segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

MITOS POR AQUI E POR ALI NOS EVANGELHOS

 

“A Bíblia sem mitos” é um livro aberto de Eduardo Arns, Paulus, 2014. Hoje tomei como tema o episódio narrado por Marcos onde conta a degolação por Herodes, e onde peritos encontram mitos e lendas. (Mc.6,14-21). Entre as várias considerações que aqui cabem, vou-me limitar a três. Primeira: Não é histórico que João Batista tivesse se encontrado com Herodes, e por isso é considerado redacional aquela narrativa segundo a qual ele lhe teria dito ‘não te é permitido ficar com a mulher do teu irmão’. (Mc.6,8). E de quebra a outra afirmação que “Herodes gostava de ouvi-lo embora ficasse embaraçado quando o escutava e por isso o protegia” (v.20). Isto são preliminares redacionais para compor a cena que se segue. Em seguida vamos falar dos dois motivos-chave da cena desenvolvida  em dois atos. O primeiro ato trata do tema do matrimônio, que teria levado João à prisão e à degolação. O historiador Flávio Josefo, testemunha insuspeita sobre a história declara que Herodes desde o princípio odiava João e o perseguia mandando espiões emissários para espionar a atuação de João Batista que ele considerava subversivo e com potencial de arrastar multidões para uma revolta política (Cf. Shed Meyer, O Evangelho de Marcos, pag. 264). Por sua vez, os matrimônios na Palestina eram feitos por alianças. Deixavam uma esposa por outra por causa de alianças com a nova família e por amizades e compromissos com os pais de uma ou de outra.(o.c.p.321). Por isso ao evangelista interessava só o motivo religioso para não expor as autoridades desviando do motivo político, que era o único em questão, visto que tanto para os profetas como para o povo em geral essa situação era normal, e muito mais para as autoridades reais como acontecia com Davi e Salomão com as suas concubinas. Em segundo lugar aparece a arrumação adequada para aumentar a “moralidade” do conto: a dança da filha de Herodíades. Os estudiosos consideram esta cena como uma “lenda piedosa” para encontrar motivo de pedir a cabeça de João Batista: “É uma parábola para descrever o sistema de como a vida humana era pisada para salvar a face régia” (S.Meyers o.c.p.265). Não é difícil comparar com cenas de hoje, pensando como são pisadas vidas humanas na Faixa de Gaza para salvar figuras de mandantes tiranos como o primeiro ministro de Israel e o aliado presidente da América do Norte. Na verdade o evangelho é um código. Não devemos parar numa palavra como tal, mas é um link com muitos desdobramentos. Reportamo-nos agora com um olhar relâmpago à “Bíblia sem mitos” para ajudar-nos na conclusão do nosso tema. Sobre alguns imaginários  vejamos algumas afirmações: “Muitos pensam que tudo o que é narrado pelo fato de estar na Bíblia é histórico” (Eduard Arns, Bíblia sem mitos”, p.105). Perguntemos o que se entende por ‘lenda’: “A vida de um personagem essencialmente histórico, mas onde se exagera o aspecto no qual a lenda se esconde tanto que parece incrível” (E.Arns, o.c.p.103). Outro exemplo: “Quase todos os leitores contam como se o episódio da entrega da Lei no Sinai ocorresse como se narra; porém, na entrega da Lei de Hamurabi o rei recebe também a Lei das mãos do deus Marduk” (o.c.p.106). Também pensamos que profecias e Apocalipse dizem coisas sobre o futuro; porém os profetas falavam do presente e para o presente do seu povo e não para 20 séculos adiante, e para traduzir aquilo quando dizemos: ‘quem ri por último ri melhor’. (o.c.p.110).

Conclusão. Não seria pequeno o número de lendas e mitos pesquisados na Bíblia, a começar no relato da criação e encerrando com o Apocalípse, o primeiro e o último dos livros da Bíblia. Começamos com os evangelhos mas nosso confronto foi mais longe dando essa olhada de relâmpago mais vasta.

P.Casimiro João      smbn

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domingo, 16 de fevereiro de 2025

CADÊ A FELICIDADE DOS POBRES, CADÊ AS BEM-AVENTURANÇAS?


