domingo, 8 de agosto de 2021

O “Discípulo Amado”: uma construção do evangelho de João que virou símbolo, e mito e ícone da comunidade joanina.

A chave para o nosso entendimento: O contraste constante e deliberado entre Pedro e o discípulo Amado, que, como dito já aqui nestas páginas, era o herói da comunidade joanina. Vejamos  que João fala do Discípulo Amado como de discípulo, não como de um apóstolo. Para João, discípulo é a primeira categoria, e a aproximação com Jesus, mais que a missão apostólica, e é essa prerrogativa que lhe confere a dignidade.

Em consequência podemos analisar as seguintes passagens em que João destaca o Discípulo Amado. 1º: O Discípulo Amado reclina-se no peito de Jesus, enquanto Pedro lhe faz um sinal pedindo uma informação Jo.13,23.

2º: O discípulo amado acompanha Jesus até dentro do palácio do sumo sacerdote, e Pedro só entrou a seu pedido expresso, Jo.18,15

3º:O discípulo amado corre na frente e mostra mais fé quando foram ao túmulo, Jo.20,4

4º: O discípulo amado reconhece Jesus na praia e o mostra a Pedro,Jo.4,7.

5º: O discípulo amado tem um destino que Pedro não sabe, e é um segredo, “o que te importa?” Jo.21,23.

6º: O discípulo amado aparece ao pé da cruz, enquanto Pedro negou Cristo, e junto com os outros o deixou sozinho, Jo.19,27. Vejamos as versões dos outros evangelhos.

Tais contrates não podem ser acidentais. Veja bem, os três evangelhos sinóticos dizem que somente Pedro seguiu Jesus até o palácio do sumo sacerdote, e  Lucas diz que só Pedro correu ao túmulo, e que o Senhor apareceu a Simão (Lc.24,34). Na verdade, contrapondo o seu herói ao mais famoso dos apóstolos, a comunidade joanina está simbolicamente contrapondo a si mesma às igrejas que veneravam Pedro e os Doze.

Temos ainda mais provas em “desabono” dos “apóstolos”: “Todos vós me abandonareis e vos dispersareis” Jo.16,19 e a cena de Tomé, que precisou de crescer na fé depois do puxão de orelhas do mestre,”Tu acreditaste porque viste”,Jo.20,24. Isto com o objetivo de mostrar como se comportaram os “apóstolos” que não teriam as qualidades de um “discípulo”. Por todos esses dados, os cristãos joaninos, representados pelo Discípulo Amado consideravam-se abertamente mais “discípulos” de Jesus, e a comunidade como a antonomásia ou homônima do Discípulo Amado. Como assim, o “discípulo amado” seria ela.

Para vermos mais a individualidade do evangelho de João:  Diferenças de cristologias:

A cristologia de João se baseava na preexistência do Verbo; a dos Sinóticos vinha da tradição judaica e davídica. A de João devia à filosofia  gnóstica, de tal maneira que pôde afirmar o “Eu Sou” de Jesus como Verbo preexistente. (Jo.1,1 e 8,58). João critica a cristologia das outras comunidades, por exemplo quando põe Jesus a desconsiderar Felipe “tanto tempo convosco e ainda não me conheces, Felipe?” Jo.14,9. E comentando sobre Tomé como dissemos, porque a fé dele tinha que aumentar até chegar ao “meu Senhor e meu Deus” (Jo.20,24).

Afinal, desde as Cartas de Paulo havia a afirmação da preexistência, como em Colocenses, “ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a Criação” Col. 1,16. Porém estas passagens são modeladas no formato judaico da “Sabedoria divina” que também foi criada no começo das obras de Deus.(Prov.8,22). Partindo daí João faz a ponte da preexistência, passa pela Sabedoria” e chega ao formato ou gênero evangélico, e chega à conclusão da tese na fórmula: “Antes que Abraão existisse Eu Sou” (Cf.R.Brown, o.c.p.47-48).

As diferenças eclesiológicas. Mateus pensa numa  igreja construída sobre Pedro, na qual Pedro e os doze têm o poder de “ligar e desligar”. No IV evangelho não tem nenhuma referência à categoria “apóstolo”, e faz de “discípulo” a primeira categoria cristã, como já indicado atrás, de modo que a continuidade vem do testemunho de ser discípulo.

Em vez da instituição e da tradição judaica mantida por Mateus sobre Pedro, e em vez das “chaves”, ele dá toda a relevância ao Paráclito. O Paráclito é o guia para toda a verdade, Jo.16,13. E também, ao contrário dos Sinóticos, João não traz nenhuma palavra sobre o batismo e a eucaristia, como ordens de Jesus no final do seu ministério.

Vimos atrás críticas e diferenças. No entanto os cristãos joaninos não eram os únicos cristãos do Novo Testamento a condenar outros cristãos como falsos. Vimos na matéria anterior que iam até o ponto de se chamarem de “anticristos”,1Jo.2,18 (Cf.BLOG www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br de 01/08/2021). Porém, mais do que todos, foram os cristãos joaninos os que mais excluíram claramente os seus adversários, inclusivamente os que era associados “aos irmãos do Senhor”.

Para João, o que era essencial na eclesiologia de João? A presença do Paráclito, que iria atualizar as palavras de Jesus. Nenhuma instituição ou estrutura podia substituir esta. Esta visão e esta ênfase darão à eclesiologia joanina o tom diferente dos Sinóticos. Esta diferença é resultante da cristologia também diferente.

Por outro lado, a comunidade joanina se considerava com “as ovelhas certas”, e por isso escreveu: “Tenho outras ovelhas que não são deste aprisco (grupo); devo conduzi-las também e ouvirão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor”Jo.10,16. E mais à frente, “para que todos sejam um” (17,21).

Além destas rejeições, os estudiosos denotam muito sectarismo e senso de superioridade de João. De tal modo que o Jesus joanino é um estranho que não foi entendido pelo seu próprio povo e nem mesmo é um “deste mundo”. Implicitamente, os cristãos joaninos eram os que entendiam melhor Jesus porque eles também eram rejeitados, perseguidos, e não “eram deste mundo”. E se baseavam na “alta cristologia” deles onde eram guiados pelo Paráclito. Até o estilo literário, com seus simbolismo abstrato, e sua técnica de incompreensão colaborava para isso.

Conclusão: Não estaremos muito longe da verdade se concluirmos que todo o evangelho de João é um tratado para impor a sua tese do “Discípulo Amado” e da superioridade da atuação do Paráclito sobre a estrutura. Lembrando que os cap.5-12 são uma oposição aos judeus, e os cap. 14-17 uma oposição ao mundo. Além das indicações expressas acima do “discípulo Amado,” já vinha preparando o ambiente com as indicações misteriosas de “o outro discípulo”(Jo.1,35; Jo.13,25; Jo.18,15).

Podemos concluir com a afirmação inicial: O “Discípulo Amado” é uma construção do evangelho de João que virou símbolo, e mito e ícone da comunidade joanina.

         P.Casimiro João    smbn

www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br

 

 

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