sábado, 27 de junho de 2020

A justificação pela Fé


Parece estranho, mas os estudiosos não sabem quando e por quem a comunidade de Roma foi iniciada. 

Quando Paulo escreveu a Carta aos Romanos, a comunidade de Roma já existia desde a época do ano 40 d.C. A tradição de que ela foi fundada por Pedro não tem base histórica (Eugene Boring).

O que se sabe é que a comunidade cristã começou com cristãos judeus dentro das Sinagogas de Roma. O motivo é que por séculos houve uma grande Comunidade judaica em Roma, e que sempre quiseram se porta como bons cidadãos de Roma para boa convivência.

Quando Paulo formulou a Carta aos Romanos, ele tem em vista que a comunidade cristã, além da Sinagoga, ela se reunia também nas casas particulares, em reuniões familiares.

Esses cristãos eram de origem judaica, mas já de mistura havia comunidades de pagãos convertidos. E assim entre uns e outros estavam acontecendo dificuldades e desentendimentos de convivência por conta de sua relação com o tronco ou herança paterna do judaísmo original.

Foi aí, nesse contexto, que esses cristãos receberam a Carta aos Romanos. Os historiadores sabem que São Pedro ainda nunca tinha ido em Roma, e nem o São Paulo também não. 

Portanto, digamos, uma comunidade ou comunidades que surgiram como brotos espontâneos do Judaismo das Sinagogas por judeus messiânicos que foram simpatizando com a ideia do messianismo do Jesus de Nazaré e dos cristãos que cada vez chegavam mais vindos de Jerusalém.

Aí começou a surgir a iniciante igreja de Roma, sem a intervenção nem sequer de nenhum dos apóstolos, ou missionários “oficiais”. E notemos que nessa época mais de 4.500 milhões de judeus moravam fora da Palestina, sobretudo distribuídos nas cidades de Roma e Alexandria.

Essas comunidades de judeus cristãos convertidos se preocupavam com continuar ou não com a circuncisão, a observância do sábado, e com as leis alimentares. Apesar do que tinha sido já resolvido em Jerusalém, mas eles nem tinham muito conhecimento.

O palco estava montado para conflitos com missionários judaicos cristãos que por influência de São Paulo proclamavam que qualquer um podia tornar-se cristão sem ter que passar pelas leis do Antigo Testamento.

Mas como? Se eles ainda estavam ouvindo cada vez essas leis nas Sinagogas dos sábados? Isto para os cristãos que vinham dos judeus. 

E para os cristãos que vinham dos pagãos? Para estes, a questão era se alguém poderia se tornar cristão sem se tornar primeiro judeu observante. Deveria haver uma igreja cristã para os judeus, e outra igreja cristã para os pagãos?

Aí São Paulo, quando de longe ouviu estas coisas resolveu escrever uma Carta aos Romanos. E eles ouviam muitas vezes nas Escrituras lidas na Sinagoga, do Antigo Testamento que “ era maldito quem não mantém as ordens desta Lei, não as colocando em prática” (Dt.27,26). 

E ainda sobre a “maldição da cruz”: “Se um homem sentenciado à pena de morte for executado e suspenso a uma árvore ele se torna um maldito de Deus” (Dt.21,23).Na Carta aos Romanos São Paulo quis clarear essas questões e pôs os pingos nos is, pondo a doutrina em Sete itens: 

1)- Abraão foi justificado pela confiança em Deus (Gn.15,6). 2)- Todo o que crê é herdeiro da fé de Abraão (Rom.10,4). 3)- Cristo nos redimiu da maldição da cruz ao recebê-la em nosso lugarem vez de maldição tornou-se bênção e salvação. (Rom.8,1 e Gal.3,13). 4)- Deus não é só Deus dos Judeus mas também Deus dos pagãos e justifica pela fé os circuncisos e também os incircuncisos.  5)-Cristo é o fim da Lei, para a justificação de todo o que o que crê.(Rom.10,4) 6)- Não são os filhos da carne que são os filhos de Deus mas os filhos da promessa é que são considerados como descendência (Rom.9,8). 7)- O cumprimento da Lei exige salário: quem cumprisse a Lei tinha que cobrar a salvação como salário e preço devido. E assim anularia a salvação trazida por Jesus na cruz e a tornaria inútil.(Rom.8,38)

Esta teologia de São Paulo se baseia numa Cristologia adâmica. O que significa dizer que como todos somos Adão por herança de criação, todos somos Cristo por herança de salvaçãoComo todos passamos por Adão, todos temos que passar por Cristo. Isto porque Cristo foi o segundo Adão, nesse entendimento de São Paulo. E nesse entendimento desenvolveu a sua Cristologia e a sua teologia.