 

A felicidade dos pobres é saber que eles têm os mesmos direitos dos ricos, coisa que eles não sabiam. Sem dúvida que é esse o sentido  da ordem de Jesus: “Eu vim pregar a Boa Nova aos pobres” (Lc.4,18). E felizes aqueles ricos que colaborarem para que isto aconteça, quando não colocam entraves e obstáculos no caminho dos pobres. Segundo Jesus, a mesa da felicidade é para todos, representada na parábola do banquete (Mt.22,1-14). Historicamente os judeus do A.T.fizeram uma teologia baseada na opressão dos reis, que se tornou uma opressão igual à opressão dos faraós do Egito, e por isso viram-se sem chão quando perderam as esperanças de felicidade quando ganharam a Terra prometida mas não ganharam a felicidade. E a teologia foi assim: aqui no mundo o pobre não consegue saída, então só no fim dos tempos, na vida do além“ ou na outra reencarnação” com a vingança de Deus. E isto se chamou a teologia escatológica ou do fim dos tempos. Foi esta situação que Jesus encontrou. E ele então anunciou que os pobres não são excluídos da mesa da felicidade, eles têm o mesmo direito igual aos reis e aos ricos. E conclamou ricos e pobres para participar da mesma mesa. E ele estava convencido que isto pudesse acontecer ainda na vida dele. (Cf.Schillebeeckx, “Jesus, a história de um Vivente, pag.156). E pôs a sua cabeça a prêmio. Isto aconteceu, não aconteceu? Foi igual ao princípio da criação: o mundo para todos. Tem havido bons tempos e tempos maus. Na segunda criação, na segunda lei do Novo Sinai com Jesus também tem havido tempos bons e tempos maus. Houve muitas conquistas dos pobres, e muita opressão de poderosos, mas há melhorias. E muitas igualdades têm acontecido. A mesa do Ensino ficou mais igual, a mesa das Universidades, a mesa dos Direitos Humanos e a mesa de um mundo mais igual e democrático. Os estudiosos dizem que os “Ais” dos Evangelhos não são  de Jesus, mas dos pregadores e redatores posteriores (o.c.p. 167). “Sofrer” é vontade de Deus? Ser “pobre” é vontade de Deus? Esta foi a teologia fabricada no Antigo Testamento para não se “revoltarem” contra Deus, que “permitia” isso, assim pensavam. E as Igrejas na sua história fizeram ressuscitar essa teologia para “sossegar” a sua consciência de manterem os seus privilégios, e também para “agradar” aos poderes políticos para manterem os pobres na “sujeição” e na “escravidão”. Isto porque: "O poder requer corpos tristes. O poder necessita de tristeza porque consegue dominá-la. A alegria portanto, é resistência, porque ela não se rende. A alegria como potência de vida leva-nos a lugares aonde a tristeza nunca nos levaria" (Gilles Deleuse).

Conclusão. Tentamos responder à pergunta "Cadê a felicidade, cadê as bem-aventuranças". No contraste da teologia do sofrimento do Antigo Testamento adotado depois pelas Igrejas e pelos poderes públicos, analizados pela psicologia da dominação.  

P.Casimiro João      smbn

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domingo, 9 de fevereiro de 2025

GERASENO, O POSSESSO


 

Quando foi escrito este episódio do evangelho as comunidades discutiam se era para pregar o evangelho aos estrangeiros ou não. Essa preocupação era uma  ideia fixa para as comunidades, e apresentavam-se motivos religiosos e políticos. Os motivos religiosos se baseavam em que na vida terrena de Jesus ele proibira os discípulos de ir aos gentios e aos samaritanos “Não ireis ao meio dos gentios nem entrem em Samaria” (Mt.10,5).  E “Eu fui enviado somente para as ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt.15,24).  O segundo motivo religioso era que os territórios dos pagãos era terra impura. O fato de os discípulos sacudirem o pó das sandálias tinha o paralelo de que os israelitas tinham que sacudir a poeira da roupa e dos chinelos quando entravam no território de Israel,  porque eles vinham contaminados dos territórios das nações estrangeiras. O terceiro motivo que era  político é que as legiões dos exércitos romanos em territórios estrangeiros poderiam impedir a ação missionária dos cristãos. Com o fundo deste quadro tripartite podemos compreender a ação simbólica da expulsão “da legião de demônios” do possesso geraseno desses territórios pagãos. Em primeiro lugar “o evangelho aos estrangeiros que não se podia pregar porque eram territórios impuros: então o evangelista fez este quadro para dizer que Jesus já os purificou. Agora já são territórios purificados porque Jesus purificou o território dos gerasenos quando “expulsou” os demônios do geraseno que eram “legião”. E mais purificados ficaram quando os demônios que saíram dele entraram nos porcos e se atiraram ao mar e todos se afogaram, nos recordando ainda os soldados do faraó que ficaram afogados no mar vermelho. Deste modo, geraseno purificado e território purificado numa baita lição para os ouvintes. Os                                                                      motivos religiosos estão aqui resumidos, e de agora em diante não tem divisão em território “santo” e território “impuro”. Quanto ao motivo político da Legião que representava o imaginário do medo das legiões romanas, também este imaginário não tem mais fundamento uma vez que o poder de Jesus glorioso é mais forte do que as “legiões” que atacaram aquele homem e aquele território. E também elas reconheceram o poder do Salvador.

