domingo, 29 de agosto de 2021

A Escatologia Joanina, diferente da dos Sinóticos. O “anticristo veio; eis que já há muitos anticristos, por isso conhecemos que é a última hora.”

“Filhinhos, esta é a última hora; vós ouvistes que o “anticristo veio; eis que já há muitos anticristos, por isso conhecemos que é a última hora” (1Jo.2,18). As trevas passaram e já brilha a luz verdadeira” (1Jo2,8). Estas são expressões que mostram que os cristãos joaninos estavam convencidos de que os últimos tempos já tinham chegado.

Isto leva-nos a repetir a tese de como a escatologia depende da cristologia: para os sinóticos Jesus era visto como alguém que caminhou por esta terra e depois foi levado para Deus; no final dos tempos ele desceria para julgar, assumindo a função de juiz.  Mas para João, durante o seu ministério, Jesus já tinha descido de Deus para servir de juiz.

Para João a vida eterna já se faz presente no agora, “quem escuta a minha palavra passou da morte para a vida,”(Jo.5,24) e jamais morrerá”Jo.11,26. O cristão joanino não precisava esperar a segunda vinda para ver Deus, porque quem viu Jesus já viu Deus: “Desde agora o conheceis e o vistes”(Jo.14,7). E não ficarão órfãos quando não eram aceitos pelo mundo: “não vos deixarei órfãos”(Jo.14,18).

Eles já são julgados e não precisam enfrentar mais julgamento, “Quem nele crê não é condenado, mas não quem crê já está condenado”(Jo.3,18). Eles já têm a vida eterna, “quem come a minha carne e bebe meu sangue tem a vida eterna”(Jo.6,54). Já se aproximaram da luz,”aquele que me segue não anda nas trevas mas tem a luz da vida” (Jo.6,12).

São filhos que nasceram de Deus: “não nasceram do sangue nem da vontade do homem, mas sim de Deus”, (Jo.1,13). E não precisarão morrer para passar para outra vida,”quem vive e crê em mim jamais morrerá” Jo.6,58 isto é, eles simplesmente irão passar deste mundo ao qual realmente nunca pertenceram: “eles não são deste mundo, como eu também não sou deste mundo” (Jo.17,14), para juntar-se a Jesus nos lugares que ele preparou para eles: “Na casa do meu Pai há muitas moradas, e eu vou preparar um lugar para  vocês” (Jo.14,2).

Em abono de que as últimas coisas já estão presentes na vida da comunidade estão ainda muitas outras indicações como estas: “Vencestes o maligno”, 1 Jo.1,14; “A vida manifestou-se” 1Jo.1,12; “Caminhamos na luz,”1Jo,1,7; Estavam na comunhão com Deus: “A nossa comunhão é com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo” 1 Jo.1,13; São verdadeiramente filhos de Deus: “Considerai com que amor nos amou o Pai para  que sejamos chamados filhos de Deus; e nós o somos de fato,”(1Jo.3,1). Deus permanece no crente:“todo aquele que proclama que Jesus é o Filho de Deus, Deus permanece com ele, e ele com Deus” (1Jo.4,15).

Quando Oscar Cullmann carimbou a expressão do já, e ainda não,  na teologia da Escatologia dele como uma parte já realizada no presente, e outra parte aguardada para a vida futura, (O.Cullmann, Cristologia do Novo Testamento), isso não se aplica aqui em João, porque o autor das Cartas está empenhado para que os seus cristãos usem a visão do futuro como um corretivo de purificação no presente. Portanto os seus avisos éticos são uma fonte de confiança no futuro, partindo da atual vivência, onde o futuro já está presente.

Apesar de tudo o que os “anticristos” possam maquinar, para o Autor das Cartas já “é chegada a última hora”: “Filhinhos, esta é a última hora; vós ouvistes que o “anticristo veio; eis que já há muitos anticristos, por isso conhecemos que é a última hora” (1Jo.2,18). Para aqueles que se ligam na Boa Nova que foi proclamada desde o princípio, há uma certeza: “As trevas passaram e já brilha a luz verdadeira” (1Jo2,8).

