No séc. III da nossa era levantou-se a
polêmica sobre se os cristãos que tinham negado o Cristo e a fé podiam ser
perdoados ou não. Os que negavam o perdão baseavam-se no suposto dito de Jesus
no evangelho de Mateus quando diz: “aquele que me negar diante dos homens
também eu o negarei diante do meu Pai que está nos céus” (Mt.10,33). No
entanto, Pedro foi o primeiro a negar Jesus, e Pedro foi perdoado. E aí como
ficamos? Porque essa afirmação está então contra o que Jesus fez, poderá ele se
contradizer a si mesmo? Desenrolando esta questão temos que ir à história dos
escritos dos evangelhos, em várias etapas. Primeiro, os autores escreviam
muitos discursos e colocavam na boca de Jesus, como era a cultura daquela
época, em que todos os escritores faziam grandes discursos e colocavam na boca
dos seus heróis. Segundo, o escritor seguiu a linha do Antigo Testamento, a lei
do talião, “olho por olho, dente por dente”, a lei da vingança, por seu lado já
copiada do código de Hamurabi. Mas esqueceu do perdão a Pedro. Em terceiro
lugar, a época era de perseguição contra os cristãos, na época de Diocleciano,
e assim esta sentença tem como pano de fundo a perseguição em tempos perigosos,
em que muitos cristãos eram dedurados para serem condenados à prisão ou à
morte. Em quarto lugar, a vingança que reina entre os seres humanos, o autor
colocava em Jesus. No entanto sabemos que Deus não se vinga e Jesus também não.
Em todo o episódio se vê que o autor não teve em mínima consideração o perdão
outorgado a Pedro.
Posto isto, voltamos agora ao histórico
do cisma que estes versículos causaram. Sabemos que lá pelos anos 200 em
diante, a Igreja começava a se organizar na sua hierarquia. Era a época em que
já havia bispos e presbíteros, e os inícios da sua liturgia. Pela época da
quaresma as comunidades ou igrejas maiores convidavam os que eram conhecidos
como pecadores públicos, e os que tinham negado a fé, e lhes impunham
penitências, como de afastá-los das celebrações pelo período de 40 dias. Teriam
que andar de cabeça raspada e com roupas de penitência, e cinzas. Chegada a
Quinta feira Santa eram de novo admitidos à comunidade. Entre esses pecadores
públicos estavam os que tinham negado a fé, como dissemos, a quem chamavam de
os “lapsi”. Um tal cristão influente, Noviciano, presbítero de Roma era de
opinião que esses não poderiam ter perdão. Já Cipriano,
bispo de Cartago, dava o perdão, e encontrou apoio em Cipriano, bispo de Roma,
e convocaram o concílio de Cartago para decidir a questão. Porém Novaciano e
seus seguidores das Igrejas de Gália (França), das Espanhas, as do Norte da
África e as da Síria recusaram-se a conceder o perdão. Esta polêmica e cisma
prolongou-se até o séc.VII quando caducou por si mesma.
Por aqui podemos ver que a Bíblia nos
causa certas armadilhas. Entre essas armadilhas, a saga de Abraão e Lô, quando
a narrativa coloca Deus falando com Abraão e Lô como iguais e parceiros.
Mormente quando numa dada etapa da narrativa “aparecem três homens” na porta da
entrada de Abraão. (Gn.18,1). Primeiro dizendo que é o “Senhor”, depois são
“três homens” (Gn.18,2); Mais à frente são “três anjos” (Gn.19,15); mais logo
são de novo “três homens” (Gn.19,16); logo depois Lô fala: “meu Senhor”(Gn.19,18).
Toda esta saga de Abraão e Lô segue os contos épicos dos gregos, em que os
deuses desciam à terra e vinham falar com os homens(cf. www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br
6/3/22). Claro que não dá para tomar à letra estes episódios que fazem parte de
uma epopeia muito inteligente daquelas épocas. E quem não estiver atento pode
cair na armadilha de tomar à letra, e inventar coisas que o autor não quis dizer.
Como diz a encíclica de 1994 sobre este ponto: “A regra suprema para
interpretar corretamente os textos bíblicos consiste em encontrar e definir o
que o autor quis dizer e estar atentos aos gêneros do discurso ou de escrita
que ele utilizou” (Pio XII, 1994).
Conclusão.
Como podemos ver, o autor do evangelho de Mateus deve ter-se esquecido do
perdão outorgado a Pedro por Jesus, e só tinha na mente a cultura da vingança e
do “olho por olho e dente por dente” que ele colocava também na boca de Jesus
mas esquecendo o agir de Jesus e levando Jesus a contradizer-se, o que não lhe
é licito. Aliás, devemos saber que essa lei do talião era bastante sábia, haja
em vista que era para não extrapolar a ofensa recebida, se era só o olho, era
para não ferir mais que o olho; se o
dente, era só o dente e assim por diante. Se esse autor vivesse na época da
polêmica e do cisma futuro, ele seria também um dos novacianos que negariam o
perdão. Isto nos leva a entender que devemos usar uma lupa para lermos os
evangelhos e a Bíblia em geral.
P.Casimiro João smbn
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