segunda-feira, 27 de outubro de 2025

A FÉ E O HOJE


 

O cristão, por regra, tem medo de ser feliz. Quando goza de certo ambiente momentâneo de felicidade, logo já vem a saudade da infelicidade que tomou conta da sua vida, como a ave que, acostumada na prisão, não se sente bem quando voa dois metros longe da sua gaiola onde se acostumou. Os estudiosos o que dizem sobre a fé que tem orientado a Igreja? “Há todo um lado dolorido da religião que alimenta a melancolia. Frequentemente a fé transforma-se num alibi de que o fiel depende, que quer “agradar” e em função do qual age. Fonte de angústia, porque nos anula a liberdade, a autonomia para tomarmos nas mãos  o próprio caminho, sentindo-nos comandados por outro” (Libanio, Olhar para o futuro, p. 67).  O cristianismo é especialista em grande dureza de uma fraternidade áspera, falta de coração e insuficiente capacidade de amar. Imagem deformada de Deus, rigorismo moralista e masoquista, medo da novidade, insuficiência crítica, fideísmo camuflado, falta de criatividade, repressão da liberdade. Há uma esquizofrenia que afeta muitos eclesiásticos ao terem que ensinar, defender, pregar verdades importantes impostas que não correspondem às suas experiências, à sua interioridade, à verdade deles mesmos. Ou então renunciam a viver no mundo de hoje, aceitando tudo sobre o que pensar e o que conhecer. (Cf. Drewermann, apud Libanio o.c.p.68). E vejamos o que afirma o mesmo autor: “Algum dia a Igreja acabará descobrindo que enquanto continuar presa ao conceito de  uma verdade exterior que não se coadune com a realidade vivida, ela mais ocultará a verdade divina do que revelará. Entretanto os leigos estão a passar por uma trágica experiência de fracasso, incapazes de transmitir aos filhos as suas convicções religiosas, ou seja, o que eles pensam e o que ainda continuam ensinando de maneira antiquada”. E isto torna-se um drama de consciência porque esbarra com a realidade de cada dia. Deste modo, faz-se necessário o questionamento: “Há todo um lado dolorista da religião?” O que nos remete à discussão filosófica, socilógica e psicológica sobre os aspectos negativos ou problemáticos que podem  emergir de crenças e práticas religiosas. A literatura atual, incluindo referências filosóficas como Paul Tilich e estudos sociológicos e psicológicos contemporâneos, descobriu diversas dimensões em que certasformas de religiosidade podem gerar sofrimento ou dor, seja individual ou socialmente falando. Vejamos as causas: primeiro, a religião e o medo: Muitas tradições religiosas estruturam a experiência humana em torno de conceitos de pecado, julgamento e punição eterna, provocando medo constante nos fiéis. Esse temor pode afetar a saúde mental, levando a neuroses ou sensação de inadequação. Segundo: tensão ente religião e modernidade: Estudos contemporâneos apontam que a religião, quando não dialoga com os valores democráticos, culturais e científicos do mundo moderno, pode gerar conflitos internos ou sociais, aumentando o sofrimento de quem tenta reconciliar fé, liberdade individual e conhecimento crítico.

Conclusão: Sim, podemos afirmar que há um lado dolorista na experiência religiosa, particularmente associada a culpa, medo, intolerância e perda de autonomia, sobretudo quando se enfatiza a obediência rígida, dogmas punitivos ou exclusão social. 

P.Casimiro João       smbn

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segunda-feira, 20 de outubro de 2025

AMAI OS VOSSOS INIMIGOS.


 

