domingo, 6 de dezembro de 2020

A ação conjunta e desencontrada de São Pedro, São Mateus e São Marcos para a redação dos evangelhos, e o evangelho apócrifo de Tomé

O evangelho de Mateus coloca a figura de Pedro em destaque como liderança, porém o evangelho de Marcos enfoca a característica de seguir Jesus como Messias. E só Mateus traz a famosa investidura de Pedro como a pedra da igreja e a entrega das chaves, omitidas pelos evangelhos de Marcos, Lucas e João.

Quando Jesus perguntou: “Quem dizem os homens que eu sou” (Mt.16,13), a resposta de Pedro em Marcos é “Tu és o Messias” (Mc.8,29);  Em Lucas é: “Tu és o Cristo de Deus” (Lc.9,18), enquanto que em Mateus é: Tu és o Cristo, o filho de Deus vivo” (Mt. 16,16).   Respondeu Jesus:“Feliz és tu, Simão filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que te revelou isso mas o meu Pai que está nos céus. E eu te declaro: tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja; e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo que desligares na terra será desligado nos céus” (Mt.16,16-20). Em Marcos, Lucas e João não tem esta resposta de Jesus.

E isto de só Mateus trazer ele sozinho esse texto é significativo, uma vez que Marcos é anterior, e é a fonte tanto de Mateus como de Lucas, de onde eles, os dois, compartilharam os seus evangelhos. Mas então  porquê só Mateus acrescentou tudo isso e chama a sua comunidade de “igreja”? As comunidades de Marcos, Mateus e João não eram também “igrejas”?  Claro que sim, mas ele foi o único a destacar essa comunidade no universo das outras comunidades como sendo a evangelizada por Pedro, em oposição às outras igrejas fundadas e evangelizadas por Paulo. Eles achavam Paulo mais avançado, e dando mais destaque à graça do que a lei, e ao Espirito do mais do que à liderança.

Temos de perguntar mais: qual o real motivo destas diferenças? Além do objetivo de destacar a figura de Pedro, dizem os estudiosos da Crítica das Formas: “As tradições foram não apenas adaptadas mas, em muitos casos, criadas para o uso que as igrejas cristãs as destinavam na pregação ou no ensinamento. O processo de transmissão era bastante criativo.” Isto quer dizer que os redatores iniciais dos evangelhos se sentiam bastante livres para “formularem as tradições de Jesus para o propósito bem diferente de testemunhar a presença atual de Jesus em suas comunidades.” (Richard Bauckham, Jesus e as testemunhas oculares, 310).

Além de as comunidades de São Mateus acharem São Paulo mais avançado, eles se consideravam mais na linha da messianidade e da escatologia, isto é, afirmando que Jesus era o descendente de Davi, e que ia trazer a vitória final e o julgamento dos últimos dias em breve tempo, na linha da escatologia do Antigo Testamento.

Foi assim que essa afirmação única do evangelho de Mateussobre esta pedra construirei a minha igreja”(Mt.16,18) que eles aplicaram à sua comunidade particular, passou para toda a Igreja.

Já Marcos e Lucas não tinham esses problemas no seu entorno. Na verdade os evangelhos de Mateus e de Lucas não compartilharam essa afirmação da “pedra da igreja” e “das chaves”. No evangelho de João também não há nada a respeito.

Vale dar uma olhada agora para o que refere o evangelho de Tomé, que é da mesma data de Marcos, sobre o mesmo assunto: “Jesus perguntou a eles: A quem vocês pensam que eu me assemelho? Pedro respondeu: Tu és como um anjo justo. Mateus respondeu: Tu és como um sábio filósofo.” E disse também Tomé: “ Mestre, minha boca é completamente incapaz de dizer a quem te assemelhas.” Jesus lhe respondeu: “ Não sou eu teu mestre, pois bebeste, te tornaste ébrio da fonte borbulhante que eu cavei”? (Dito 13 de Tomé). Isto porque o evangelho de Tomé não tinha interesse algum na Bíblia hebraica ou na expectativa messiânica hebraica” (Richard Bauckham, 303).

