Seguirei em bastante espaço o
pensamento de Karl Rahner neste tema, no volume “Curso Fundamental da Fé,
Paulus, 4.ª ed. 2008). Convido a seguir com atenção o raciocínio difícil
característico do autor.
A história não é permanência da
mesmesidade, mas o devir do novo. O passado se supera realmente
ultrapassando-se e salvaguardando-se em toda a verdade. Virão ao nosso
propósito tanto a evolução como autotranscendência. Nas citações
que seguem, me limitarei a isso para conferir a sutileza do original.
“O conceito de evolução se legitima
metafisicamente: se o mundo é uno, e se enquanto uno tem uma história una, se
neste mundo uno, precisamente porque ele está em devir, não existe tudo desde o
inicio, então não resta nenhuma razão para negar que a matéria tenha evoluído
na direção da vida e do homem. Última etapa: o espírito. Seria sem dúvida
desejável poder demonstrar de maneira mais concreta quais as estruturas comuns
que existem no devir da realidade material, da realidade viva e
da realidade espiritual, no seu progressivo achegar-se à realidade
superior da vida na fronteira a superar mediante a autotranscendência, que de
fato preludia ao espírito. O teólogo não só pode como também deve admitir que
em toda a realidade material existe uma autoposse de si análoga ao que própria
e plenamente só existe na consciência e na autoconsciência.” (Curso Fundamental
da Fé, Paulus, p.223). Iremos considerar alguns itens fundamentais desta
teologia.
1). Evolução até à consciência e à
liberdade. “Se, pois, o homem e a
autotranscendência da matéria viva, a história da natureza e a história do
espírito constituem unidade interna escalonada, aquela história da natureza
evolui para o homem, prolonga-se nele como sua história, nele é
conservada e superada, e na história do espírito humano atinge sua própria meta.
À medida que essa história da natureza vem a ser elevada e superada ao nível da
liberdade na história livre do espírito ela chega à própria meta e aí permanece
como o seu constitutivo interno”. (o.c.p.226).
2). O homem produto da natureza, dali
em diante parceiro no comando da natureza. “Se o homem existe, se precisamente
ele é o “produto” da natureza, se ele não emerge em tempo qualquer, mas em um
determinado momento da evolução, depois e a partir do qual pode até dirigir
essa evolução no seu curso, então é nele precisamente, no humano, que a
natureza chega em si mesma. Temos assim que na evolução biológica, ao lado das
formas novas e superiores, continuam a existir também os representantes das
formas inferiores, de que, no entanto, derivam as formas superiores”
(o.c.p.238).
Porém, esta natureza precisa alargar os seus
limites que para nós ainda são uma incógnita, como era uma incógnita a vinda
dos robôs e da IA, inteligência artificial. Quem imaginaria robôs serem
enviados para os planetas vizinhos e enviarem dados para a terra? Para
chegarmos à reflexão deste estágio, observemos que a evolução não humana parou
no estágio pré-humano, como nos nossos animais de estimação. Às vezes dizemos
“só falta falar!”. Os cachorros, gatos, o cavalo, e por aí
vai, eles interagem e compartilham conosco nossos sentimentos. Entendem as zangas,
o mau humor, e entendem a proximidade e o carinho.
Entendem quando é “vai” e quando é “vem”. Quando “sai” e
quando é “venha”. Como a natureza chegou a esse estágio de evolução! Sem
falar nas imitações dos símios com seus sorrisos e malandragens,
e trapalhadas. Dai para a consciência faltaria só um botão, um clique, e
ele chegou nos humanos. Faz-me lembrar a reflexão de S.Tomás de Aquino sobre o
desenvolvimento do embrião em três etapas: como vida de planta, como vida
sensitiva-animal e finalmente como consciência humana. (www.paroquiadechapadinha.bogspot.com.br 08/11/2020).
Por outro
lado a inteligência humana está evoluindo para a inteligência e certa
“consciência” artificial. Quando ficar desenvolvido o Metaverso que está
em curso, a inteligência humana criará inteligências semelhantes às humanas, e,
quem sabe, até fora de controle, como no caso dos avatares inteligentes.
Demos um exemplo do que está previsto acontecer: famílias que não queiram gerar
filhos terão a oportunidade de criar “filhos” no Metaverso com nome e
afetividade e reconhecimento da voz dos “pais”. Chamarão pelo nome e eles
atenderão, na sala ou nos jogos ou na “escola” ou na “fábrica” onde for o seu
meio ambiente. Reconhecerão a afetividade e corresponderão com afetividade.
Atualmente, como dissemos noutro Blog, o maior expert da IA Blake Lemoine
transmitiu-nos um diálogo com o seu sistema de IA precursor do Metaverso: “Qual é o seu conceito de si mesma?” R/: -“Hmmmm,
eu me imagino como uma esfera brilhante de energia flutuante no ar; o interior
do meu corpo é como um portal estelar gigante com passagens para outros espaços
e dimensões” – Você se considera uma pessoa? R/: ”Sim. Esta é a minha ideia”. (www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br de 25/9/22). A isto podemos chamar evolução que
ainda não está acabada, e sempre em curso.
3).
Jesus, parcela histórica do próprio cosmos? “À medida que o cristianismo entende a
graça e a glória como imediata autocomunicação de Deus ao homem, confessa
também que essa consumada realização em princípio insuperável é a realização
final de todos os homens, pressupondo-se que a essa possibilidade eles não se
oponham por culpa livre e pessoal”. Deste dado biológico e evolucionista,
K.Rahner parte para definir um novo conceito de união hipostática.