Esta interpretação da Cristologia adâmica de São Paulo teve muita influência em Santo Agostinho, em Tomás de Aquino, na Idade Média, e em Lutero. Hoje em dia temos que dar o desconto e descartar o fundo cosmológico-mitológico adâmico, antropológico e gnóstico, e bíblico-hermenêutico em que se apoia.

Mas não tem dúvida que ainda hoje faz parte do imaginário e das estruturas milenárias da aceitação de hoje.
P.Casimiro SMBN www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br

domingo, 21 de junho de 2020

A origem dos ditos “EU SOU” de Jesus nos evangelhos de João e de Mateus.

A origem dos ditos “EU SOU” de Jesus nos evangelhos de João e de Mateus.

Os primeiros pregadores cristãos partiram do imaginário do Messias do Antigo Testamento para anunciar Jesus. Mas por onde começar para pregar o Cristo para aqueles que não estavam buscando por um Messias?
Deveria alguém instruí-los primeiro na visão de um mundo bíblico e judaico e só depois inculcar-lhes lentamente a esperança messiânica? Ou poderia alguém começar com eles no ponto em que eles estavam?
Para os judeus, começavam pelo Messias prometido partindo do servo sofredor mais que os vivos e os mortos, e que era agora constituído por Deus o juiz  “dos vivos e dos mortos” (At.10,42).   Mas para começar a pregação para os pagãos?
O evangelho de São João, nascido na comunidade joanina, colocou Jesus numa encenação fazendo esta pergunta: “ O que procurais?” (Jo.1.38). E como procuravam na deusa Ísis a luz, a vida, o princípio e o fim, então começaram por aí, no próprio terreno que eles estavam.
Nos hinos que o povo cantava para a deusa Ísis, se rezava assim: “EU SOU a que tem a luz; EU SOU a primeira e a última; EU SOU a esposa e a virgem; EU SOU a casada e a solteira; EU SOU a mãe e a filha; EU SOU  a estéril e com numerosos filhos; EU SOU os braços da mãe.
Então eles só se deram ao trabalho de transferir e adaptar todos esses EU SOU para o Messias, o que vem em vários lugares do evangelho de João: “EU SOU o pão da vida; “EU SOU a videira; “EU SOU a verdade e a vida; “EU SOU a ressurreição e a vida; “EU SOU o caminho; “EU SOU a porta; “EU SOU a luz do mundo.
Notemos que em Mateus aparece menos vezes “EU SOU, nas tem outra fonte. Mateus tinha o objetivo de explicar que Jesus era o cumpridor de todas as perfeições do Antigo Testamento. Por isso os “EU SOU, na sua versão representam esse objetivo.
Por outro lado havia ainda outro recurso para os gregos, o LOGOS que caía bem tanto no ambiente dos judeus como dos gregos. Para os judeus, o logos era a Sabedoria pré-existente que acompanhava Deus em todas as obras da criação como arquiteto (Prov cap.8). 
Para os gregos era a mesma SOFIA (Sabedoria), nascida de Deus e que era também a criadora da matéria, já que Deus no universo deles era o PLEROMA, que era o conjunto de todas as perfeições e não se podia misturar com a matéria que era má. Por isso tinha a Sofia que era o demiurgo a Sabedoria ou Logos criador.
Um último item aproveitado também pelos primeiros pregadores era a ideia corrente que nas religiões antigas tinha histórias de divindades que transformavam água em vinho. Então não tinha melhor do que começar o evangelho de São João com essa cena da transformação da água em vinho. 
Nas ideias brilhantes daquela época estava previsto que chegaria um dia em que a terra produziria 10 mil vezes mais, e uma videira daria mil ramos, e cada ramo mil cachos de uvas. Por isso o Messias dos judeus se comparava a esse prometido poderoso que transformava mais de 120 litros de água no melhor vinho, e cinco pães em alimento para cinco mil pessoas.
É belo comparar situações. Os antigos hebreus receberam dos povos vizinhos cenários como o “cordeiro pascal” que vinha do sangue dos carneirinhos que eram sacrificados e jogados sobre os currais do gado e protegiam contra os espíritos da floresta. 
Então eles transformaram essa cerimônia no sangue jogado nos batentes das portas, primeiro contra os espíritos e depois contra o Faraó no Egito. A Igreja avançou e fez desse cordeiro  a figura de Nosso Senhor como o “Cordeiro de Deus”.
Assim também no início do cristianismo aconteceram estes cenários. A Igreja continuará avançando e compartilhando cenários e imaginários dos vários povos e culturas, como noutro dia falei no tema “ a descolonização da teologia”, porque num grande período a Igreja só tinha a cultura da Europa e dos países colonizadores.
P. Casimiro SMBN www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br

domingo, 14 de junho de 2020

UM JESUS DE CARNE E OSSO


A disputa inicial sobre Jesus era se ele era humano, isto é, corpo humano, de “carne e osso”.

A fé de muitos dos primeiros cristãos da comunidade joanina (de São João) andava muito misturada com o gnosticismo que dizia que Jesus só tinha aparência de um corpo humano, mas ele seria só um ser divino.

Veja os sete princípios do gnosticismo: 1. Desconforto com este mundo; 2. Desprezo pelo elemento carne e matéria; 3. Ansiedade de deixar as tarefas desta vida; 4. Este mundo vive deslocado do seu eixo que é o logos; 5. A ideia de que havia seres espirituais que pertencem ao mundo divino e que podiam assumir forma humana  e comunicar conhecimentos secretos; 6. A Sofia ou Sabedoria, ou Logos que era o deus vindo do seio do Pleroma é que sustenta o alento dos que se sentem peregrinos nesta terra; 7. O Cristo pré-existente tendo compaixão se revestiu da carne de um ser mortal para vir libertá-lo, mas se separou dele e voltou para o céu quando essa carne foi crucificada.

O evangelista João vivia muito preocupado com isso, e na 1ª Carta volta muito a essa ideia. “Todo o espirito que não proclama que Jesus não se encarnou não é de Deus” (1 Jo, 4,3). 

E no evangelho vem nesta direção na ocasião da multiplicação dos pães, quando o evangelho se refere que quem acredita em Jesus é acreditar que ele é verdadeiramente um ser humano com corpo e sangue, “carne e osso”.

Acreditar em Jesus é alimentar-se da sua pessoa de carne e osso como objeto da fé. É a minha pessoa de carne e osso que vocês têm que acreditar, “que engolir” assim como os vossos pais engoliram o maná no deserto. (Jo.5,49).

Por isso vemos que “desde então muitos dos seus discípulos se retiraram e não andavam mais com ele”(Jo.6,66). 

Estes discípulos eram cristãos da comunidade da época de João. Artifício do gênero evangelho colocando cenas da época como sendo acontecidas com Jesus.

São João não coloca no seu evangelho a instituição da Eucaristia como os outros evangelhos. Coloca esta para explicar as outras.

Muito trabalho para um único objetivo: explicar que a pessoa de Jesus não era um ser divino habitando um corpo carnal, mas um Jesus de carne e osso.

sábado, 6 de junho de 2020

O QUE SIGNIFICA MISTÉRIO



Bom, que coisa, mistério significa coisa que não podemos entender. O que você quer dizer com isso?

Quero dizer que mistério não significa coisa difícil de entender, não, mas coisas ocultas para os outros, que não podem nem devem ouvir, nem desconfiar. Então mistério significa segredo.

Etimologicamente e historicamente é este o significada da palavra mistério. É um segredo que não é para dizer a ninguém

Exemplo: Na África tem três dias de aprendizado que é feito durante a noite, três noites e três dias na floresta em que os antigos juntam os adolescentes e as adolescentes e lhes comunicam os segredos dos adultos. Noutros locais é um mês inteiro. Essa moçada quando saem dali não podem falar pra ninguém, senão serão castigados. É o segredo das tribos e dos clans.

Esses três dias e três noites que os adolescentes passam têm o nome de iniciação. E os que passam aí chamam-se iniciados. Antes não era iniciados. Quando há alguma coisa que numa reunião é preciso dizer, o chefe diz: “Quem não é iniciado tem que sair. E os que não são iniciados saem.