Na verdade, houve cinco etapas na redação dos evangelhos: 1. memórias sem ordem e sem cronologia, 2. recontagens 3. reformulações, 4. expansões,  e 5. trabalho editorial dos redatores (evangelistas).  Até que ponto a tradição foi conservada ou criativa e, portanto, em que medida o conteúdo dos evangelhos preservou fidedignamente o que Jesus, de fato, disse e fez, é questão sobre a qual os estudiosos divergem largamente.

Vamos analisar outras narrativas agora: 1º a transfiguração: A cena da transfiguração de Marcos (Mc.9.2-10) foi compartilhada por Lucas e por Mateus. Nesta cena, a figura de Pedro incorpora e envolve os leitores. A proposta de Pedro a Jesus, é a mesma que qualquer leitor seria levado a dizer “ Mestre, é bom estarmos aqui; façamos três tendas, uma ti, outra para Moisés, e outra para Elias” (Mc.17,5). Esta é a habilidade e intencionalidade dos escritos do evangelho de Marcos: envolver o leitor, colocá-lo ali na presença.

Aqui seria necessário enfocar o gênero literário “teofania”, manifestação divina ao jeito das teofanias  do Antigo Testamento com o objetivo de impactar o leitor no ensino a ser transmitido, como assim em outros episódios onde o escritor põe Deus “falando” no meio do fogo, da tempestade, das nuvens e relâmpagos e dos trovões.

A sonolência na hora da Agonia: Aqui Pedro e os outros decepcionaram Jesus ao adormecerem no Getsêmani. A função narrativa desta sonolência é possibilitar ao leitor  compreender e simpatizar com a incapacidade dos discípulos de permanecer acordados. O episódio é um apelo à nossa identificação com eles, outro jeito de habilidade do evangelista.

3 - As negações de Pedro: Também o episódio das negações de Pedro foi compartilhado por Mateus e Lucas. É constrangedor que Pedro tivesse por três vezes negado Cristo (Mc 14.66-72). Mas assim como nos episódios já mencionados, também a negação é um apelo que provoca e envolve o leitor de Marcos.

Também o leitor contemporâneo de Marcos tinha ocasião de sacar daí algumas lições: Assim como o “mais corajoso dos apóstolos” negou o Cristo e se recuperou, não seria um apelo para que muitos que teriam negado a sua fé pudessem também voltar para ela e para a conversão? Eis a questão.

Antes de terminar gostaria de enfocar uma conclusão que alguns teólogos protestantes tiram da existência das várias teologias e enfoques teológicos nos evangelhos. Por exemplo Kaselmann diz que isso não funda a unidade da Igreja mas a “diversidade das confissões”.

A esta questão responde Leonardo Boff que não se deve olhar a uma parte mas ao todo dos textos neotestamentários, validando a aporia de que o todo vale mais do que a parte. ”A unidade da Igreja é uma realidade teológica fundada na audiência e obediência do único evangelho de Jesus Cristo que está para além dos textos evangélicos. Aqui não decide a história mas a fé”. (Leonardo Boff,A Igreja, Carisma e poder”, 135).

Tivemos ocasião de ver o ambiente em que os evangelhos foram pensados e escritos.  Mateus e Lucas beberam na fonte de Marcos, que é o 1º evangelho. E apesar de ser o primeiro, a palavra “igreja” e chaves não aparece em Marcos e nem em Lucas, e vimos a variante do evangelho de Tomé.

Voltemos de novo ao título da matéria que é a ação conjunta e desencontrada de São Pedro, São Mateus e São Marcos para a redação dos evangelhos, e o evangelho apócrifo de Tomé

P.Casimiro    smbn

www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br

 

Nenhum comentário: