segunda-feira, 31 de julho de 2023

“Não terás outros deuses diante de mim”: Controvérsias entre católicos e protestantes.


 

“Não terás outros deuses além de mim. Não te prostrarás diante destes deuses” (Êx.20).

Em primeiro lugar, Israel tinha outros deuses ao lado de Javé, porém Javé sendo o maior no panteão dos deuses de Israel. Inclusive tinham a deusa Aserah, compondo o casal dos deuses. Com o andar dos tempos os israelitas se desfizeram desta deusa, que era a rainha dos céus, e a cognominaram de “Sabedoria”, que acompanhou as obras da criação ao lado de Deus desde o principio, desde os fundamentos,(Prov.8,22-36). Nesses primeiros tempos, os anjos, ou “Mensageiros” também eram deuses menores ao serviço do Deus-Javé. Por isso ganharam o nome de “mensageiros” ou anjos.

Em segundo lugar, essas palavras do “Monte Sinai” não são de Moisés. São de 500 ou Mil anos mais tarde. Como disse, Israel tinha outros deuses junto com Javé. Em dada altura eles resolveram ficar só com ele, o que nunca conseguiram. O nome da “Aserah”, a Rainha dos Céus aparece 40 vezes na Bíblia. E ficaram registrados no livro do profeta Jeremias os ecos de quando era adorada como deusa: “Os filhos espalham a lenha e os pais acendem o fogo, e as mulheres preparam a massa para fazerem bolos para a Rainha dos Céus” (Jer. 7,18). E ainda: “As mulheres de Jerusalém dizem: Faremos o que nós quisermos e queimaremos incenso à Rainha dos Céus; apresentaremos a ela sacrifícios tantos quantos quisermos, tal como já fizemos nas cidades de Judá e nas ruas de Jerusalém. E nesses dias tínhamos abundância de comida, tudo nos corria bem e éramos felizes.” (Jer.44,17). Salomão tinha uma multidão de deuses e “700 concubinas”. Davi tinha também os seus deuses e muitas concubinas. (Cf. Finkelstein, Arqueologia, e Moraes, “O Pentateuco”, São Paulo, Fonte Editorial, p.189-190; Cf. também Erick Zenger, Os Livros da Torah, São Paulo, Loyola 2003, SBN,85).

O Judeismo só ficou uma religião monoteísta no regresso do cativeiro da Babilônia, por volta do séc. II a.C.na época dos nacabeus. Notemos que o primeiro Estado monoteísta do mundo nem foi Israel mas o rei Akinatón. (www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br.14/3/21). Estas palavras do "Monte Sinai" refletem a época da monarquia e a briga da monarquia dividida entre os filhos de Salomão, onde cada um tinha a adoração aos seus deuses (do Norte e do Sul – Samaria e Judá), nos anos de 700 a.C. Na época do reinado de Josias houve um grande movimento de escrita, que serviu para reforçar as ambições de Josias.  Foi nesta época que a redação sacerdotal fez uma nova versão do primeiro rascunho atribuído a Moisés mas que não foi Moisés. Por isso ficou conhecida como a versão sacerdotal para defender os seus direitos e os seus serviços no templo de Javé, contra os sacerdotes dos outros deuses. Porque a redação do primeiro rascunho chamava-se javeista para estabelecer o culto a Javé, pois antes o primeiro deus de Israel tinha sido o deus “El” ou Eloim. Então a redação do primeiro rascunho foi pelos anos de 600 a.C. A redação do segundo texto nos anos de 450 a.C. A época convencional de Moisés, é dos anos de 1400 a.C. E isso de atribuir tanto a primeira como a segunda redação tudo a Moisés obedecia a um padrão usado na época, em que os escritores atribuíam a uma pessoa famosa os seus escritos. Aliás não só aqui, mas o Novo Testamento, Atos dos Apóstolos, Cartas e os evangelhos estão cheios deste artificio literário. Hoje nós podemos chamar isto de “um arranjo literário”.

Então as palavras da Bíblia não foram escritas ou ditadas por Deus? Chamo aqui o documento da Pontifícia Comissão Biblica de 1944 onde diz textualmente que está enganado quem atribui a escrita da Bíblia “palavra por palavra como sendo de Deus”: “A Palavra de Deus foi expressa em linguagem humana e foi redigida sob inspiração divina por autores humanos com capacidades e recursos limitados. Por esta razão, os que querem tratar todo o texto bíblico como se tivesse sido ditado palavra por palavra pelo Espírito não chegam a reconhecer que a Palavra de Deus foi formulada em uma linguagem e uma fraseologia condicionada por uma ou outra época; O fundamentalismo tem igualmente tendência a uma grande estreiteza de visão pois considera conforme à realidade uma antiga cosmologia já ultrapassada, porque encontra-se na Bíblia” (Pont.Com.Bíblica  São Paulo, Loyola, 1944, pag.40-41).

Resumindo, as etapas da escrita do Pentateuco ou Torá, onde vem o trecho em questão do “Monte Sinai” que estamos analisando são as seguintes: Havia uma primeira tradição a que chamamos de rascunho que era a tradição eloísta porque chamava a Deus com o nome de Eloim (600 a.C.) Depois houve uma outra tradição, oral ou rascunho, a tradição javeista porque chamavam a Deus por Javé (Iawheh), (450 a.C.) E ainda uma terceira  tradição ou redação chamada sacerdotal feita por uma turma de sacerdotes depois do exílio da Pérsia para defender os seus direitos e para tratarem do sacerdócio, dos sacrifícios, das festas e do culto. Este foi o último arranjo ou retoque, e foi dele que surgiu o livro do Levitico. Historicamente, nos registros das grandes Bibliotecas do Egito e da Pérsia e da Babilônia não vem nenhum registro sobre as histórias da Bíblia ou dos seus principais personagens, antes do ano 650 a.C. O fragmento mais antigo conhecido do Pentateuco é um cântico de "boa sorte" do ano 600 a.C. (Israel Finkelstein, Arquiologia, p.68-69).

Conclusão. Do que foi exposto, faltaria ainda a pergunta: E a história do bezerro de ouro como fica? Esses são outros quintos. É uma crítica dos profetas de Judá (450 a.C) contra o reino do Norte porque ele quis representar Javé lá nos seus templos na forma de um bezerro, e colocaram também como sendo de Moisés, simples assim. (Mark S.Smith, “O Memorial de Deus” Paulus 2006, pag.88-89).

P.Casimiro João   smbn

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segunda-feira, 24 de julho de 2023

Uma parábola, o “endemoninhado” e os dois mil porcos de Gerasa.


 

O evangelho está cheio de parábolas. Muitas vezes os evangelistas referem: “naquele tempo Jesus contou esta parábola”. Porém, outras vezes poderão ser os próprios evangelistas que compunham parábolas, aquilo que era chamado de “midrash” pelos judeus. Compartilho a opinião dos estudiosos que têm a narrativa do “possesso” de Gerasa como uma parábola (Cf. Warren Carter, o evangelho de Mateus, p.281).

Atendamos a vários elementos, tendo em conta o seu significado e referência, que lemos em Mc.5, 1,sgs. A “outra margem do lago” significa a terra dos pagãos. As correntes que amarravam os “possessos” representam as correntes do império que amarravam o povo com correntes. Os porcos que se jogaram no mar significam os “cavalos e cavaleiros” do faraó que foram afundados no mar, vencidos por Moisés, e agora é com o novo Moisés, Jesus.

Os Judeus tratavam os estrangeiros como cães, e também como porcos; para eles Roma e os romanos eram como porcos pelo motivo que eram como animais impuros. E aqui tem conotação pior para os soldados do império porque naquela região tinham uma Legião. Daí que, na  boca dos possessos, é dito que “nosso nome é legião porque somos muitos”(Mc.5.9). Na resposta à mulher fenícia Jesus terá respondido: “Não é licito tirar o pão dos filhos e dá-lo aos cachorrinhos” (Mt.15,26).

Vespasiano tinha mandado um general na época da revolta judaica para esta região e ali mandou afogar no mar cerca de dois mil judeus, como comenta Flávio Josefo (Flávio Josefo, Guerras). Por seu lado, Herodes tinha mandado construir um templo ali em cima de um cemitério. Veja que os “possessos” viviam “nos cemitérios” e “acorrentados” mas ninguém podia segurá-los. Por isso dai vinha a raiva dos judeus por esse lugar. Raiva e medo.