Por estas tantas passagens, e por todo o ambiente do evangelho e das Cartas joaninas, e por várias situações criadas para confirmá-lo, como a cena de Lázaro, os estudiosos concordam num ponto: que a escatologia de João e das Cartas já estava se realizando na sua comunidade e em cada um dos seus membros.

Conclusão. Tratar de escatologia não é acidental no estudo da teologia. “O Cristianismo é total e visceralmente escatologia” no dizer de O.Cullmann (o.c.p.71); e “o culto cristão é uma dimensão escatológica em tensão(id). Para Schweitzer: “Os conceitos escatológicos não só dominam a pregação de Jesus, mas toda a sua vida”. E: “A história da cristandade é a história da demora da parusia”. ( A questão do Jesus histórico”, p.238). Nos Sinóticos “ela é capaz de dar tempo a Deus, ciente que não lhe compete saber “a respeito daquele dia ou daquela hora”(Maxwel), o que porém não acontece para João. Aliás, entre os modernos, Bultmann tem uma teoria bastante semelhante à de João quando afirma: O momento da decisão está à mão, e aqueles que crêem já possuem a vida eterna.” (Em “O Guia trinitário para a escatologia, 61). E acrescenta: “É o mais adequado para dialogar com os padrões de pensamento da humanidade moderna”. Aliás ele assim aproxima o conceito de escatologia com o conceito de reino de Deus. Já Tillich tem uma escatologia muito confusa, no entanto corroborando a ideia que a escatologia não poderá ser reduzida a um apêndice da pregação e da teologia. Já Karl Barth tem mais semelhanças com Bultmann, e, como falei, com os escritos joaninos.        

Embora que os Sinóticos e Paulo, todos eles esperavam assistir a essa parusía nas suas vidas, num futuro breve, para João ela já tinha chegado. Afinal, esta escatologia de João emergiu também na escatologia dos teólogos modernos Bultmann, Albert Schweitzer, e um pouco em Tillich. Finalizo com Luis Carlos Susin, quando afirmou: “A teologia cristã é uma encruzilhada de muitos caminhos, e a escatologia é a chegada desses muitos caminho. (Luis Carlos Susin, “Assim na terra como nos céus”, pg. 11).

P.Casimiro João   smbn

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domingo, 22 de agosto de 2021

Aceitar Moisés ou aceitar Jesus? Um dilema necessário no Novo Testamento da autoria de Paulo, que originou o “eu aceitei Jesus” de agora.


 

Aceitar a Lei, ou aceitar Jesus? Eis a questão. Aceitar Moisés ou o cristianismo? O ícone da Lei era Moisés, e o ícone de Moisés era a Lei. Moisés e a Lei era a salvação. Agora Jesus é a salvação. Na consciência de todo Antigo Testamento estava internalizado que fora de Moisés não há salvação; fora da Lei não há salvação; e fora dos mandamentos e decretos. Ora, pelos anos 50 depois de Cristo levanta-se um homem declarando: “Ele, Jesus, aboliu a Lei com seus mandamentos e decretos” (Ef.2,15).

Este era o Paulo, que então fez uma tempestade na segurança que era o Antigo Testamento, como que fazendo-o ruir pelas bases. Ele colocou nessa Carta o aporte bem visível de uma FAIXA que estava no “MURO DE SEPARAÇÃO”do Templo de Jerusalém. De um lado os pagãos, do outro lado os Judeus. Ali o judeu separava-se do pagão e o pagão não tinha acesso ao Templo sob pena de morte. Aquilo era o ícone da separação dos seguidores de Moisés, da Torá, da Lei, e da Aliança. A separação dos salvos, e dos condenados. Dos eleitos e dos proscritos. Dos puros e dos impuros. Levantar a voz contra isso soaria igual à blasfêmia com que Jesus foi condenado à morte: “Destruam este templo, e eu o reerguerei um três dias” (Jo.2,19).

E Paulo fez isso. Sem olhar as consequências, escreveu: “Do que era dividido, Jesus fez uma unidade; em sua carne ele destruiu o muro de separação. Aboliu a Lei com seus mandamentos e decretos”(Ef.2,14-16). Isto é, com a sua teologia, Paulo encostava os Judeus contra a parede e não só os judeus mas os cristãos-judeus que tinham-se convertido e continuavam a frequentar a Sinagoga e continuavam no cumprimento da lei da circuncisão, e dos decretos do sábado, e do puro e do impuro, e das refeições separadas, e das carnes imoladas. O dilema era o seguinte Aceitar a Lei e o Moisés da Lei, ou aceitar Jesus?

