segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Mantos dourados do passado, ou viver o novo?


 

Para quem se sentir sem chão ao ler esta matéria, pode reavaliar seu pensamento sobre a dúvida da fé com a seguinte afirmação de Umberto Galimberti: “Aqui concordam Paulo, Agostinho e Tomás: ‘Não existe uma fé que não seja acompanhada pela disposição da dúvida” (Umberto Galimberti, “Rostos do Sagrado”, pag.333, cf.Tomás de Aquino, Suma Teologica, Questio de fide, quest.I,tr.it, Compêndio de Teologia, Marietti, Turim, 165).

É nesta disposição da dúvida que se baseia a teologia. Percorrendo a Historia vemos que a caminhada tem sido uma interrogação constante. Formaram-se vários sistemas filosóficos e a teologia ia-se apoiando ora num ora noutro. E formaram-se correntes teológicas cada uma respondendo de sua maneira a várias questões, resultando em várias aporias. Concilios e mais concílios foram convocados para debates que se seguiam. Dogmas e mais dogmas foram sendo forjados para tentar barrar mais perguntas a assuntos que ficavam sem respostas. E os autores hoje em dia têm a consciência de que os dogmas, igual a Sagrada Escritura têm a sua consistência na contingência histórica e cultural da sua época em que foram redigidos. “A mesma batalha tem de ser vencida em relação aos dogmas, onde mais uma vez a revelação divina foi expressa por homens” (Raymond Brown, Biblical Reflections on Crises Facing the Church,, London, 1975, p.116). Nesta disposição, vou fazer bastantes citações do Livro “O Católico de Amanhã”, da Paulus,2013, que pode ser considerado uma Introdução à Teologia para os dias de hoje. “Dentro do cristianismo, agnósticos escreveram suas próprias escrituras, inclusive evangelhos, confiavam em suas experiências e seu conhecimento religioso e em geral resistiam a quaisquer exigências da autoridade concernentes ao “verdadeiro” ensinamento. Sua visão do mundo era muito complexa: a matéria era má e Deus estava distante. Selecionavam do pensamento cristão o que se adequava às suas ideias sobre a maneira como a realidade se ligava ao divino. Em especial, dentro do cristianismo, alguns aspectos do gnosticismo encontravam base comum com especulação fundamentada no pensamento judaico: especulação sobre Adão e Eva; o papel da Sabedoria celeste vindo esclarecer os seres humanos perdidos na escuridão; e a criação de rituais batismais como meio de incorporar os seres humanos a uma nova raça celeste livre das restrições deste mundo” (Pheme Perkins). Walter Kasper, bispo e teólogo alemão diz: “A primeira fase no desenvolvimento da doutrina da Trindade ocorreu no conflito com o gnosticismo”. A narrativa mítica de Adão e Eva desempenhou papel fundamental nesse desenvolvimento. Significava, para eles, que Jesus era interpretado no contexto de um modelo de raça caída que precisava ser salva. Como já vimos, essa visão do mundo realçava o fato de nós, seres humanos, não podermos salvar a nós mesmos e obter entrada no céu. A ênfase na dignidade de Jesus e as perguntas complexas que levantou ofuscaram a realidade humana de Jesus. Consequentemente, herdamos uma longa tradição suspeita quanto a falar de Jesus como humano semelhante a nós (por exemplo era limitado; ele não sabia tudo). Esse entendimento teológico desenvolveu-se em grande parte de acordo com padrões do pensamento grego. Do pensamento grego os teólogos da Igreja primitiva criaram um entendimento de Jesus como o Verbo preexistente que tinha estado com Deus e que desceu ao nosso mundo, como se Deus estivesse em outro lugar lá nas nuvens e viesse desse lugar passar algum tempo conosco. Do pensamento grego desenvolveu-se o entendimento de duas naturezas unidas em uma única pessoa. E da mesma filosofia grega desenvolveu-se a solução para a questão teológica mais incômoda a respeito de Jesus – seu relacionamento com o Deus Único da religião judaica. Assim surgiu a doutrina da Trindade. Entretanto, a Igreja cristã ficou irrevogavelmente dividida quanto ao que significava a expressão “da mesma natureza”. O Concílio de Calcedônia definiu o que os cristãos devem crer, mas em uma estimativa em que 99,99% por cento dos cristãos nos séculos que se seguiram não tinham e agora não têm nenhum entendimento dessas palavras. Ao mesmo tempo foi uma época de interferência e até domínio pelos imperadores, e de personalidades interessadas e preocupadas em antagonismo rancoroso e lutas entre bispados importantes. Termos técnicos sem origens bíblicas transformaram-se em palavras-chave em respeitadas declarações de crença. Seu emprego fez com que o Ocidente e o Oriente entendessem mal e dessem uma ideia falsa um ao outro. Doutrinas sobre Jesus, desenvolvidas dentro do contexto de um determinado tempo e cultura, em um entendimento literalista da Queda, uma visão religiosa do mundo que entendia estar Deus distante de nós e a necessidade de Jesus ser uma figura de Deus para sermos realmente salvos passaram a ser consideradas imutáveis. Devemos continuar a contar uma história de nós mesmos em relacionamento com Deus que nos vê primordialmente como uma “raça caída”? Tem um Deus masculino, localizado, que reage e nos deixa de fora, depois envia seu filho que caminha nesta Terra conhecendo o “plano eterno”? e depois faz esse seu Filho ter morte terrível planejada com antecedência, para podermos ser reconduzidos à amizade com esse Deus? Vamos continuar a citar a Escritura para apoiar essa história sem qualquer referência à visão do mundo e aos padrões de pensamento nos quais os autores e editores bíblicos operaram?”(Michael Morwood, O Católico de Amanhã” Paulus, 2013, p.68-73). Em páginas anteriores falei no comunicado da Pontifícia Comissão Bíblica que já em 1993 afirmava que nos evangelhos há inúmeros escritos que dependem de “cosmologias antigas e ultrapassadas”, e que essas teorias “antigas e ultrapassadas” continuam fazendo o substrato de grandes porções de nossa teologia. Quando as novas edições de novas teologias ficarão acessíveis para colocar nas mãos dos alunos dos novos cursos acadêmicos, e daí passando a fazer parte do ensino das catequeses e das homilias? Será um trabalho de anos e anos ou centenas, mas por algum lado se deve começar. Acho que esta é  a questão deste autor da presente matéria.

Vejamos o trato que tem sido dado ao perfil de Jesus. “Depois de sua morte, camadas e camadas de interpretação e entendimento foram colocadas em sua vida e seu ministério, de modo que ficou extremamente difícil conhecer a realidade de carne e osso de Jesus. Quem esse homem realmente pensava que era? O que ele pensava que estava fazendo? O que ele esperava alcançar? Depois de 2000 anos puseram um manto de entendimento sobre a realidade original e continuamos a ver Jesus à luz do manto em vez de refletir sobre a realidade original: a vida e o ensinamento de Jesus. Por exemplo, que pensamentos e sentimentos teriam ocupado a mente de Jesus quando se dirigia para o rio Jordão? Quais eram as convicções que o guiavam? Talvez ele se sentasse na margem do rio algum tempo antes de avançar e se comprometer” (o.c.p.78). Segundo, o que mais intrigava Jesus? Não seria a multidão de pessoas que o procuravam, mas ao mesmo tempo condicionadas pela educação recebida, pelos costumes sociais e pelas atitudes religiosas que os levavam a crer que Deus não estava perto deles? E como eram desprezados pelos outros não seriam também desprezados por Deus? Atitudes de medo, ignorância e um sentimento de distância do sagrada enchiam os seus dias. O que ele teria que fazer para mudar essa situação? O que mais impressionava Jesus era a generosidade entre os pobres. No entanto eles pensavam que Deus não estava perto deles. Jesus teria que chamá-los para mudar essa maneira de pensar. Tinham que mudar a cabeça. Tanto os “bem estabelecidos” não lhes davam importância que eles assim se julgavam sem importância nenhuma diante de Deus. Tanto eram chamados de pecadores, que eles assim se consideravam como pecadores. Tanto eram chamados de impuros, que eles assim se consideravam como impuros. Eles olhavam os “bem estabelecidos” como “ditadores”. E claro, como o filho põe em Deus o que ele vê no pai, eles punham em Deus isso de ser também “ditador”. Porque nossa espiritualidade segue as imagens e pensamentos que temos sobre Deus: ditador e cruel. Nós herdamos, muitas vezes sem questionar e procuramos ser fiéis a essa falsa visão. Dá para termos uma ideia do trabalho que Jesus ia enfrentar entrando nesse mar de lutas.

Conclusão. Grande parte de preconceitos que Jesus enfrentou, não habitarão ainda a cabeça de muitos de nós agora no século XXI? Qual é o novo discernimento que a nova era da nossa história terá que adotar? O escritor Frei Beto inventou o bordão “não estamos numa época nova, estamos numa nova época”. A Igreja como um todo já se deu conta dessa nova época, ou se recolhe e se enrola nos mantos dourados do passado, proclamando que nada mudou, mas que tudo está igual? Como? Se mudou a visão do mundo, transplantam-se corações e rins, dois gêmeos com uma só cabeça se fazem viver cada um com sua cabeça, e está tudo igual? Ou talvez a Igreja continue querendo realizar cirurgias cardíacas num hospital moderno só com o conhecimento do século primeiro depois de Cristo?

P.Casimiro João     smbn

www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br

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