No Blog anterior falei que Deus não é
propriedade de nenhuma religião. Na teologia tradicional Revelação era a forma
pela qual Deus se dá a conhecer e acreditava-se que Deus só tinha se revelado ao
povo de Israel. Concomitantemente vinha o conceito mágico de inspiração e
inerrância segundo o qual todas as palavras da Bíblia seriam ditadas por Deus.
Este conceito mágico hoje não é mais aceito, mormente desde o Concílio Vaticano
II, conforme a Declaração da Pontifícia Comissão Bíblica de 1993, 40-41 e
Documento Lumen Gentium, 16 do Vaticano II. No Blog anterior trouxe à nossa
reflexão as diferentes experiências dos vários povos e civilizações e o novo
conceito de “revelação”, que consiste na experiência elaborada de homens e
mulheres que desenvolveram experiências mais vivas de Deus.(cf. E.Schillebbekx,
“Jesus, História de um Vivente, p.20-26; e H.Kung, “Teologia a caminho”,
p.135).
Depois da reflexão sobre as diferentes
experiências dos povos, comecemos pelo exemplo paradigmático, o povo de Israel.
O povo de Israel passou por duas experiências diferentes e sucessivas de Deus:
do deus da agricultura, “Elohin” que era o mesmo dos Sumérios passou para o
deus da guerra, Sabaoth, com a experiência do faraó e da monarquia do rei Davi
e aí foram desenvolvendo, absorvendo e formulando a “revelação de Deus” como deus
guerreiro: “Formei-te guerreiro para saberes
que fora de mim não tem outro” (Is. 45,6). A essa revelação chamamos “o
deus do Antigo Testamento”. Com a vinda de Jesus Cristo ao mundo, a humanidade ficou
marcada com uma nova “revelação” a que eu chamaria a “terceira revelação
bíblica”. Esta é fundamentada na experiência que os Apóstolos tiveram de Jesus
Cristo. Jesus Cristo sendo judeu não partilhou da experiência do povo judeu do
Antigo Testamento como “deus dos exércitos”, ou “guerreiro”. Desligando-se
dessa experiência, corrigiu sempre os seus discípulos que não podiam ser
“filhos do trovão” quando eles pediram para mandar “fogo do céu” e queimar os seus
adversários (Jo.5,7). Chamando-os até de “satanás” quando teimavam em que ele
devia ser o Messias imperador e guerreiro igual o rei Davi (Mt.16,18). Assim
Jesus confirmava essa sua desligação da antiga experiência de “revelação” de um
deus guerreiro e “imperador”. O último corte conhecido foi o seu silêncio na
hora da “Ascenção” quando lhe perguntaram se era agora o início do seu reino
imperial? (At.1,1). Daí em diante começou para os apóstolos uma nova etapa, o
nascimento de um mundo novo, e de uma nova religião: a nova “revelação”. A
duras provas os apóstolos se acostumaram a dizer “Tchau” ao deus do Antigo
Testamento, ao mesmo tempo que começaram a sintonizar com a experiência de
Jesus Cristo e com a nova “revelação”: “não, o Pai de Jesus não é o deus
guerreiro e vingador do Antigo Testamento mas o Pai que acolhe fracos,
pequenos, doentes, cegos, aleijados, coxos, paralíticos, mulheres, leprosos,
crianças, pecadores, prostitutas, e rejeitados. Eles mesmos sentiram na pele
essa fraqueza e rejeição, apanharem de todo o jeito, foram perseguidos, e viram
companheiros degolados e mortos à espada. E finalmente sofreram o vexame de ser
expulsos das Sinagogas dos seus próprios concidadãos. A esta experiência foi
dado o nome de Novo Testamento, e “nova revelação”, como lhe chama
inclusivamente o livro do Apocalipse: “Revelação de Jesus Cristo, que lhe foi
confiada por Deus para manifestar aos seus servos o que deve acontecer em
breve” (Apoc.1,1).
E agora me permitam transcrever H.Kung:
“Não há revelação fora da experiência humana, nem cristianismo sem a
experiência concreta de Jesus Cristo que dá à vida humana sentido, significado
e direção. Jesus Cristo é para a fé cristã revelação definitiva de Deus porque
seus primeiros discípulos assim o experimentaram. De certo, não é a fé dos
discípulos que constitui Jesus como revelação, salvação e graça de Deus; mas
sem essa experiência de fé eles não poderiam considerá-lo como revelação de
Deus, salvação e graça. A revelação se realiza num longo processo de
acontecimentos, experiências e interpretações, e não numa intervenção
sobrenatural um tanto mágica. Usando uma imagem: a revelação vem “de cima”, de
Deus, mas sempre é experimentada, interpretada, testemunhada e enfim teologizada
“de baixo”, ou seja pelo homem e a partir dele.” (o.c.p.135). Comparemos minha
reflexão acima com esta afirmação de H.Kung quando diz que a “revelação vem de
cima”. E como custou aos Apóstolos essa nova e “terceira revelação” vinda “de
cima”, de Jesus Cristo, tanto que eles não foram capazes de recebê-la nos três
anos da vida de Jesus mas só depois da partida de Jesus. E continuando: “mas
sempre é experimentada, interpretada e testemunhada e por fim teologizada”
(H.Kung,o.c.p. 135). Aqui falamos de “experiência” e “teologização” da
“revelação”. Aqui entram modelos culturais da época em que se processa essa
teologização. E aqui afirmamos que as duas primeiras “revelações”
bíblicas dependeram da história de Israel, a primeira de um “deus agricultor”,
a quem deram o nome de “Elohin”, a segunda como “deus guerreiro” ou deus dos
exércitos. E a terceira “revelação” dependeu da experiência com Jesus Cristo.
Tanto as experiências de Israel como
dos outros povos foram interpretadas e teologizadas segundo modelos culturais
da sua época. Vejamos a este respeito mais: “Não só as experiências
provenientes da história de Israel, mas também as experiências com Jesus Cristo
foram apresentadas desde o início com interpretações diferentes pelos autores
bíblicos. São articulações figurativas e conceituais seguindo modelos de um
mundo de experiências totalmente diferentes do nosso, que já não falam
diretamente para nós, e que precisam hoje de novas interpretações e nova
linguagem. O Novo Testamento assumiu com muita liberdade elementos da antiga
cultura. Isso também dá a nós a liberdade de apresentar novamente a nossa
experiência com expressões próprias de nossa cultura moderna. O Cristianismo
não se baseia em mitos, lendas ou fábulas, e tampouco é uma “doutrina” ou a
religião do “livro” (H.Kung, o.c.p.136-137).
A teologia cada vez mais usa o método
histórico-crítico que tem presidido e fundamentado a ciência moderna. E como
afirma ainda o autor citado: “o mesmo concílio vaticano II aprova
fundamentalmente o método histórico-crítico. De fato: se hoje uma exegese
a-histórica já está totalmente superada, também o está uma teologia dogmática
a-histórica. E se a Bíblia precisa ser interpretada de forma histórico-crítica,
ainda com muito maior razão também o dogma pós-bíblico. Uma teologia que em vez
de questionar os “dados” permanentes continuasse aberta ou veladamente autoritária não
poderá responder às exigências científicas do futuro” (o.c.p.139).
Finalmente, o que fica aqui dito sobre
a “revelação” e a “experiência” do povo de Israel vale também para os outros povos
como afirma São Paulo: “Acaso Deus é só dos judeus? Não é também Deus dos
pagãos? Sim, é também Deus dos pagãos. Pois Deus é um só” (Rom.3,29). “Essa
experiência com experiências não aconteceu de maneira abstrata em um indivíduo
isolado mas sempre no contexto concreto de uma cultura determinada e de uma
tradição de experiência religiosa seja cristã, seja budista ou outra.
(o.c.p.144). Atenda-se ainda ao seguinte, como atrás ficou afirmado: não basta
“recorrer sempre a uma mensagem supostamente a-temporal e eterna, mas é preciso
uma nova “tradução” para o nosso mundo. Já indicamos: cada nova situação é um
elemento constitutivo intrínseco na compreensão da revelação de Deus. (id.id.).
Conclusão.
Quisemos muito resumidamente condensar e definir o conceito de “Revelação” como
a teologia o propõe hoje. A teologia atual se baseia no método
histórico-crítico da exegese. Na teologia escolástica e neo-escolástica a
exegese era uma ciência auxiliar de Teologia dogmática, porém hoje se propugna
como sendo ciência teológica Fundamental, segundo J.Blanc e H.Kung. Aqui neste
novo paradigma também é posta em questão a Tradição como segunda fonte da
teologia dogmática, para a qual a Escritura funcionava como uma “pedreira
exegética”, para extrair dela frases soltas e muitas vezes fora do contexto que
serviam para aprovar o que se pretendia. Seria um armazém da “pedra filosofal”
que servia para tudo. Daí nasciam procedimentos harmonizadores donde concluíam
o que convinha. Essa tradição portanto não resistiu ao bisturi da exegese
histórico-crítica. Além disso faziam muita confusão entre Eclesiologia e
Teologia com interpretações equivocadas, como a exegese moderna descobriu, nos
seguintes exemplos: o “poder das chaves”(Mt.16,19); “Todo o poder me foi dado nos céus e sobre a
terra”(Mt.28,18) que levou ao imperialismo mais absolutista da Igreja; e “Quem
crer e for batizado será salvo, quem não crer será condenado”(Mc.16,16) entre
outros. “A teologia só o será se se fundamentar na exegese histórico-critica”
(Josef Blanc, cit. por H.Kung o.c.p.135).
P.Casimiro João smbn
www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br
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