Continuando em sua pregação ele dizia: “Deus quis reconciliar judeus e pagãos num só corpo por meio da cruz, destruindo em si mesmo a separação”(Ef.2,16).  O que tinha em mente era que quem continuasse a aceitar Moisés não daria valor nenhum à cruz de Jesus. Tornava inútil a cruz de Cristo. “na verdade, se a justiça se obtém pela Lei, Cristo morreu em vão”(Gál.2,1).

A isto inclui-se a teologia fundante de Paulo, que inclui a pergunta: de onde vem a salvação? Para o Antigo Testamento vinha da aceitação e da prática da Lei ou Torá, e dos Mandamentos, mas agora com o novo evento, a salvação vem de Jesus Cristo. Continuando a questão: de onde vem a salvação para o crente? O crente já está salvo pelo sangue de Jesus; o judeu ainda espera a salvação pelo cumprimento da Lei e pelas obras. A salvação que vinha para o judeu, da Lei, agora vem para todos pela fé, justificados pela graciosa benevolência de Deus, isto é, pela Graça. A justificação não vem pela Lei, mas pela fé. Não mais por Moisés, mas por Jesus.

Este tema de Paulo, foi muito bem captado pela Reforma do séc.XVI. O dilema necessário, aceitar Moisés ou Jesus, aceitar a salvação pela Lei ou pela graça? Eis a questão. Muito claro que a Lei tinha sido dada aos Judeus, porém a graça, e o agraciamento é dado para todos que aceitarem Jesus. E por isso mesmo já não é a carne e o sangue que fazem a descendência de Abraão, mas a graça e a fé que fazem a nova descendência de Abraão. E isto pelo fato de Abraão não ser justificado pelas obras mas pela fé, pelo  que Abraão é chamado o Pai dos crentes Ora, se sois de Cristo, então sois verdadeiramente a descendência de Abraão, herdeiros segundo a promessa”(Gál.3,29).  Daí que o judeu que continuava na aceitação de Moisés e da Lei estaria tornando inútil a cruz de Cristo.

Note-se que o cumprimento da Lei exigia o pagamento de salário como justiça. Logo o judeu cumpridor se considerava justo pelas obras, e credor diante de Deus. E com direito a “desprezar” os “não cumpridores”,”maldita toda a pessoa que não puser em prática as palavras da Lei”(Dt.27,26). Em contrapartida, quem aceita Jesus e a salvação da cruz aceita um dom gratuito, uma graça, sem reclamar salário: “Porque é gratuitamente que fostes salvos mediante a fé”(Ef.2,8). Como dito atrás, na teologia de Paulo, o crente já está salvo pelo sangue de Cristo; o judeu ainda espera a salvação pelas obras.

Conclusão. É evidente que Paulo manejava dois argumentos: o de Abraão e o da cruz.  Para aqueles que se consideravam descendência de Abraão segundo a carne, Paulo opunha a descendência de Abraão  segundo a fé: “os filhos da promessa é que serão considerados como descendentes”(Rom.9,8). Para aqueles que se consideravam ser povo eleito pela Aliança e a Torá, Lei do Sinai, Paulo contrapõe a cruz de Cristo que derribou o muro da separação pelo sangue de Cristo. E de dois povos fez um só “homem novo”, onde “não há judeu nem grego”,(Gál.3,28).

Na época moderna tomou corpo a expressão “eu aceitei Jesus” que retoma a mesma teologia pelas igrejas da Reforma, e foi buscar as suas raízes na mesma teologia paulina. A Igreja católica foi pega de calça curta, e de ambos os lados houve excomunhões. Os tempos agora são outros. Chegou neste espaço de tempo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e com eles a Liberdade de consciência, a Crítica científica e Histórica e a Crítica bíblica e o novo espaço do Ecumenismo. Em 31 de Outubro de 1999 foi assinada a “DECLARAÇÃO CONJUNTA ENTRE AS IGREJAS LUTERANAS E A IGREJA CATÓLICA” sobre a doutrina da Justificação, em Augsburgo. Hoje em dia é fácil ouvir das crianças da catequese, “eu aceito Jesus” e “eu estou salvo” igual as crianças das igrejas evangélicas. Eu tenho a certeza de que, se fosse agora, não haveria excomunhão mas diálogo inteligente e fraterno.

      

P.Casimiro João    smbn

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domingo, 15 de agosto de 2021

“Não rogo pelo ‘mundo’. Quem era o “mundo”, no significado cosmológico e teológico no evangelho de João.


 

 Não rogo pelo ‘mundo’, mas por aqueles que me deste, porque são teus” (Jo.17,9). Quem são os do ‘mundo’? No primeiro significado cosmológico, o ‘mundo’ era o cosmos, a matéria. Ele não era criatura de Deus, mas dum ser divino secundário a quem os gregos chamavam “demiurgo”, e o evangelho de João lhe chama “príncipe deste mundo”(Jo.14,30),  porque o ser superior não se misturava com a matéria. No evangelho de João este conceito de ‘mundo” tomou um conceito teológico de coisa má, porque incluía a matéria, como depois para Santo Agostinho e não só. E este apelativo de “mundo” e pertencente ao “mundo” começou sendo aplicado aos não-crentes, mas depois também aos judeus. E dali avançou para os cristãos que separaram-se da comunidade original, os “separatistas” que fizeram outras comunidades. Isto é, “mundo” seria tudo o que era alheio a eles.  (Cf BLOG www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br de 18/7/2021). E estas atitudes passaram também para a 1ª Carta de João: “ E há pecado que conduz à morte, não digo que se  reze por eles” (1Jo.5,16), transformando-se numa recusa a orar por outros cristãos que cometeram o ‘pecado mortal’ de se separarem da comunidade deles.

Aa Cartas de João são contra os “separatistas” que em massa deixaram a comunidade por divergências sobre a cristologia (cf.BLOG www.paroquiadechadinha.blogspot.com.br de 08/8/2021). Então os separatistas já não eram mais “irmãos”. Para o autor das Cartas, os “irmãos” eram os da comunidade. Na verdade as disputas internas é que deram origem às Epístolas joaninas.

E aqui aparece a grande anomalia dos escritos de João. Em nenhuma ocasião do Novo Testamento se levanta tanto a voz em favor do amor dentro da fraternidade cristã. Com fervor evangélico o autor afirma: “Quem  não ama seu irmão a quem vê, como poderá amar Deus a quem não vê?” 1 Jo.4,20. No entanto esta mesma voz é implacável em condenar seus adversários que tinham sido membros da sua comunidade. Agora eles são demoníacos, anticristos falsos profetas, “Eis que há muitos anticristos; eles saíram dentre nós, mas não eram dos nossos”( 1Jo.2,18).

Enquanto que os membros da comunidade são exortados a se amarem mutuamente, o trato com os dissidentes deve ser o seguinte: “se alguém vem ter convosco sem ser portador desta doutrina não o recebam em casa nem o saúdem;  aquele que o saúda toma parte em suas obras más” (2 Jo.vv. 10 e 11).

Olhando superficialmente, ficamos maravilhados como o autor joanino mistifica o “amor” enrolado na sua comunidade “nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros” Jo. 13,35. Dá a impressão que para a tradição joanina só existia um único mandamentoesse é o meu mandamento” Jo.15,12. Porém, debaixo destas palavras está o radicalismo de se considerarem como ‘irmãos’ somente eles.

Em consequência com esta tese vêm outras afirmações limitadoras: “O Espírito da verdade que o mundo não pode receber porque não o vê nem o conhece mas vós o conheceis porque permanece em vós” (Jo.14,17). E ainda: “Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu te conheci” 17,25...não surpreende  numa tradição em que o evangelho coloca Jesus prometendo que aqueles que o conhecem conhecerão também o Pai. Claro que eram eles também os que conheciam o Pai. Assim como eram eles que “agiam segundo a verdade”  e que “se aproximavam da luz” Jo.3,21, e  os “outros” andavam nas trevas porque se afastavam da luz” (Jo.8,12).

Perto de finalizar, comparemos a linguagem dualista empregada por João e nas Cartas, contra o mundo, e os judeus: Os seguidores de Jesus não andavam nas trevas Quem ama seu ‘irmão’ não anda nas trevas,evangelho 8,12. “Quem ama seu ‘irmão’ permanece na luz. Porém, para os outros muda completamente de figura, para uma atitude de condenação: “Vós tendes como pai o demônio, evangelho 8,44. “Aquele que peca é do demônio”; todo o que é nascido de Deus não peca” Carta 1 Jo.3,8. Claro que quem peca são os ‘outros’, e os ‘justos’ são só eles e “nascidos de Deus”. Mas os separatistas diziam que os outros os odeiam com tantas condenações que lhes fazem.

“Quando avaliamos o evangelho de João descobrimos um senso de hostilidade de ‘nós contra eles’. Este fato levou os cristãos de séculos posteriores a ver uma divisão dualista da humanidade; em um “nós” que estamos “salvos” e um “eles” que não estão. Na sua atitude para com os separatistas “nem os recebam nem saúdem “(1 Jo,2,19), ele forneceu incentivos àqueles cristãos de todos os tempos que se sentem justificados odiando outros cristãos por causa do amor de Deus” (R.Brown, o.c.p.141).

Concluindo, é provável que nos cause arrepios esta constatação talvez nunca imaginada por leitores dos escritos atribuídos a João. Mas temos que nos acostumar com a ideia de que os escritos bíblicos foram escritos por gente igual a nós que viveram as mesmas lutas e tiveram as mesmas experiências de amor limitado e grupal,  e repulsa e condenação para quem não pensava igual a eles. E também caíram na tentação de “apropriar-se” da “verdade” de Deus e da sua “salvação” e da presença do seu Espírito ou Paráclito.

Isso mostra um quadro mais leal da vida da Igreja, com mazelas e tudo, como dito no BLOG anterior de 18/7/2021 (Cf. www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br)

P.Casimiro João             smbn

 

domingo, 8 de agosto de 2021

O “Discípulo Amado”: uma construção do evangelho de João que virou símbolo, e mito e ícone da comunidade joanina.

A chave para o nosso entendimento: O contraste constante e deliberado entre Pedro e o discípulo Amado, que, como dito já aqui nestas páginas, era o herói da comunidade joanina. Vejamos  que João fala do Discípulo Amado como de discípulo, não como de um apóstolo. Para João, discípulo é a primeira categoria, e a aproximação com Jesus, mais que a missão apostólica, e é essa prerrogativa que lhe confere a dignidade.

Em consequência podemos analisar as seguintes passagens em que João destaca o Discípulo Amado. 1º: O Discípulo Amado reclina-se no peito de Jesus, enquanto Pedro lhe faz um sinal pedindo uma informação Jo.13,23.

2º: O discípulo amado acompanha Jesus até dentro do palácio do sumo sacerdote, e Pedro só entrou a seu pedido expresso, Jo.18,15

3º:O discípulo amado corre na frente e mostra mais fé quando foram ao túmulo, Jo.20,4

4º: O discípulo amado reconhece Jesus na praia e o mostra a Pedro,Jo.4,7.

5º: O discípulo amado tem um destino que Pedro não sabe, e é um segredo, “o que te importa?” Jo.21,23.

6º: O discípulo amado aparece ao pé da cruz, enquanto Pedro negou Cristo, e junto com os outros o deixou sozinho, Jo.19,27. Vejamos as versões dos outros evangelhos.

Tais contrates não podem ser acidentais. Veja bem, os três evangelhos sinóticos dizem que somente Pedro seguiu Jesus até o palácio do sumo sacerdote, e  Lucas diz que só Pedro correu ao túmulo, e que o Senhor apareceu a Simão (Lc.24,34). Na verdade, contrapondo o seu herói ao mais famoso dos apóstolos, a comunidade joanina está simbolicamente contrapondo a si mesma às igrejas que veneravam Pedro e os Doze.

Temos ainda mais provas em “desabono” dos “apóstolos”: “Todos vós me abandonareis e vos dispersareis” Jo.16,19 e a cena de Tomé, que precisou de crescer na fé depois do puxão de orelhas do mestre,”Tu acreditaste porque viste”,Jo.20,24. Isto com o objetivo de mostrar como se comportaram os “apóstolos” que não teriam as qualidades de um “discípulo”. Por todos esses dados, os cristãos joaninos, representados pelo Discípulo Amado consideravam-se abertamente mais “discípulos” de Jesus, e a comunidade como a antonomásia ou homônima do Discípulo Amado. Como assim, o “discípulo amado” seria ela.

Para vermos mais a individualidade do evangelho de João:  Diferenças de cristologias:

A cristologia de João se baseava na preexistência do Verbo; a dos Sinóticos vinha da tradição judaica e davídica. A de João devia à filosofia  gnóstica, de tal maneira que pôde afirmar o “Eu Sou” de Jesus como Verbo preexistente. (Jo.1,1 e 8,58). João critica a cristologia das outras comunidades, por exemplo quando põe Jesus a desconsiderar Felipe “tanto tempo convosco e ainda não me conheces, Felipe?” Jo.14,9. E comentando sobre Tomé como dissemos, porque a fé dele tinha que aumentar até chegar ao “meu Senhor e meu Deus” (Jo.20,24).

Afinal, desde as Cartas de Paulo havia a afirmação da preexistência, como em Colocenses, “ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a Criação” Col. 1,16. Porém estas passagens são modeladas no formato judaico da “Sabedoria divina” que também foi criada no começo das obras de Deus.(Prov.8,22). Partindo daí João faz a ponte da preexistência, passa pela Sabedoria” e chega ao formato ou gênero evangélico, e chega à conclusão da tese na fórmula: “Antes que Abraão existisse Eu Sou” (Cf.R.Brown, o.c.p.47-48).

As diferenças eclesiológicas. Mateus pensa numa  igreja construída sobre Pedro, na qual Pedro e os doze têm o poder de “ligar e desligar”. No IV evangelho não tem nenhuma referência à categoria “apóstolo”, e faz de “discípulo” a primeira categoria cristã, como já indicado atrás, de modo que a continuidade vem do testemunho de ser discípulo.

Em vez da instituição e da tradição judaica mantida por Mateus sobre Pedro, e em vez das “chaves”, ele dá toda a relevância ao Paráclito. O Paráclito é o guia para toda a verdade, Jo.16,13. E também, ao contrário dos Sinóticos, João não traz nenhuma palavra sobre o batismo e a eucaristia, como ordens de Jesus no final do seu ministério.

Vimos atrás críticas e diferenças. No entanto os cristãos joaninos não eram os únicos cristãos do Novo Testamento a condenar outros cristãos como falsos. Vimos na matéria anterior que iam até o ponto de se chamarem de “anticristos”,1Jo.2,18 (Cf.BLOG www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br de 01/08/2021). Porém, mais do que todos, foram os cristãos joaninos os que mais excluíram claramente os seus adversários, inclusivamente os que era associados “aos irmãos do Senhor”.

Para João, o que era essencial na eclesiologia de João? A presença do Paráclito, que iria atualizar as palavras de Jesus. Nenhuma instituição ou estrutura podia substituir esta. Esta visão e esta ênfase darão à eclesiologia joanina o tom diferente dos Sinóticos. Esta diferença é resultante da cristologia também diferente.

Por outro lado, a comunidade joanina se considerava com “as ovelhas certas”, e por isso escreveu: “Tenho outras ovelhas que não são deste aprisco (grupo); devo conduzi-las também e ouvirão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor”Jo.10,16. E mais à frente, “para que todos sejam um” (17,21).

Além destas rejeições, os estudiosos denotam muito sectarismo e senso de superioridade de João. De tal modo que o Jesus joanino é um estranho que não foi entendido pelo seu próprio povo e nem mesmo é um “deste mundo”. Implicitamente, os cristãos joaninos eram os que entendiam melhor Jesus porque eles também eram rejeitados, perseguidos, e não “eram deste mundo”. E se baseavam na “alta cristologia” deles onde eram guiados pelo Paráclito. Até o estilo literário, com seus simbolismo abstrato, e sua técnica de incompreensão colaborava para isso.

Conclusão: Não estaremos muito longe da verdade se concluirmos que todo o evangelho de João é um tratado para impor a sua tese do “Discípulo Amado” e da superioridade da atuação do Paráclito sobre a estrutura. Lembrando que os cap.5-12 são uma oposição aos judeus, e os cap. 14-17 uma oposição ao mundo. Além das indicações expressas acima do “discípulo Amado,” já vinha preparando o ambiente com as indicações misteriosas de “o outro discípulo”(Jo.1,35; Jo.13,25; Jo.18,15).

Podemos concluir com a afirmação inicial: O “Discípulo Amado” é uma construção do evangelho de João que virou símbolo, e mito e ícone da comunidade joanina.

         P.Casimiro João    smbn

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domingo, 1 de agosto de 2021

“Eu não sou deste mundo, como eles também não são do mundo” (Jo.17,16) – Cristologia joanina e Polêmica com os Separatistas da comunidade: Tudo que não eram “eles” era “do mundo”.


 

“Se o mundo vos odeia, sabei que primeiro me odiou a mim. Se fosseis do mundo, o mundo amaria o que era seu; mas porque vos separei do mundo, o mundo por isso vos odeia” (Jo17,18-19).

No IV evangelho, o fato é que a oposição aos judeus domina os capítulos 5-12, e a oposição ao mundo abrange os capítulos 14-17. Aqui “mundo” tem duas vertentes: uma vertente cosmológica gnóstica, pela qual o mundo não tinha origem em Deus e por isso era mau. A segunda vertente de matiz teológica de João pela qual tudo o que não era da comunidade joanina era "o mundo". Continuamos falando da teologia joanina e da Polêmica contra os Separatistas da comunidade que acabaram formando outras comunidades.

Vimos na matéria do Blog anterior (cf. BLOG www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br de 18/7/2021) que seria assim como algumas igrejas de hoje que dizem que tudo que não é deles é do “mundo”, ou é do "demônio" e tudo condenado. Para eles, Jesus não “ora pelo mundo” Jo.17,9. Ele “vence o mundo”, e “chega a hora que ele expulsa o “príncipe deste mundo” (Jo.17,23). De início João distinguia os Judeus, mas pelo final juntou-os também na mesma designação “mundo”. E de tal maneira que só a sua comunidade iria se salvar “Irei preparar-vos um lugar...”(14,23). Notemos aí que “o príncipe deste mundo” é uma alusão ao “demiurgo” gnóstico, ou o “segundo deus” que criou o mundo porque o Deus supremo não se misturava com a matéria e por isso não foi ele que criou o mundo.

Esta rejeição do evangelho joanino produziu um crescente senso de alienação, de modo que a própria comunidade ficou muito estranha no mundo. Não demorou que chegasse o tempo em que após as diversas chamadas ao “amor interno” entre eles, a  real tragédia de uma grande divisão caiu dentro da  própria comunidade, como se nota na Catas joaninas posteriores. A comunidade tornou-se alienada e estranha. O “amor” que os unia virou em tragédia mais tarde quando ocorreram divisões dentro da comunidade, e até se chamavam de “anticristos” uns aos outros: “Estamos no fim da história do fim deste mundo. Ouviram que se aproximava o Anticristo, e já muitos como ele têm aparecido; eles viviam no meio de nós mas não eram dos “nossos”(1Jo.2,18). “João não se considerava apenas uma testemunha mas uma autoridade para corrigir doutrinas falsas e combater ameaças à fé provindas de “anticristos” e falsos espíritos” (D.Humtsman, João o discípulo que Jesus amava, 13).

E não só, mas os não crentes se enfureceram com eles, como denotam dados posteriores. Até porque a comunidade virou um “gueto”. Muitos elementos começaram a ver que eles deviam se inserir no mundo e na sociedade, senão como poderiam ser sal e luz, como eles liam nos outros evangelhos? Pelo contrário, estavam vendo que a comunidade se fechava mais e afirmava “Não vêm a mim se o Pai não os atrair”,(Jo.6,37), dando a entender que não existia nos círculos joaninos espaço para os “outros”. É o que mostra a insistência do Jesus joanino em falar aos “judeus”, que não é possível chegar à fé sem que lhe seja concedido por Deus. Infelizmente esta animosidade contra os Judeus, ajuntando-se à não menor animosidade de Paulo e foi-se avolumando por toda a Europa, tanto da parte da Igreja como dos reis em toda a Idade Média.

E o que falar da atitude do IV evangelho contra os simpatizantes da fé cristã mas que não tinham chegado à coragem de abraçar claramente o evangelho? O evangelho tece algumas encenações desse tipo de pessoas que não tinham a coragem de pagar o preço da expulsão da sinagoga para entrar na comunidade. É o caso de Nicodemos no cap.3, e o “cego de nascença” no capítulo nove. Nicodemos aparece depois publicamente na crucificação de Jesus para sepultá-lo. Ele juntou-se a José de Arimateia que era outro discípulo secreto, e foram aí colocados para dar um exemplo para os que viviam como cristãos escondidos. Histórias para animar os que não se decidiam abertamente pelo evangelho.

Já tive ocasião de dizer outra polêmica bem característica do IV evangelho, que se aproxima da cristologia paulina: é onde se encontram as afirmações do capítulo 8: “Somos descendentes de Abraão e jamais fomos escravos de alguém” 8,33. Trata-se de uma polêmica entre discípulos conservadores e seus adversários menos conservadores. Os primeiros interpretavam o termo descendência como descendência física de Abraão. Já os segundos se apoiavam na descendência da fé o que os faria tão ou mais descendentes que  os outros. E assim achavam até uma blasfêmia que Jesus “existisse antes que Abraão”, “em verdade em verdade eu vos  digo que antes que Abrão existisse eu sou” Jo.8,55.

Queria ainda referir o ambiente das polêmicas referentes ao capítulo seis quando uma parte dos discípulos abandonou Jesus (Jo.6,66). O fato é que no século segundo os cristãos judeus-não gnósticos alimentavam uma aversão especial contra o pensamento joanino. Sobreviveram escritos dessa época em que se recomendava que esse evangelho joanino fosse evitado cuidadosamente, porque esses cristãos judeus não possuíam a ponte de ligação do formato do pensamento gnóstico. (Cf. J.L.Martyn em R.Brown,o.c.p.83).“A partir de então muitos discípulos voltaram atrás e não andavam mais com ele” (Jo.6,66).

Finalmente ainda, uma referência aos irmãos de Jesus que não creram nele. “Com efeito, nem mesmo os seus irmãos acreditavam nele” Jo.7,5. Na verdade, os estudiosos sabem que Tiago, irmão do Senhor, foi seguido durante toda a sua vida por numerosos cristãos judeus em Jerusalém que eram mais conservadores do que Pedro, como também diz a carta aos Gálatas 2,12. Após a sua morte ele se tornou o herói por excelência para esses cristãos judeus, do século segundo, que aos poucos se separaram da “Grande Igreja”(o.c.p.80). Uma tradição afirma que outros irmãos do Senhor lhe sucederam na chefia de Jerusalém, e os parentes de Jesus eram tidos em eminente consideração nas igrejas da Palestina nesse séc. II. (Eusébio, História Eclesiástica III). Na verdade seguiam mais a tradição judaica do que os outros, assim como Pedro. Lembremos a observação de Jesus: “um profeta não é bem recebido na sua pátria e na sua família” (Mt.13,53).

Resumindo: a oposição ao mundo gerou um antagonismo entre “Jesus e o mundo”. Esta tendência perpassa diametralmente todo o IV evangelho. Ela é claramente gnóstica.  E criou muitas dificuldades para ser aceito por várias camadas de fiéis, como vemos nas polêmicas que também estão presentes em quase todas as páginas e em tantas narrativas como o “cego de nascença” cap.9 e em tantos símbolos como a “fonte de Siloé”(Jo.9,1-41)

Esta oposição aos judeus e ao mundo vai atingir o seu clímax no cap.17, numa oração composta para resumir todo o esforço das comunidades joaninas.

Veremos depois outras singularidades únicas do IV evangelho e os subterfúgios para defender as suas teses.

P.Casimiro Joao   smbn

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