Conclusão. Olhando a conclusão do sucesso da cena notamos que o homem curado foi mandado “a pregar na região tudo o que Jesus tinha feito” (Mc.5,20). E em Lucas: ”Volta para casa e conta quanto Deus te fez” (Lc.8,39).

P.Casimiro João    smbn

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segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

DIFICULDADES DE PASSAR DE CONVICÇÕES ANTIGAS.

 

Antes a ciência era escrava da fé. A fé era ditada pelo magistério da Igreja. E os teólogos recebiam a incumbência de divulgar a fé e explicar os documentos da Igreja. Havia sempre a sombra e ameaça da excomunhão. Nasciam daí os dois tipos de magistério: um magistério soberano, absoluto e infalível, o da cúpula da Igreja; e outro magistério subalterno. O primeiro era o “magistério eclesiástico”; o segundo, o “magistério teológico”, distinção feita pelo alemão Hugo Grotius no século XVII. Desde que a Igreja dominada pelo império recebeu a credencial de liberdade do imperador Constantino, até o final da Idade Média, foram muitos séculos deste esquema. Só mudou a situação com a chegada do Renascimento iluminista e as suas descobertas como a liberdade de consciência e a liberdade de religião, consideradas como as colunas e as alavancas da modernidade. A duras provas aconteceu a emancipação dos poderes dos reis e no que toca à teologia, e à ciência o diálogo mútuo. Em seguida chegou o processo da libertação dos escravos das mãos dos reis e dos nobres e dos senhores feudais; e de quebra a libertação dos direitos totalitários da fé sobre o magistério teológico e a ciência.  A duras provas aconteceu tal processo mas aconteceu: a custo de excomunhões, ameaças, prisões e torturas de cientistas e teólogos. Deste modo a ciência conseguiu seu status de igualdade, com os mesmos direitos e de independência da fé. Até que hoje, após o concílio vaticano II vivem lado a lado em boa harmonia e colaboração, sem contar sempre aqui e ali com os retrógrados que sempre ficam amarrados ao passado. O que acontece com aquele ditado: quem não avança volta para trás porque a vida é movimento. A Igreja sentiu que devia se adequar com exigências da ciência como controle de natalidade, métodos anticoncepcionais, pílula anticoncepcional, comportamentos homoafetivos, e reavaliação da qualidade de “pecados antigos” hoje vistos sob o prisma onde entra a ciência e a crítica histórica, a psicologia e a antropologia, como os “pecados dentro do matrimônio” e “masturbatórios”, “valor da virgindade” e suas motivações, assim como o valor dado a manifestações afetivas antes duvidosas ou condenadas. Isto posto, vejamos afirmações a respeito, de um dos maiores teólogos do séc.XX: “Evidências científicas não podem ser detidas pela fé, podem contradizer certas imaginações em torno da fé” (Schillebeeckx, “Jesus, a vida de um Vivente”, pag.58). Por outro lado, o mesmo teólogo alerta sabiamente sobre as dificuldades de quem estava acostumado com a fé antes da ciência: “Na hora da divulgação dessas novas convicções há, muitas vezes, pouca compreensão para as dificuldades dos fiéis em se acostumarem com essas novas ideias e assimilá-las. De outro lado, o resultado crítico não pode ser silenciado, e isso exatamente para o bem da fé cristã. A fé nada perderá por causa de uma verdade nova, empírica, pelo contrário ganha muito” (o.c.p.59). Falei noutra página que até há pouco tempo se dizia que a revelação terminou com a morte do último apóstolo, o que agora é uma falácia porque ninguém sabe quando morreu o último apóstolo, além de que quase todo o Novo Testamento foi escrito depois da morte de todos os apóstolos, e ainda mais, sabe-se agora que a autoria do Novo Testamento não é de nenhum deles mas das comunidades, com poucas exceções mormente das comunidades da Síria. Avançando, vejamos mais: “A revelação, como revelação, só está completa, a bem dizer, na resposta da fé surgindo de uma situação bem concreta com horizonte próprio de perguntas. E nossas perguntas de hoje são diferentes das do passado. (o.c.p. 54). No caso, a revelação tem duas mãos: numa mão o que recebemos do Jesus de Nazaré, noutra mão a interpretação da situação atual.

Conclusão. Falou-se da dificuldade dos fiéis em se acostumar com as novas ideias. “Um fato é que no passado os fiéis e até os teólogos e o magistério consideravam todas as tradições do N.T como relatos diretos de acontecimentos históricos. A teologia e as repostas da fé baseavam-se também numa interpretação pré-crítica, puramente biblicista, da história de Jesus, uma vez que não se discerniam, por ex. a diferença entre os gêneros literários, e que cada época é inevitavelmente sujeita a limitações do seu próprio contexto histórico(o.c.p.58). Daí vem a necessidade de entender as dificuldades dos fiéis para se adequarem com a nova realidade que está surgindo. Mas tem que ir acontecendo.

P.Casimiro João      smbn

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