As lições morais aparecem depois desta análise: Se para os judeus era um ugar de raiva e medo, Jesus não tinha medo, ele era mais forte; “se um homem forte e bem armado guarda a casa a sua casa está segura, mas se vem um mais forte do que ele tira-lhe as armaduras e rouba o que ele tem” (Lc.11,21). Podemos enumerar detalhadamente as seguintes lições: Primeiro, Jesus é apresentado como o novo Moisés; Moisés afundou no mar vermelho os inimigos políticos; para Mateus, Jesus é o novo Moisés que, usando o símbolo dos porcos, vinha no tempo escatológico afundar o império romano simbolizado na manada de porcos. Segundo, os dois homens que ninguém podia dominar e quebravam todas as tentativas eram “uma legião”, e representavam o império romano pois em Gerasa havia uma legião. Terceiro, o mar de Gerasa significava o mar vermelho. Quarto, Os porcos significavam o domínio estrangeiro vencido por Moisés, e agora pelo novo Moisés, Jesus. Em quinto lugar, o medo dos judeus tornava-se o lugar do poder de Jesus.

Conclusão. Neste episódio-parábola estão plasticamente recordados como num quadro de pintura vários elementos do Antigo Testamento, como as águas do mar vermelho, e os conceitos de puro e impuro aplicados aos porcos; já vimos que os espíritos entravam nos corpos das pessoas e traziam as doenças com eles; eles aqui conseguiram também entrar nos corpos dos animais. Águas e mar foram dominados por Moisés lá no tempo antigo, e agora por Jesus, que é soberanamente exaltado nesta parábola-midrash. Cumpre-se assim o provérbio: “o bom pai de famílias sabe tirar do seu tesouro coisas novas e velhas” (Mt.13,52).

P.Casimiro João    smbn

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segunda-feira, 17 de julho de 2023

Olhos são duas estrelas e algumas parábolas de ressurreições.


 

Escritores clássicos falavam em ressurreições, o Antigo Testamento na saga de Elias e Eliseu conta ressurreições. Em Mt.9,23 Jesus foi chamado para ressuscitar uma menina. “Um chefe” falou: “Minha filha acaba de morrer, mas vem, impõe tua mão sobre ela, e ela reviverá”. O texto fala inominalmente de “um chefe”, sem nome e designação, o que por si leva a imaginar sobre o tipo de conto que vai ser esse, do chefe inominado.

Na saga de Eliseu, ele tinha muito trabalho no caso da ressurreição, deitando-se por três vezes sobre o menino” (2 R.4,33). Enquanto que era diferente com Jesus, o que nos mostra outra diferença com significado. No entanto, os “ressuscitados” de que estamos falando tornaram a morrer, tanto os do Antigo Testamento como dos historiadores antigos, e assim também como Lázaro ressuscitado por Jesus, e como o filho da viúva de Naim, e a mesma menina deste chefe. (Cf.J. Batista Libanio, Creio na Trindade, p.59-60). Porém, devemos aceitar que quem ressuscita não poderá mais morrer. Num outro capitulo, Mateus, e somente ele, afirma que quando Jesus morreu no alto da cruz, “os corpos de muitos justos ressuscitaram; saindo de suas sepulturas entraram na Cidade Santa depois de ressuscitarem e apareceram a muitas pessoas” (Mt. 27,53). Em páginas anteriores afirmei que a Bíblia não é histórica, nem geográfica, ela é teológica. (www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br 18/6/23). Assim aqueles livros antigos das ressurreições, como de Flávio Filóstrato e Porfirio que juntamente com o filósofo sírio Jamblico falam de Apolônio de Tiana, homem que ressuscitava mortos. No Antigo Testamento é comentada também a ressurreição ou arrebatamento de Enoque. Como diz a Pontifícia Comissão Bíblica e a encíclica de Pio XII de 1943 "Divino aflante Spiritu"devemos atender ao gênero literário e “aquilo que os autores quiseram expressar”. O que será que esses textos quiseram expressar? Eu afirmo que a intenção deles será a seguinte: que os “homens de Deus” têm a vida de Deus, participam em grau superior dessa vida de Deus e espalham vida por onde eles andam e no que eles tocam. E se Eliseu e Elias participavam tanto da vida de Deus, e Enoque ou o tal Apolônio de Tiana, muito mais Jesus. Como essa teologia está expressa, ela é elaborada em quadros e dramatizações plásticas pintadas com cores e cenas dessa maneira. Hoje em dia temos maneiras de dizer coisas muito altas em palavras muito reveladoras como esta, quando os namorados dizem pra suas namoradas:” os seus olhos são duas estrelas”. Com que vida e alegria e emoção uma pessoa enamorada recebe estas palavras é coisa só de viver aquela situação. Do mesmo modo essas cenas bíblicas transmitem lições morais de maneiras adequadas para a época em que foram escritas, em poemas épicos e sagas que perduram até hoje. Há um exemplo típico de sinais e linguagem que hoje nós não entendemos: aquele de sacudir a poeira dos pés diante das cidades ou pessoas que não receberam os apóstolos:  (Mt.10,14): “Se nalguma cidade não vos receberem e não ouvirem vossas palavras, quando sairdes daquela casa ou daquela cidade sacudi a poeira dos vossos pés”. Explicação: Os judeus quando vinham do estrangeiro, terras de pagãos, tinham que sacudir a poeira dos pés para não entrar com os pés contaminados ou impuros com essa poeira na terra de Israel, porque os estrangeiros eram impuros. E então essas cidades ou pessoas tinham que ser consideradas como  terra impura dos pagãos, por isso a necessidade de sacudir a poeira.

Conclusão. Que a Bíblia e o Antigo Testamento têm sua linguagem própria que não é a nossa, podemos ver nas “ressurreições de muitos justos” na citação de Mateus que referi atrás, Mt.27,53. Essa linguagem vem já do Antigo Testamento segundo a qual os “justos” tinham que ressuscitar para o prêmio de seus tormentos na terra. Já que na vida deles não tiveram quem lhes fizesse justiça por tantos maus tratos, teriam que aguardar uma ressurreição final. Obs: esta fé na “ressurreição” não existia na Bíblia até o séc.II a.C. Só foi incorporada na Bíblia após os escritos dos Macabeus, e após os tormentos infligidos pelo rei Antíoco Epifanes. E em segundo lugar eles traziam essa crença dos Babilônicos quando estiveram lá exilados, só que não tinham ainda escrito na Bíblia. Foi preciso esperar o escritor Daniel nesta época que falamos para colocar na Bíblia essa fé.  Obs. dois: Mesmo assim nem todos os Judeus assumiram isto, porque os Saduceus nunca adotaram a fé na ressurreição. “Os saduceus não acreditavam na ressurreição dos mortos, e nem anjos e nem espíritos.” (At.23. 8).

P.Casimiro João    smbn

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terça-feira, 11 de julho de 2023

Blog e Liturgia Diária: A expulsão dos espíritos” Mt. 9,33.


 

Quando o demônio foi expulso, o mudo começou a falar” (Mt.9,33). Falei no blog anterior que no estudo de Gonzaga Prado a catequese dos judeus era assim: Quando Deus criou os homens no sexto dia, faltava criar os demônios, e criou o espírito mas não deu mais tempo de criar um corpo para cada um deles porque chegou o descanso do sábado, que começava sexta à tarde, e por isso ficaram sem corpo. Então eles ganharam raiva dos seres humanos de tal maneira que cada um começou a entrar no corpo dos homens trazendo consigo uma doença como vingança. E de tal maneira que nos evangelhos os “espíritos maus” andam sempre acompanhados com as doenças: “expulsem os espíritos e curem as doenças”. O resultado é que, para tirar a doenças tem que tirar primeiro o espírito mau que trouxe a doença.“Quando o demônio foi expulso, o mudo começou a falar”(Mt.9,33). (Cf. Espiritos e demônios, Gonzaga Prado www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br de 7/2/21). E hoje nesta liturgia o evangelista do evangelho de Mateus assim fala, para comprovação do dito. A Biblia fala na linguagem daquela época; a linguagem de hoje é outra. Por isso uma leitora do Blog comentava: “é preciso usar uma lupa para entender a Bíblia”. Na verdade confirma-se com a afirmação da Pontifícia Comissão Bíblica quando afirma: “O estudo das múltiplas formas de paralelismo permite um melhor discernimento da estrutura literária dos textos bíblicos que se baseiam numa cosmologia já ultrapassada”. Denuncia também a leitura fundamentalista como sendo “uma grande estreiteza de visão ao analisar certos episódios só porque encontram-se na Bíblia”. E afirma “a necessidade de uma interpretação no hoje do nosso mundo, porque os textos da Bíblia são a expressão de tradições religiosas que existiam antes delas,  os quais foram retrabalhados e reinterpretados para responderem a situações novas desconhecidas anteriormente”. (Pont. Com. Bíblica, 1994).

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segunda-feira, 10 de julho de 2023

Polêmicas do evangelho de Mateus que geraram polêmicas futuras.


 

No séc. III da nossa era levantou-se a polêmica sobre se os cristãos que tinham negado o Cristo e a fé podiam ser perdoados ou não. Os que negavam o perdão baseavam-se no suposto dito de Jesus no evangelho de Mateus quando diz: “aquele que me negar diante dos homens também eu o negarei diante do meu Pai que está nos céus” (Mt.10,33). No entanto, Pedro foi o primeiro a negar Jesus, e Pedro foi perdoado. E aí como ficamos? Porque essa afirmação está então contra o que Jesus fez, poderá ele se contradizer a si mesmo? Desenrolando esta questão temos que ir à história dos escritos dos evangelhos, em várias etapas. Primeiro, os autores escreviam muitos discursos e colocavam na boca de Jesus, como era a cultura daquela época, em que todos os escritores faziam grandes discursos e colocavam na boca dos seus heróis. Segundo, o escritor seguiu a linha do Antigo Testamento, a lei do talião, “olho por olho, dente por dente”, a lei da vingança, por seu lado já copiada do código de Hamurabi. Mas esqueceu do perdão a Pedro. Em terceiro lugar, a época era de perseguição contra os cristãos, na época de Diocleciano, e assim esta sentença tem como pano de fundo a perseguição em tempos perigosos, em que muitos cristãos eram dedurados para serem condenados à prisão ou à morte. Em quarto lugar, a vingança que reina entre os seres humanos, o autor colocava em Jesus. No entanto sabemos que Deus não se vinga e Jesus também não. Em todo o episódio se vê que o autor não teve em mínima consideração o perdão outorgado a Pedro.

Posto isto, voltamos agora ao histórico do cisma que estes versículos causaram. Sabemos que lá pelos anos 200 em diante, a Igreja começava a se organizar na sua hierarquia. Era a época em que já havia bispos e presbíteros, e os inícios da sua liturgia. Pela época da quaresma as comunidades ou igrejas maiores convidavam os que eram conhecidos como pecadores públicos, e os que tinham negado a fé, e lhes impunham penitências, como de afastá-los das celebrações pelo período de 40 dias. Teriam que andar de cabeça raspada e com roupas de penitência, e cinzas. Chegada a Quinta feira Santa eram de novo admitidos à comunidade. Entre esses pecadores públicos estavam os que tinham negado a fé, como dissemos, a quem chamavam de os “lapsi”. Um tal cristão influente, Noviciano, presbítero de Roma era de opinião que esses não poderiam ter perdão. Já Cipriano, bispo de Cartago, dava o perdão, e encontrou apoio em Cipriano, bispo de Roma, e convocaram o concílio de Cartago para decidir a questão. Porém Novaciano e seus seguidores das Igrejas de Gália (França), das Espanhas, as do Norte da África e as da Síria recusaram-se a conceder o perdão. Esta polêmica e cisma prolongou-se até o séc.VII quando caducou por si mesma.

Por aqui podemos ver que a Bíblia nos causa certas armadilhas. Entre essas armadilhas, a saga de Abraão e Lô, quando a narrativa coloca Deus falando com Abraão e Lô como iguais e parceiros. Mormente quando numa dada etapa da narrativa “aparecem três homens” na porta da entrada de Abraão. (Gn.18,1). Primeiro dizendo que é o “Senhor”, depois são “três homens” (Gn.18,2); Mais à frente são “três anjos” (Gn.19,15); mais logo são de novo “três homens” (Gn.19,16); logo depois Lô fala: “meu Senhor”(Gn.19,18). Toda esta saga de Abraão e Lô segue os contos épicos dos gregos, em que os deuses desciam à terra e vinham falar com os homens(cf. www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br 6/3/22). Claro que não dá para tomar à letra estes episódios que fazem parte de uma epopeia muito inteligente daquelas épocas. E quem não estiver atento pode cair na armadilha de tomar à letra, e inventar coisas que o autor não quis dizer. Como diz a encíclica de 1994 sobre este ponto: “A regra suprema para interpretar corretamente os textos bíblicos consiste em encontrar e definir o que o autor quis dizer e estar atentos aos gêneros do discurso ou de escrita que ele utilizou” (Pio XII, 1994).

Conclusão. Como podemos ver, o autor do evangelho de Mateus deve ter-se esquecido do perdão outorgado a Pedro por Jesus, e só tinha na mente a cultura da vingança e do “olho por olho e dente por dente” que ele colocava também na boca de Jesus mas esquecendo o agir de Jesus e levando Jesus a contradizer-se, o que não lhe é licito. Aliás, devemos saber que essa lei do talião era bastante sábia, haja em vista que era para não extrapolar a ofensa recebida, se era só o olho, era para não ferir mais que o olho; se  o dente, era só o dente e assim por diante. Se esse autor vivesse na época da polêmica e do cisma futuro, ele seria também um dos novacianos que negariam o perdão. Isto nos leva a entender que devemos usar uma lupa para lermos os evangelhos e a Bíblia em geral.

P.Casimiro João    smbn

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segunda-feira, 3 de julho de 2023

Quem me viu, viu o Pai; Eu e o Pai somos um., camihos de interpretação


 

A Biblia fala a linguagem do seu tempo. “No que concerne aos evangelhos, o fundamentalismo não leva em consideração o crescimento do trabalho da tradição evangélica, mas confunde ingenuamente o estágio final desta tradição (o que os evangelistas escreveram) com o estágio inicial (as ações e as palavras do Jesus da história”. (Pontifícia Comissão Bíblica – A interpretação da Bíblia na Igreja, São Paulo, Loyola, 1994, p.41). Vale dizer, os evangelhos não são biografia de Jesus: daqui foi para ali, e falou e disse isto e aquilo. “É importante percebermos que há interpretações teológicas nos evangelhos e que cada editor editou e adaptou o material para apresentar Jesus em determinada luz; e o evangelho de João em especial contém muita reflexão pós-ressurrecional em Jesus, algumas das quais são simplesmente postas nos lábios de Jesus. É igualmente importante para as várias Igrejas cristãs ajudar seus fiéis a familiarizarem-se com os estudos bíblicos contemporâneos e aceitá-los”. (H.Kung em “A Igreja tem salvação? p.61). Já dissemos noutras páginas que os escritores da antiguidade escreviam discursos para colocarem na boca de seus heróis. Isto é frequente nos historiadores Heródoto, Tucídedes, e Posidônio da Grécia, como de Fábio Pictor e Tito Lívio de Roma. E colocavam discursos em Platão e outros heróis. E não só, também lhes davam títulos de divinos e de filhos de Deus, para colocá-los no mesmo patamar dos imperadores, como o governante romano Augusto que era chamado de deus, e isto era  um termo comum na mitologia grega. Os reis eram chamados filhos de Deus. Jesus rezava a Deus como Pai. Autores concluem que, no tempo de Jesus, “filho de deus” era geralmente usado para uma pessoa que pensavam “ser delegada por Deus” ou altamente favorecida por Deus. Na teologia hebraica o que é enviado faz um só com aquele que o enviou, digamos sendo como uma só pessoa com ele.(Cf.Raymond Brown, Comentário do Ev.de João vol.I p.534).

“John Hick menciona as razões de alguns cristãos que estão indignados porque as Igrejas os incentivaram por tanto tempo a continuar presumindo inocentemente que o Jesus histórico dissera “eu e o Pai somos um”(Jo.10,30); “quem me viu, viu o Pai”(Jo.14,9), em vez de receber o sábio consenso que um autor sessenta ou mais anos depois, ao expressar a teologia que se desenvolvera em sua parte da Igreja pôs essas palavras na boca de Jesus. Na verdade esses cristãos estão indignados porque as Igrejas de modo geral não os trataram como adultos inteligentes que merecem confiança quanto aos resultados dos estudos bíblicos” (J.Hick, o.c.p.61). “A questão é que os evangelhos foram escritos para expressar o que as comunidades cristãs vieram a acreditar a respeito de Jesus à luz da ressurreição em vez de ser uma biografia. Sem essa percepção os evangelhos vão continuar a ser citados de maneira literalista em um esforço para “provar” que Jesus sabia o tempo todo que era Filho de Deus, Segunda Pessoa da Trindade. Essa maneira de citar os evangelhos, em especial o evangelho de João, às vezes impede as pessoas de considerar seriamente a realidade totalmente humana de Jesus”. (o.c.p.61). E H.Kung conclui: “Muito facilmente a fé no Cristo verdadeiro se torna superstição que acredita num Cristo fictício ou até numa cifra ou num símbolo”(o.c.p.138).

Dizemos que a Bíblia fala a linguagem do seu tempo. Uma ocasião Jesus terá dado o seguinte poder aos seus apóstolos: “expulsai os espíritos e curai todo tipo de doença e enfermidade”. (Mt10,1). Deveríamos pensar que Jesus fez deles médicos, cirurgiões, e especialistas das várias doenças, de “todos os tipos”. E de quebra os bispos, cardeais, padres e também o Papa. Porém isso não acontece. Acontece que está aí a linguagem do seu tempo, qual é? O historiador Gonzaga Prado nos diz que na catequese dos judeus, os judeus explicavam assim: Quando Deus criou os homens no sexto dia, faltava criar os demônios, e criou o espírito mas não deu mais tempo de criar um corpo para cada um deles porque chegou o descanso do sábado, que começava sexta à tarde, e por isso ficaram sem corpo. Então eles ganharam raiva dos seres humanos de tal maneira que cada um começou a entrar no corpo dos homens trazendo consigo uma doença como vingança. E de tal maneira que nos evangelhos os “espíritos maus” andam sempre acompanhados com as doenças: “expulsem os espíritos e curem as doenças”. O resultado é que, para tirar a doenças tem que tirar primeiro o espírito mau que trouxe a doença. .“Quando o demônio foi expulso, o mudo começou a falar”(Mt.9,33). (Cf. Espiritos e demônios, Gonzaga Prado www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br de 7/2/21).

Sobre este assunto faz bem consultarmos a Encíclica de Pio XII sobre a Sagrada Escritura onde diz: ”A regra suprema para interpretar corretamente os textos bíblicos consiste em encontrar e definir o que o autor quis dizer e estar atentos aos gêneros do discurso ou de escrita que ele utilizou” (Pio XII, 1943). E sobre um comunicado da Pontifícia Comissão Bíblica de 1944: “O fundamentalismo insiste de uma maneira indevida sobre textos bíblicos com grande estreiteza de vista pois ele considera conforme à realidade uma cosmologia já ultrapassada” (P.C.B.1944). Um local que ilustra bastante esta afirmação é o episódio da suposta ressurreição de Lázaro (Jo.cap.11). O teólogo João Libanio afirma: “Em qualquer direção que a gente vá só se encontra a seguinte finalidade onde a Marta diz “sim Senhor eu creio que tu és o Filho de Deus que devia vir ao mundo”, ou seja é a intenção teológica da fé na ressurreição dos mortos que vinha do Antigo Testamento. Igual o episódio de Caná e o cego de nascença. Cf. Libanio, Creio na Trindade, Paulus, p.59-60).

Conclusão. Terminamos com a mesma afirmação da intuição de H.Kung sobre teologia e dogmas: “Uma das mais felizes e salutares surpresas do nosso tempo é que em toda essa história eclesial e teológica se pôde afirmar posições com a possibilidade de corrigi-las” (o.c.p.126).

P.Casimiro João    smbn

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