segunda-feira, 23 de outubro de 2023

O que é “Revelação”, conceito moderno de Revelação bíblica.


 

No Blog anterior falei que Deus não é propriedade de nenhuma religião. Na teologia tradicional Revelação era a forma pela qual Deus se dá a conhecer e acreditava-se que Deus só tinha se revelado ao povo de Israel. Concomitantemente vinha o conceito mágico de inspiração e inerrância segundo o qual todas as palavras da Bíblia seriam ditadas por Deus. Este conceito mágico hoje não é mais aceito, mormente desde o Concílio Vaticano II,  conforme a Declaração da  Pontifícia Comissão Bíblica de 1993, 40-41 e Documento Lumen Gentium, 16 do Vaticano II. No Blog anterior trouxe à nossa reflexão as diferentes experiências dos vários povos e civilizações e o novo conceito de “revelação”, que consiste na experiência elaborada de homens e mulheres que desenvolveram experiências mais vivas de Deus.(cf. E.Schillebbekx, “Jesus, História de um Vivente, p.20-26; e H.Kung, “Teologia a caminho”, p.135). 

Depois da reflexão sobre as diferentes experiências dos povos, comecemos pelo exemplo paradigmático, o povo de Israel. O povo de Israel passou por duas experiências diferentes e sucessivas de Deus: do deus da agricultura, “Elohin” que era o mesmo dos Sumérios passou para o deus da guerra, Sabaoth, com a experiência do faraó e da monarquia do rei Davi e aí foram desenvolvendo, absorvendo e formulando a “revelação de Deus” como deus guerreiro: “Formei-te guerreiro para saberes que fora de mim não tem outro” (Is. 45,6). A essa revelação chamamos “o deus do Antigo Testamento”. Com a vinda de Jesus Cristo ao mundo, a humanidade ficou marcada com uma nova “revelação” a que eu chamaria a “terceira revelação bíblica”. Esta é fundamentada na experiência que os Apóstolos tiveram de Jesus Cristo. Jesus Cristo sendo judeu não partilhou da experiência do povo judeu do Antigo Testamento como “deus dos exércitos”, ou “guerreiro”. Desligando-se dessa experiência, corrigiu sempre os seus discípulos que não podiam ser “filhos do trovão” quando eles pediram para mandar “fogo do céu” e queimar os seus adversários (Jo.5,7). Chamando-os até de “satanás” quando teimavam em que ele devia ser o Messias imperador e guerreiro igual o rei Davi (Mt.16,18). Assim Jesus confirmava essa sua desligação da antiga experiência de “revelação” de um deus guerreiro e “imperador”. O último corte conhecido foi o seu silêncio na hora da “Ascenção” quando lhe perguntaram se era agora o início do seu reino imperial? (At.1,1). Daí em diante começou para os apóstolos uma nova etapa, o nascimento de um mundo novo, e de uma nova religião: a nova “revelação”. A duras provas os apóstolos se acostumaram a dizer “Tchau” ao deus do Antigo Testamento, ao mesmo tempo que começaram a sintonizar com a experiência de Jesus Cristo e com a nova “revelação”: “não, o Pai de Jesus não é o deus guerreiro e vingador do Antigo Testamento mas o Pai que acolhe fracos, pequenos, doentes, cegos, aleijados, coxos, paralíticos, mulheres, leprosos, crianças, pecadores, prostitutas, e rejeitados. Eles mesmos sentiram na pele essa fraqueza e rejeição, apanharem de todo o jeito, foram perseguidos, e viram companheiros degolados e mortos à espada. E finalmente sofreram o vexame de ser expulsos das Sinagogas dos seus próprios concidadãos. A esta experiência foi dado o nome de Novo Testamento, e “nova revelação”, como lhe chama inclusivamente o livro do Apocalipse: “Revelação de Jesus Cristo, que lhe foi confiada por Deus para manifestar aos seus servos o que deve acontecer em breve” (Apoc.1,1).

E agora me permitam transcrever H.Kung: “Não há revelação fora da experiência humana, nem cristianismo sem a experiência concreta de Jesus Cristo que dá à vida humana sentido, significado e direção. Jesus Cristo é para a fé cristã revelação definitiva de Deus porque seus primeiros discípulos assim o experimentaram. De certo, não é a fé dos discípulos que constitui Jesus como revelação, salvação e graça de Deus; mas sem essa experiência de fé eles não poderiam considerá-lo como revelação de Deus, salvação e graça. A revelação se realiza num longo processo de acontecimentos, experiências e interpretações, e não numa intervenção sobrenatural um tanto mágica. Usando uma imagem: a revelação vem “de cima”, de Deus, mas sempre é experimentada, interpretada, testemunhada e enfim teologizada “de baixo”, ou seja pelo homem e a partir dele.” (o.c.p.135). Comparemos minha reflexão acima com esta afirmação de H.Kung quando diz que a “revelação vem de cima”. E como custou aos Apóstolos essa nova e “terceira revelação” vinda “de cima”, de Jesus Cristo, tanto que eles não foram capazes de recebê-la nos três anos da vida de Jesus mas só depois da partida de Jesus. E continuando: “mas sempre é experimentada, interpretada e testemunhada e por fim teologizada” (H.Kung,o.c.p. 135). Aqui falamos de “experiência” e “teologização” da “revelação”. Aqui entram modelos culturais da época em que se processa essa teologização. E aqui afirmamos que as duas primeiras “revelações” bíblicas dependeram da história de Israel, a primeira de um “deus agricultor”, a quem deram o nome de “Elohin”, a segunda como “deus guerreiro” ou deus dos exércitos. E a terceira “revelação” dependeu da experiência com Jesus Cristo.

Tanto as experiências de Israel como dos outros povos foram interpretadas e teologizadas segundo modelos culturais da sua época. Vejamos a este respeito mais: “Não só as experiências provenientes da história de Israel, mas também as experiências com Jesus Cristo foram apresentadas desde o início com interpretações diferentes pelos autores bíblicos. São articulações figurativas e conceituais seguindo modelos de um mundo de experiências totalmente diferentes do nosso, que já não falam diretamente para nós, e que precisam hoje de novas interpretações e nova linguagem. O Novo Testamento assumiu com muita liberdade elementos da antiga cultura. Isso também dá a nós a liberdade de apresentar novamente a nossa experiência com expressões próprias de nossa cultura moderna. O Cristianismo não se baseia em mitos, lendas ou fábulas, e tampouco é uma “doutrina” ou a religião do “livro” (H.Kung, o.c.p.136-137).

A teologia cada vez mais usa o método histórico-crítico que tem presidido e fundamentado a ciência moderna. E como afirma ainda o autor citado: “o mesmo concílio vaticano II aprova fundamentalmente o método histórico-crítico. De fato: se hoje uma exegese a-histórica já está totalmente superada, também o está uma teologia dogmática a-histórica. E se a Bíblia precisa ser interpretada de forma histórico-crítica, ainda com muito maior razão também o dogma pós-bíblico. Uma teologia que em vez de questionar os “dados” permanentes continuasse aberta ou veladamente autoritária não poderá responder às exigências científicas do futuro” (o.c.p.139).

Finalmente, o que fica aqui dito sobre a “revelação” e a “experiência” do povo de Israel vale também para os outros povos como afirma São Paulo: “Acaso Deus é só dos judeus? Não é também Deus dos pagãos? Sim, é também Deus dos pagãos. Pois Deus é um só” (Rom.3,29). “Essa experiência com experiências não aconteceu de maneira abstrata em um indivíduo isolado mas sempre no contexto concreto de uma cultura determinada e de uma tradição de experiência religiosa seja cristã, seja budista ou outra. (o.c.p.144). Atenda-se ainda ao seguinte, como atrás ficou afirmado: não basta “recorrer sempre a uma mensagem supostamente a-temporal e eterna, mas é preciso uma nova “tradução” para o nosso mundo. Já indicamos: cada nova situação é um elemento constitutivo intrínseco na compreensão da revelação de Deus. (id.id.).

Conclusão. Quisemos muito resumidamente condensar e definir o conceito de “Revelação” como a teologia o propõe hoje. A teologia atual se baseia no método histórico-crítico da exegese. Na teologia escolástica e neo-escolástica a exegese era uma ciência auxiliar de Teologia dogmática, porém hoje se propugna como sendo ciência teológica Fundamental, segundo J.Blanc e H.Kung. Aqui neste novo paradigma também é posta em questão a Tradição como segunda fonte da teologia dogmática, para a qual a Escritura funcionava como uma “pedreira exegética”, para extrair dela frases soltas e muitas vezes fora do contexto que serviam para aprovar o que se pretendia. Seria um armazém da “pedra filosofal” que servia para tudo. Daí nasciam procedimentos harmonizadores donde concluíam o que convinha. Essa tradição portanto não resistiu ao bisturi da exegese histórico-crítica. Além disso faziam muita confusão entre Eclesiologia e Teologia com interpretações equivocadas, como a exegese moderna descobriu, nos seguintes exemplos: o “poder das chaves”(Mt.16,19);  “Todo o poder me foi dado nos céus e sobre a terra”(Mt.28,18) que levou ao imperialismo mais absolutista da Igreja; e “Quem crer e for batizado será salvo, quem não crer será condenado”(Mc.16,16) entre outros. “A teologia só o será se se fundamentar na exegese histórico-critica” (Josef Blanc, cit. por H.Kung o.c.p.135).

P.Casimiro João   smbn

www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br

 

Nenhum comentário: