domingo, 24 de novembro de 2024

UMA RADIOSCOPIA DO EVANGELHO

 

Comecemos pelo primeiro dos evangelhos, o evangelho de Marcos. Marcos não tinha consciência de que estava escrevendo “evangelho”, e nem Mateus, nem Lucas e nem João. Somente na metade do séc.II esses escritos foram chamados “evangelhos”, nome dado por Marcião. Antes de Marcião eram chamados “Memórias dos Apóstolos”, nome que lhes deu Justino mártir. (Cf. H.Koster, Introdução ao N.T. vol.II, p.10). Também foi com Justino mártir que havia a briga entre ele e Marcião sobre a inclusão do A.T. no cânon cristão, uma vez que Marcião, apoiando-se nas Cartas de Paulo afirmava que Cristo era o fim da lei (Rom.10,4), ele argumentava: como essa lei judaica ainda podia ser Escritura autorizada? Entra agora em cena o primeiro evangelho, de Marcos, que deu suporte para os outros evangelhos. O ponto fulcral é o kerigma que consiste no anúncio da Paixão como iremos ver. Judeus helenistas convertidos haviam fundado sua congregação em Antioquia, na Síria. É de suma importância que “o ponto de partida para a pregação da ressurreição de Jesus como momento decisivo da história deu-se então em Antioquia, a primeira capital da província romana da Síria onde esses judeus tinham se estabelecido. Foi aí que Pedro se estabeleceu também depois do concílio de Jerusalém, até que a ‘tradição sobre sua ida a Roma e o martírio sob Nero é lendária” (H.Koester, o.c.p.176). Aí na Síria se desenvolveu em primeira mão o primitivo cristianismo tendo como carro-chefe a influência ou “o partido de Pedro”. E como início da radioscopia sobre a influência de Pedro eis o que nos apontam os estudiosos nas seguintes linhas sobre o kerigma anunciado por Pedro e transformado na redação do evangelho no qual Pedro é o primeiro a proclamar que Jesus é o Messias, como afirma o capítulo oito de Marcos,(Mc.8,29), embora este episódio possa ser considerado como o relato de uma epifania ou aparição anterior de Jesus a Pedro. E não só, mas semelhante a este existe o relato da transfiguração, que pode ter sido também originalmente uma história sobre a aparição de Jesus a Pedro, onde foram colocados João e Tiago por um redator posterior para compor a narrativa (Cf. o.c.p.196). É conhecido que na redação dos evangelhos aparecem disputas entre nomes de apóstolos. E há historicamente confusão sobre cópias e recópias de manuscritos bíblicos. Isto foi devido à maior destruição e queima de manuscritos bíblicos que aconteceu na grande perseguição do cristianismo de 303 a 311 d.C. que representou a destruição de número incontável de manuscritos bíblicos. Alguns outros papiros soterrados começaram a aparecer com a descoberta da Biblioteca de Nag Hammadi, em 1930. E esses papiros perdidos eram do fim do séc.II e início do séc.III. Aí se descobriu que a edição do evangelho de Marcos que foi usada por Mateus e Lucas era substancialmente diferente da primeira edição de Marcos como ele a transmitiu em primeira mão. Até porque também se descobriu que na transmissão desses manuscritos aconteciam omissões e inversão de letras dando numa palavra diferente, ou grupos de palavras muito apagadas, como até omissões de linhas inteiras. E literalmente o mesmo autor informa: “Citações bíblicas nos escritos do N.T. eram com frequência corrigidas comparando-as com manuscritos do Antigo Testamento. Textos paralelos do evangelho foram absorvidos e incorporados uns aos outros, além de que outros redatores fazem modificações por motivos teológicos segundo a sua opinião pessoal.” (o.c.p.178). Nessa época estava também circulando o Evangelho de Pedro nessas comunidades da Síria. Mesmo assim, a transmissão dos ensinamentos de Jesus nunca está relacionada com o nome de Pedro. Foi só a partir de um tal Papias, líder da cidade de Hierápolis, que a tradição eclesiástica ligada ao evangelho de Marcos considerou esse evangelho um transcrito de palestras de Pedro. Mas há algumas características nesse evangelho primitivo de Pedro: O evangelho de Pedro contava pouco mais do que a narrativa da Paixão, à qual outros redatores depois deram um desenvolvimento com o recurso de “passagens de Salmos e do Deutero Isaías, 40-56. Nela há diferenças entre a data da crucificação. Outra diferença: Na lenda do encontro do túmulo vazio, só a Madalena é mencionada. Mateus, Marcos e Lucas acrescentam os nomes de outras mulheres, e João apresenta Maria Madalena competindo com Pedro e com o discípulo amado. Mais: “No Evangelho de Pedro a história da epifania da ressurreição de Jesus está, sem dúvida nenhuma, repleta de características lendárias secundárias. No entanto, como Pedro era conhecido como a primeira e mais importante testemunha na tradição mais antiga das igrejas da Síria, não surpreende que uma história antiga sobre a Paixão, morte e ressurreição de Jesus fosse a primeira escrita sob a autoridade de Pedro. E na verdade, os estudiosos afirmam que “seitas judeo-cristãs encontradas mais tarde nesses locais afirmavam que conservavam os verdadeiros ensinamentos de Pedro”(o.c.p.178). E agora entendemos os reais motivos por que havia uma “séria polêmica das tradições petrinas da Síria contra as comunidades paulinas.(Gal.2,11-22). Agrupamentos judeo-cristãos, com suas coleções de histórias de milagres, forçaram a ser aplicadas a Jesus para que fossem usadas como manuais para suas atividades. Jesus aparece aí claramente como homem divino e a demonstração do poder divino a ser assumido como mensagem obrigatória. (id.p.181). E atenção para a afirmação do estudioso que estamos seguindo sobre a resposta de Paulo: “Para Paulo, como vimos, esse não passa de um ‘Cristo segundo a carne’ - 2Cor.5,16) - a quem ele contesta com a tese de que Jesus não era o mais poderoso de todos os seres humanos, mas aquele que fracassou na cruz, e cuja ressurreição se tornou agora poder para os fracos e liberdade para os desdenhados” (o.c.p.181).

Conclusão. O evangelho era só, no início dos inícios, o kerigma ou anúncio da Paixão, morte e ressurreição baseado no hino do servo sofredor do II Isaías, 40-56. Marcos segue os passos de um gênero literário que era a biografia do profeta tipo Jeremias, e não só, mas indo buscar o elemento essencial do servo sofredor de Is.40-56 como dissemos. E aí acontece o inesperado no evangelho de Marcos como um filme onde esperamos uma grande surpresa da vitória; mas no evangelho de Marcos dá-se o contrário: termina com a história do encontro do tumulo vazio, de tal maneira que os outros evangelhos acharam um final tão sem graça que o florearam com outras narrativas de anjos e mulheres, assim como com a lenda de Mateus dos guardas fugindo do túmulo. Em Marcos é indicado o caminho para a Galileia, onde tudo começou. (cf. id.p.186).

P.Casimiro João       smbn

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segunda-feira, 18 de novembro de 2024

TEOLOGIAS DE “SUBSTITUIÇÃO” E DE “ENTRONIZAÇÃO” DE DEUSES.

 

Antigamente havia a substituição de deuses, um deus por outro deus. Onde está isso registrado é no poema mais antigo da humanidade, o Enuma Elish, onde se assiste à troca de Inana por Marduk à supremacia sobre o conselho dos deuses. E, de quebra, onde há substituição há entronização. (Cf. Cf.Rolin Scroggs, O Jesus do povo, Paulus, 2012, p.42). É disto que vamos falar. Essa teologia antiga dos sumérios continuou até à Bíblia, para o A.T. e quem sabe, depois passou para o N.T. com algumas semelhanças. E não nos admiramos, uma vez que os humanos colocavam os deuses fazendo as mesmas coisas que fazem os seres  humanos. Assim como nos governos humanos quando um rei não servia mais, era substituído por outro rei, governador por outro governador. Sobre a Bíblia, vejamos o que nos diz a história: Mesmo Javé pode não ter sido o sempre o deus supremo de Israel. Segundo alguns estudiosos, os primeiros israelitas viviam à sombra da supremacia das divindades ugaríticas que tinham o deus “El”, no entanto Davi trocou “El” por Yahweh. Yahweh passou assim a controlar as nações e era o supremo sobre outras divindades, e encontramos ecos disso nos salmos 52 e 47. E a história não fica por aí. Já mesmo no final da epopeia de Israel, aparecem elementos novos que nos trazem outra surpresa. Aparece a imagem de Deus como o “Ancião dos Dias” que vai ser substituído por um senhor e deus novo,  o “Filho do Homem”.(Dn.7.14). Daniel apresenta este Filho do Homem como sendo uma “substituição” do deus antigo. O deus velho, o “Ancião dos Dias” abdica em favor de um deus jovem, que assume seu lugar, à imitação dos deuses ugaríticos e do poema Enuma Elish. (c.o.p. 39). Isto considerado desta maneira, não obstante o tema de Daniel em si relacione estreitamente o Filho de Homem ao povo de Israel na teologia tradicional, mas é muito provável que a própria estrutura mítica nos leve a afirmar o outro lado da medalha: essa figura é divina. E agora aqui funciona a teologia da “substituição”. O livro de Daniel foi escrito para celebrar a vitória dos macabeus no ano 165 a.C. Aí o povo respirou fundo e sentiu-se novamente livre, depois de séculos de opressão, com dois cativeiros, a queda da Samaria e a queda de Judá. Como era próprio das teologias antigas deduzir que a derrota da Nação era a derrota do seu deus, então o deus Yahweh sofria as mesmas derrotas sucessivas que o povo sofreu. Isto dá o suporte teológico para essa visão mítica onde Daniel terá colocado em análise e em prática a teologia reinante do princípio da “substituição” e da derrota dos deuses. Assim, “abalada a antiga teologia de Yahweh como senhor da história, agora, com as surpreendentes vitórias dos Macabeus, esse fato encaixou na prática das teologias reinantes. A vitalidade da nova época precisava de alguma nova forma onde a antiga teologia fosse aplicada. Essa aplicação foi encaixada no mito de entronização celeste do “um como Filho de Homem” que fosse bastante forte para por em prática o programa que o deus Yahweh por tantos longos anos não tinha resolvido” (Cf. o.c.p.40). Lembremos: estamos lidando com teologias antigas e não do nosso tempo. E dentro dessas teologias da “substituição” de um deus pelo outro o ponto culminante da festa era a “entronização”. E é disso que nos dá notícia o livro de Daniel: “A ele foi dado poder, glória e reino, e todos os povos, nações e línguas o serviam. O seu poder é eterno que nunca lhe será tirado e nem destruído” (Dn.7,14). O teólogo Emerton conclui: “As quatro passagens de Filho do Homem enquadram-se bem no pano de fundo da festa de entronização e das ideias cananeias e israelitas a ela associadas” (cit. em R.Scroggs o.c.p 41). E continua Scroggs: “O tema é retomado na exaltada conclusão de Mateus onde Jesus ressuscitado reivindicou poder divino em alusão a Daniel: “Toda autoridade sobre o céu e sobre a terra me foi entregue” (Mt.28,18; o.c.p.41). Esta teologia de substituição e entronização passou depois para as Cartas paulinas em expressões muito carregadas. São Paulo fala que não foi “usurpação” ou competição. (Fil.2,6-11). Porém, as funções antes atribuídas a Yahweh como “cosmocrator”, e como senhor do mundo e juiz do mundo passavam para o Cristo, o Filho de Homem por “substituição”. E vejamos bem se isto não está mesmo no nosso imaginário inconsciente: Todo cristão deixa “Deus” de lado e todo mundo se dirige a Jesus.. Semelhante ao que aconteceu naquele tempo: o que não foi possível acontecer com o mando de Yahweh estaria agora acontecendo com os triunfos dos guerreiros macabeus e  com a entronização do novo “Cosmocrator” Filho de Homem, que na linguagem helenista tomava o nome de Kyrios Iesous Cristos. Desde esse momento era inaugurado um novo tempo de prosperidade. “O mundo agora era uma realidade agradável na qual todos podiam viver e respirar livremente. Os poderes demoníacos e os impérios que outrora escravizavam o cosmo estavam agora destronados, e o Filho de Homem Iesous Christos reinava. Como em todos os cultos, esse Kyrios ou novo Senhor é honrado, seus membros exultam  com confiança por estarem à direita e terem contato com aquele que verdadeiramente governava. Assim, todo Israel interpretava e celebrava a entronização descrita por Daniel, e ao mesmo tempo assim passou a ser lida pelas comunidades do Novo Testamento. Era assim como a satisfação de quando se elege um novo governo no qual o povo põe toda a sua confiança. Assim como diz aquele grito “Ó rei, vive para sempre”; Viva o novo rei!” Como dizem os teólogos, era uma teologia de consequências políticas, isto é, referente ao presente, e não escatológicas, isto é, para o futuro. (Cf. o.c.p.35). Vamos agora localizar uma passagem das Cartas de Paulo onde ele assumiu este modelo de teologia: “Por isso Deus o exaltou soberanamente e lhe outorgou o nome que está acima de todos os nomes para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho no céu, na terra e nos abismos. E toda a língua confesse para a glória de Deus-Pai que Jesus Cristo é o Senhor” (Fil.2,6-11). Na verdade, o que na Velha Aliança Isaías tinha colocado em Yahweh, foi aplicado agora ao Cristo Jesus, o novo entronizado: “diante de mim se dobrará todo joelho e por mim jurará toda a língua dizendo só: em Yahweh se encontra justiça e força” (Is. 45,23). (Cf. o.c.p.35).  

Conclusão A nossa teologia encara com coragem a volta à antiguidade não só judaica mas também pre-judaica com a tarefa de analisar à luz de hoje antigas teologias tanto judaicas como pre-judaicas. E não devemos nos podemos surpreender com as descobertas, uma vez que os humanos quando falam de Deus e dos deuses falam fazendo deles seres semelhantes aos homens, como a “substituição e entronização”. Também no meio, há outra atitude que também existe: a “usurpação”. Por isso São Paulo nas Cartas adverte claramente que Jesus Cristo não veio por “usurpação”, mas por “substituição”. “Jesus Cristo, sendo em forma de Deus, não teve por “usurpação” ser igual a Deus, mas aniquilou-se a si mesmo quando se fez humano e semelhante aos homens” ( Fil.2,6-11). Finalmente o próprio Apocalipse começa com Deus entregando a tarefa da "revelação" que vai seguir-se a "Jesus Cristo" como uma missão a cumprir: "Revelação que Deus confiou a Jesus Cristo, para que mostre aos seus servos as coisas que devem acontecer em breve"(Ap.1,1).

P.Casimiro João      smbn

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segunda-feira, 11 de novembro de 2024

O JESUS DOS GREGOS E O OUTRO JESUS, O KYRIOS E O CHRISTOS.

 

Para os cristãos gregos a palavra “Jesus” não dizia nada. E então associavam-na a um tal “chrestos” que era o nome de um escravo lendário por ser muito bom, conforme o historiador Suetônio (R.Scroggs, O Jesus do Povo, p.119). Em diálogo com os cristãos da Palestina é que os gregos começaram associando Jesus à palavra Kyrios quando eles aclamavam os deuses e as deusas ou o imperador, palavra que era “senhor” e kyrios. Por outro lado, os gregos tinham a notícia de que na Palestina tinha andado um tal Jesus que alguns judeus achavam que era um “político”-Messias. O tal Messias era considerado “herdeiro do trono de Davi”, e teria vindo para ser um governante político-militar. Mas as autoridades se desfizeram dele. Porém outros, em maior número, o consideravam um religioso conhecido como filho do homem, igual alguns profetas antigos. E assim essa história tinha chegado aos ouvidos dos gregos. Na verdade os camponeses hebreus espoliados talvez não tivessem esperança de que o Jesus governante político-militar fosse mais favorável à sua sorte miserável que todos os governantes que vieram antes dele e aos quais ainda estavam submetidos no presente. Pelo contrário aquele Jesus “curandeiro” que tinha andado no meio do povo, a quem chamavam “Filho do Homem” era mais popular e compatível com os camponeses. Neste sentido, é concebível que esta crença fosse o fator mais forte que tornou o título “Messias” possível e aceitável  para os judeus, mas para os gregos, ao contrário, tanto “Filho do Homem” como “Messias” não dizia muita coisa, pois não era da sua cultura. Até porque nessa mesma época entre os gregos havia uns sábios filósofos que faziam muitas curas e alguns também se arrogavam o poder de ressuscitar pessoas mortas. Lembremos que não estamos falando daquelas camadas que ainda tinham conhecido Jesus em pessoa, mas muitos anos depois, quando Jesus já “tinha passado à história”. E nesta altura do campeonato estamos lidando com cristãos descendentes de judeus e com cristãos descendentes de gregos. E por isso, para as camadas de cristãos judeus ainda lhes interessava o “Jesus” terreno, mas para as camadas de cristãos gregos não. Para estes interessava-lhes um Jesus glorioso e político e militar como eles estavam acostumados com seus heróis. E desse jeito surge a falta de interesse no Jesus terreno em toda a Igreja helenística porque esse Jesus glorioso e politico e militar vinha como eles estavam acostumados. (Cf. o.c.p.125).  Aí havia o culto com as “aclamações” públicas que constavam de tipos de “slogans” repetidos vezes sem conta, em ambiente público. Este tipo de culto e aclamações começaram a transferir para o Jesus dos hebreus o mesmo que o “Kyrios” ou “Christos” era para os deuses e deusas dos gregos. Estava consolidado o nome de “Kyrios”, e “Christos” entre os gregos, nome que passou para toda a Igreja e para os escritos do Novo Testamento, Cartas e evangelhos, que estavam começando a ser redigidos nessa mesma época. As primeiras foram as Cartas, nos anos de 40-50 d.C. e depois os primeiros evangelhos, anos 70-80 d.C. Temos uma notícia ainda antes de avançar. Vimos que para os cristãos gregos a palavra “Jesus” não dizia nada no início. Mas junto com a palavra “Kyrios” se popularizou também a palavra Christos, de “chrestos” a lenda do escravo obediente. E foram estas duas palavras que ficaram associadas à pessoa de Jesus. Então ficou o dueto “Christos Ýesus” ou o trio “Kyrios Yesus Chritos”, “Senhor Jesus Cristo”. E foi assim que passou para os escritos do Novo Testamento. Na verdade, como afirmam os estudiosos, o Novo Testamento e a Igreja em geral ficaram devendo mais à língua e à cultura grega do que à judaica. As Cartas paulinas e Atos dos Apóstolos são exemplos flagrantes. Como falei em páginas anteriores, o autor de Atos pretendeu, em Atos dos Apóstolos fazer um épico tomando por modelo a Eneida. Com o particular que Atos e Evangelho de Lucas eram inicialmente um só volume, tendo ficado separados somente no séc.V por vantagens de manejo. Já Paulo nalgumas Cartas fica dependente da cultura grega, como quando fala em “todo o vosso ser, corpo, alma e espírito”, seguindo o filósofo Posidônio que dizia que o espirito pertencia ao reino do Sol, a alma ao reino da Lua, e o corpo ao reino da Terra, trazendo à baila Plutarco que dizia: “o espaço entre o reino de Deus e o reino da humanidade é ocupado por espíritos celestes, alguns com poderes divinos. A hierarquia desses poderes divinos é uma escada desde o mundo humano até Deus” (H.Koester, o.c.p. 159 e 163). E na Carta aos Filipenses Paulo conecta o nome habitual grego dos deuses e imperadores ao de Jesus dos hebreus com o nome de Kyrios como falámos. E assim amplia na Carta aos Colossences 1,16 quando fala dos poderes celestes que ocupam os espaço entre o reino de Deus e o reino da humanidade (Col. 1,16). Em resumo, o teólogo R.Scroggs afirma: “ Para o autor de Atos Jesus era um ser humano que foi justificado por Deus e voltaria no fim dos tempos. Para o autor de Colossences Jesus ressuscitou para uma realidade divina “cósmica” ou “espacial”: Cristo é aqui o nome para a realidade “espacial” exaltada de Deus: os fiéis estão em Cristo; morrem em Cristo; ressuscitam em Cristo; estão escondidos em Cristo; Cristo é o mistério de Deus; Cristo concede a paz; essa realidade também é Kyrios, mas o simples nome de “Jesus” não se encaixa nessa realidade cósmica” (o.c.p.130-131).

Conclusão. Concluindo, é preciso dizer que nós somos filhos da cultura judaica e da cultura grega. E tivemos ocasião de ver como evoluiu entre os primeiros cristãos gregos o nome de Jesus, e as associações que fizeram com os nomes de seus deuses e imperadores. Como consequência vimos também que o Jesus terreno não lhes interessava, pois nessa época aquele Jesus que "curava" o povo e era amigo do povo era uma figura que depois de 60 ou 80 anos "já tinha passado à história", esquecendo a figura humana de Jesus para ver só o Jesus mítico e cósmico. E assim esta situação passou para os novos escritos e para o "âmago" da Igreja em geral até hoje.

P.Casimiro João     smbn

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segunda-feira, 4 de novembro de 2024

JESUS SEQUESTRADO.

 

Há uns 70 anos a esta parte os sacerdotes-párocos vestiam uma capa de cor preta, redonda, semelhante às vestes do Papa e dos bispos. Usavam também um “chapéu” chamado barrete, de três bicos, também chamado de “tricórnio”. Havia um serviço especial do sacristão para administrar o uso do tricórnio na missa, o que muitas vezes era objeto de chacota por parte dos fiéis. Seria sem dúvida uma imitação das vestimentas e tiara e solidéu de bispos e Papas. É deste jeito que foi sequestrado Jesus, num dado momento da história. Ele que relutou contra o poder dos grandes das nações (Mt.20,17),  fizeram dele um chefe de uma Nação e lhe entregaram um Estado, os Estados Pontifícios, cujo histórico está cheio de lendas e falsificações e embustes históricos desde o início? (Libanio e H.Kung Olhando para o futuro, p.78). Ele que relutou contra as vestes dos rabis, e fariseus (Mt;23,5),  lhe entregaram as vestes mais ricas da face da terra na pessoa dos mesmos Papas, quando nas decretais de Graciano a eles foi permitido usar as insígnias e vestes do imperador? Ele que nunca exerceu as funções de sacerdote no Templo, nem alguma vez vestiu roupas dos sacerdotes, cobriram-no de honras do Sumo Sacerdote e o rotularam de Sumo Sacerdote, sequestrando-o da sua qualidade de profeta ambulante e frequentador leigo da sinagoga? Ele que lutou contra encher odres velhos com vinho novo, porque o “vinho novo arrebentava os odres velhos” (Lc.5,37) aplicaram-lhe os títulos do Antigo Testamento além de sumo sacerdote também filho de Davi-imperador, a fim de continuar com os sacrifícios no templo e com as guerras contra todas as nações para conquistá-las para o Novo Israel? E que corrigiu os discípulos quando não aceitaram o outro “expulsar demônios” sem autorização dele, e proibiu-os de pedir “fogo do céu contra eles” (Lc.9,54), esse Jesus continua assistindo a tanto fogo das Igrejas contra religiões afro, indígenas e orientais porque não têm autorização “oficial”? Ele que disse: “onde dois ou três estão reunidos em meu nome eu estou aí no meio deles”(Mt.18,20), continua assistindo às atitudes de quem pensa que só existe assembleia onde tem padre ou bispo. Jesus, que lutou contra o patriarcalismo, colocaram-no no mesmo plano de Abraão, fazendo comparação entre ele e Abraão, “antes que Abraão existisse eu sou” (Jo.8,58) uma pura concepção da pessoa de Jesus como sendo o Logos preexistente da teologia gnóstica de João, tão preexistente como era a “Sabedoria” dos Judeus “que presidia a todas as obras da criação desde o início.”(Prov.8,22-36).  Sequestraram Jesus no espaço e no tempo como se fosse esse Ser da filosofia gnóstica grega, o “Logos,” ou da filosofia judaica da “Sabedoria. “É impossível anunciar uma Boa Nova para um mundo que se despreza” afirma numa frase lapidar João Batista Libanio (o.c.p. 80). Ah mas aí fui sequestrado, falaria também Jesus, porque “Deus amou tanto o mundo” (Jo.cap.3), mas a Igreja de Cristo não tem tido esse amor, quando desprezou o mundo como “mau”, condenando-o por suas descobertas filosóficas e científicas, como no caso de Galileu, e na época do Iluminismo que trouxe as novas filosofias da razão pura e dos Direitos humanos, assim como na engenharia genética. Sequestraram Jesus.

Conclusão. Finalmente, sequestraram Jesus, tirando-o do Novo Testamento e deslocando-o para o Antigo Testamento quando, pela Carta aos Hebreus escrita por um judeu convertido sequestraram Jesus do N.T. para o A.T. configurando-o como sacerdote do antigo testamento igualzinho àqueles sumos sacerdotes que viviam e enricavam no Templo e sendo os maiores proprietários de fazendas e os maiores políticos da época e chefes do Sinédrio que decretou a morte de Jesus. JESUS SEQUETRADO.

P.Casimiro João    smbn

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