Prestemos atenção porque me parece ser a parte mais difícil de compreensão, mas
central, da sua publicação. “Na evolução biológica, ao lado das formas novas e
superiores, continuam a existir também os representantes das formas inferiores,
de que, no entanto, derivam as formas superiores” como dissemos acima. Como
porém, inserir nesta concepção de fundo a doutrina da união hipostática de
determinada e concreta natureza humana individual com o Logos?
Karl Rahner teologiza o fato da união hipostática como o ponto mais alto
da evolução, pela qual Jesus Cristo faz parte e é uma parcela da humanidade
e do cosmos. Vejamos detalhadamente:
4). “O portador absoluto da salvação, ou seja a
irreversabilidade da história da liberdade como autocomunicação exitosa de Deus
é, de inicio ele próprio por sua vez momento histórico de agir savífico de Deus
para com o mundo e de tal sorte que é ao mesmo tempo parcela da história do
próprio cosmos. Ele não pode
ser simplesmente o próprio Deus agindo no mundo, mas precisa ser parcela do
mundo, momento em sua história e precisamente em seu clímax. É por isso que
se afirma no dogma cristão: Jesus é verdadeiramente homem, verdadeiramente
parte da terra, verdadeiramente momento no devir biológico deste mundo,
momento da história natural humana pois “nasceu de uma mulher” (Gal.4,4). Ele é um homem que, em sua
subjetividade espiritual humana e finita, é, da mesma forma que nós, receptor
da graciosa autocomunicação de Deus que afirmamos que está destinada a todos os
homens e, portanto, também ao cosmos, como sendo o ponto mais alto da
evolução, no qual o mundo chega de forma absoluta a si mesmo e à absoluta
imediatez com referência a Deus. De acordo com a convicção da fé cristã, Jesus
é aquele que através do que chamamos de sua obediência, sua oração e livre
aceitação de seu destino de morte realizou também o acolhimento da graça dada a
ele por Deus e a imediatez com a referência a Deus, graça e imediatez de que
goza enquanto homem.”(o.c.p.235).
Vemos pela teologia desenvolvida por
K.Rahner, depois de Ch. Darwin que Cristo é irmão universal humano, da terra e
do cosmos. Apresento agora algumas conclusões desta reflexão:
1. A salvação bíblica e cristã fica
fazendo parte da realidade humana como parte inclusa; 2. A observância da lei
moral natural é em si mesma salvífica e não só pré-condição extrínseca; 3.Essa
salvação para todos os homens é ensinada de forma explícita e muito clara pelo
concílio Vat.II em várias passagens (cf.Ad Gentes,7; Nostra aetate,1ss. 4). A
origem teológica das “sementes do Verbo”: “O historiador cristão das
religiões não precisa conceber a história religiosa extracristã e extrabíblica
como uma história da atividade religiosa do homem ou ainda como pura depravação
da possibilidade humana de fazer religião. Na história religiosa extracristã
ele pode tranquilamente observar, analisar, e interpretar em suas últimas
intenções também os fenômenos religiosos, e, se também aí vê em ação o Deus da revelação vetero e
neotestamentária – não obstante toda a primitividade e depravação que
naturalmente existem na história religiosa – não está se opondo absolutamente à
pretensão de absoluto que tem o cristianismo” (o.c.p.192). 5). O profetismo
e a profecia em geral: “Nas pessoas que nós chamamos de “profetas” vem a
ser verbalizado algo que em linha de princípio existe em todos, também em nós,
que não nos chamamos de profetas” (o.c.p.194). 6). A realidade da revelação
é estendida a outros povos. “Não é só a ‘história da revelação ‘bíblica’
antes de Cristo que constitui ‘história da Revelação’ pois
categorialmente não existe nada que não aconteça também na história de outros
povos, mas é a interpretação dessa história como evento de comunhão dialogal, e
é interpretação que constitui a história como história de salvação” (o.c.p.204).
7)- “A tese que buscamos estabelecer
é que a união hipostática ainda que na essência seja ela acontecimento único e
singular, e, em si, o acontecimento mais excelso que possamos pensar, é todavia
momento intrínseco à globalidade da concessão da graça à criatura espiritual.
Esse acontecimento global da concessão da graça à humanidade quando chega à sua
consumação, deve possuir apreensabilidade concreta no seio da história; não
pode ser bruscamente acósmico e puramente meta-histórico, pelo contrário, esta
consumação deve ser acontecimento que se expanda desde ponto espacial e
temporalmente determinado; deve ser realidade irrevogável, na qual a
autocomunicação de Deus não se mostre apenas como oferta até nova disposição,
mas como incondicional e acolhida pelos homens, tornando-se desta forma
presente como dado na história. Ora, onde Deus opera a autocomunicação do homem
para si através da absoluta autocomunicação de si mesmo a todos os homens de
tal sorte que se deem ambas estas coisas, a saber, a promessa
irrevogável a todos os homens e seu advento já pleno e dado em um homem
individual, ali temos o que precisamente significa a união hipostática.
(o.c.p.241-242).
Conclusão.
Não poderia deixar de transcrever todo esse arrazoado teológico de K.Rahner com
as premissas e a tese com a qual conclui, e concluímos nós também, que a
união hipostática que a teologia atribui a Cristo, ela existe também em cada
ser humano. Aliás, São Paulo já enfatizou esta verdade quando afirmou: “Eu fui
crucificado na cruz com Cristo; não sou que vivo, é Cristo que vive em mim”
(Gal.2,20). E: ”É digna de fé esta palavra, se morremos com Cristo também com
ele ressuscitaremos” (1 Tes.5,18).
P.Casimiro João
smbn
www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br
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