Na primitiva Igreja também era assim. Os que passavam pela iniciação depois não podiam falar isso com ninguém dos de fora. Era o segredo. Por exemplo, nas celebrações em que tinha a eucaristia, quando chegava o momento da consagração do pão, o presidente dizia: “agora quem não é iniciado tem que sair. E os que não eram iniciados saíam.

A palavra segredo, em grego é “mysterion”. E ela entrou para as línguas modernas. Porém, nas nossas línguas ela tomou uma conotação sacral, ou sagrada, só reservada para as coisas sagradas. 

Por isso tomou o status de coisa divina que não se pode mexer, quase como tabu. Porém é, e continua sendo simplesmente como segredo. Quem quiser ficar por dentro tem que ter a iniciação. É por isso que a Igreja católica está voltando a chamar a catequese de Iniciação à Vida Cristã”.

Na África, por exemplo, as crianças não iniciadas não  põem ver um morto nem ir nos velórios nem no enterro. É sagrado, diríamos lá tem mistério.

Na antiguidade também havia os “Segredos” das religiões tradicionais. Os iniciados aprendiam segredos mas não podiam compartilhar com os de fora. 

Os iniciados era eleitos por escolha e participavam no culto. O senhor adorado no culto do mistério era um deus morrendo e ressurgindo correspondendo ao ciclo anual. E ele podia libertar os outros neste mundo e no próximo.

O culto dos mistérios era tipicamente seguido de uma refeição festiva. Nessa comunhão de refeição o senhor do culto está presente e algumas vezes é simbolicamente comido. 

Depois de serem iniciados e aprenderem a história que estabelece sua identidade, os iniciados assumem para si a vida do deus para si mesmos. 

Também nestas refeições de comunhão havia muitas vezes um bode expiatório e uma ritualização do abate do animal para tirar simbolicamente  os pecados e desgraças das populações. Aí se sacrificava um animal ou até uma pessoa a fim de salvar a cidade.

Os primeiros missionários cristãos adotavam e adaptavam, de fato, muitos temas e práticas daquele mundo, que era o seu próprio mundo de pensamento. O cristianismo primitivo, como uma resposta ao evangelho tinha muito em comum com outas religiões da época.

Nos mistérios também se celebravam os semideuses imortais, homens divinos e figuras salvadoras. No mundo greco-romano as fronteiras que separavam os seres humanos e dos deuses não eram tão firmes. 

Pregadores admiráveis e grandes curandeiros podiam ser considerados como deuses (Cf. At. 14,18), onde os habitantes de Listra queriam sacrificar a Paulo e Silas porque os consideravam como “deuses”.

Deuses podiam disfarçar-se em seres humanos. Outros eram nascidos de mãe humana e de um deus, e ressuscitavam mortos. Há um conto popular em que uma família ofereceu hospitalidade a dois deuses sem o saber.

No primeiro século da igreja viveu um desses seres chamado Apolônio de Tyana, mas a vida dela só foi escrita cem anos depois. Apolônio nasceu de uma maneira miraculosa de mãe humana e do deus Protheus. 

Ele expulsava demônios, curava doentes, e ressuscitava mortos. Acalmava as ondas e inundações do mar. Andava entre animais ferozes  e não lhe causavam dano.

Há uma carta dele autêntica a seu irmão Hestiacus  que diz: “Outros homens me consideram igual aos deuses, e alguns deles como um deus, e até agora sempre meu próprio país me ignora, esse país para o qual em particular eu lutei a fim de ser uma pessoa distinta” (Cf. Eugêne Boring).

O imperador Diocleciano quis condená-lo e o acorrentou, porém ele rompeu as cadeias. Depois desapareceu da sala do tribunal e entrou no templo de um dos deuses e aí desapareceu de novo em meio ao coro dos coristas celestiais dizendo: “vem da terra para os céus, vem”.

Encerrando, vemos como navegamos em palavras que podem-nos assombrar, mas a culpa não é das palavras, é do nosso imaginário.

Se você não desse esse imaginário à palavra “mistério” iria ficar mais libertado para pensar melhor, não ficar tão aprisionado nas suas ideias.

Claro que que as religiões querem mesmo lidar com esse imaginário porque sempre elas querem se impor  com o medo, que é o aprisionamento da liberdade. P.Casimiro SMBN www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br