocados os pilares para uma ditadura da Igreja. Até que chegou a vez de ser definido o dogma da infalibilidade do Papa com a pessoa de Pio IX em 1789. Porquê? Pio IX proclamou o dogma foi numa época em que ele estava em baixa no seu prestígio, e em que ele não aceitava as teorias modernas do Renascimento, do Iluminismo, da filosofia da “Dúvida” e da declaração dos Direitos Humanos, como a liberdade de religião e liberdade de consciência, que ele intitulava como “a peste da humanidade”. No entanto todas essas teorias são agora aceitas por todas as nações e pela cultura moderna e também pela Igreja.

Também observamos que depois de ter escrito o documento “Syllabus” em que condenava todas essas teorias, finalmente sonhava e proclamou a abertura do Concilio Vaticano I onde usou de todos os subornos e “propinas” para que os cardeais votassem na “infalibilidade do Papa”, pelo que muitos, não concordando, deixaram a Sala do Concílio. (Hans Kung, “A Igreja tem salvação?”. Na verdade, desde essa hora a validade desse dogma está sendo colocada em causa, inclusive o Papa Leão XIII (1878) não o acatou.(H.Kung.c.p.166). Assim como também as Faculdades teológicas e o Episcopado em geral também manifestaram oposição (o.c.p.158). Isto na esteira do próprio Santo Agostinho que já na época dele declarou: “ a maior autoridade da Igreja está nos Concílios, e nem estes têm infalibilidade” ( H.Kung,o.c.p.83).

Voltando agora na historia para avaliar, como dizíamos, como era a vida do imperador e dos reis antigamente no Antigo Testamento? Comecemos pelo mito de Davi e Salomão, como era a vida deles em comparação com os outros reis dos povos? Tinha alguma diferença? Vejamos quantas mulheres e quantas concubinas tinha Salomão? “700 esposas e 300 concubinas”(1Rs.11,3) . E Davi? “sete esposas e dez concubinas”(id.) o que soa tão ridículo quanto o atual presidente do Brasil que só tem uma tecla para falar sobre a família e sobre o aborto, quando ele mesmo já está no 3ºcasamento. Parece a imitação do Auto da Compadecida de Ariano Suassuna em que os “defensores da moral e dos bons costumes são os mesmos que corrompem o povo e a sua dignidade”. E na “corte” em que se transformou o papado na Idade Média, o que diz a história sobre a eleição dos Papas, sobre a ganância, subornos, e propinas? Sem falar em problemas morais muito semelhantes aos de Davi e Salomão?

Avançando para as nações “cristãs”: como é a vida de deputados , e “colarinhos brancos”? Como avaliamos a vida de uma “Flordeliz”? Será um único caso? E não somos um país “cristão” e com a fama de ser o pais com maior número de batizados do mundo? E como é a vida das famílias no mundo, e não é igual no Brasil? Poderá se dizer: mas nós temos missa, Bíblia, e confissão...Lembremos  que outras religiões também rezam e têm também conventos e mosteiros ou “monastérios” como lhe chamam. E nessas religiões têm monges também.

Conclusão. Nos países comunistas tinham tortura e prisões e sumiço de gente. Repare: na época da ditadura aqui tinha também tortura, prisões e sumiço de gente do mesmo jeito. Tudo igual como nesses países e como nos reis dos antigos tempos. Uma pergunta final: nos jugamos diferentes; os “santos”, os  “escolhidos”. Mas não seria bom pensar que os “outros” também são “os santos”, os “bons” e “os escolhidos”? Com as mesmas práticas que nós chamamos “perversas” e com as mesmas orações ao mesmo Deus? Voltando ao mesmo titulo “Naquele tempo estava-se construindo a  teologia do primado de Pedro”.

P.Casimiro João    smbn

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