Este estudo é sobre as diferenças entre o evangelho de Mateus, “Amai os vossos inimigos Mt. 5,44   e o evangelho de João:  Amai-vos uns aos outros, Jo.13,34. E sobre as consequências que daí resultam, como veremos no final. Em Mateus  o amor inclui os inimigos; em João especifica: “uns aos outros”. Quem são esses “uns aos outros”? São os discípulos da mesma comunidade, que “observam os mandamentos”. “Se observardes os meus mandamentos permanecereis no meu amor”Jo.15,1-6. Já vem de outra afirmação, do fato de Jesus recusar “a orar pelo mundo” “Não rogo pelo ‘mundo’, mas por aqueles que me deste, porque são teus” Jo17,9. Quem são os do “mundo”? No primeiro significado cosmológico, o ‘mundo’ era a Criação que era má porque era do demiurgo ou do maligno, e não do Deus supremo que não se misturava com a matéria; Esta afirmação tem o seu reflexo nas Cartas joaninas nas quais o ‘mundo’ também eram os judeus num primeiro tempo, mas depois estendeu-se aos ‘separatistas’ que tinham deixado a comunidade e fizeram outras comunidades, i.é, era tudo o que era alheio a eles. (Cf.wwwparoquiadechapadinha.blogspot.com.br de 18/72021). Isto sacamos também da 1ª Carta de João: “E há pecado que conduz à morte, não digo que se reze por eles” 1Jo.5,16, transformando-se  numa recusa a orar por outros cristãos que cometeram o ‘pecado’ de se separarem da comunidade deles. As Cartas de João são contra os “separatistas” que em massa deixaram a comunidade por divergências sobre a Cristologia (cf.www.paroquiadechapadinha.com.br  de 08/8/2021). Então os separatistas já não eram mais “irmãos”. Para o autor das Cartas, os ‘irmãos’ eram os da comunidade dele. Na verdade foram estas disputas internas que deram origem às Epístolas joaninas. Como afirma R.Brown, no livro “A Comunidade joanina”. E aqui aparece a grande anomalia dos escritos de João. Em nenhuma ocasião do Novo Testamento se levanta tanto a voz em favor do amor dentro da fraternidade cristã. Com fervor evangélico o autor afirma: “Quem não ama seu irmão a quem vê, como poderá amar Deus a quem não vê” 1Jo.4,20. No entanto esta mesma voz é implacável em condenar aqueles irmãos que tinham sido membros da sua comunidade. Porém, agora eles são ‘demoníacos’, ‘anticristos’, ‘falsos profetas’, como afirma mais adiante: “Eis que há muitos anticristos; eles saíram dentre nós, mas não eram dos nossos” 1Jo.2,18. Enquanto que os membros da comunidade são exortados a se amarem mutuamente. A Carta recomenda que o trato com  os dissidentes deve ser o seguinte: “se alguém vem ter convosco sem ser portador desta doutrina não o recebam em casa nem o saúdem; aquele que o saúda toma parte em suas obras” 2Jo.10-11. Olhando superficialmente, ficamos maravilhados como o autor joanino mistifica o “amor” enrolado na sua comunidade. Porém dá a impressão que para a tradição joanina só existia ‘um único mandamento’, “esse é o meu mandamento’ Jo.15,12. No entanto, debaixo destas palavras está o radicalismo de se considerarem como irmãos somente eles. Em consequência com esta tese vêm outras afirmações limitadoras: “O Espírito da verdade que o mundo não pode receber porque não o vê nem o conhece mas vós o conheceis porque permanece em vós” Jo.14,17. E ainda: “Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu te conheci” 17,25.  Isto não nos surpreende numa tradição em que o evangelho coloca Jesus prometendo que aqueles que o conhecem conhecerão também o Pai. Claro que eram eles também os que “conheciam” o Pai. Assim como eram eles que “agiam segundo a verdade” e que “aproximavam da luz” Jo.3,21  e os “outros” andavam “nas trevas porque se afastavam da luz” Jo.8,12. Perto de finalizar, comparemos a linguagem dualista empregada por João no evangelho e nas Cartas contra o ‘mundo’ e contra os judeus: Os seguidores de Jesus “não andavam nas trevas”: “Quem ama seu ‘irmão’ não anda nas trevas. Quem ama seu ‘irmão’ permanece na luz” Jo.8,12. Agora o oposto: “Vós tendes como pai o demônio” Jo.8,44. “Aquele que peca é do demônio; todo o que é nascido de Deus não peca” 1 Jo.3,8.  Claro que quem peca são os “outros”; e  os “justos”    são eles. Mas os separatistas diziam que João os odiava com tantas condenações contra eles. Quando avaliamos o evangelho de João descobrimos um senso de hostilidade de “nós contra eles”. Este fato levou os cristãos de séculos posteriores a ver uma divisão dualista da humanidade. Um “nós” que estamos “salvos” e um “eles” que não estão. Na sua atitude para com os separatistas “nem os recebam nem saúdem” 1Jo.2,19 ele forneceu incentivos àqueles cristãos de todos os tempos que se sentem justificados, e motivação para odiar outros cristãos” cf.R.Brown, o.c.p.141.

Concluindo. É provável que nos cause arrepios esta constatação talvez nunca imaginada por leitores dos escritos atribuídos a João. Mas temos que nos acostumar com a ideia de que os escritos bíblicos foram escritos por gente igual a nós que viveram as mesmas lutas e tiveram as mesmas experiências de amor limitado e grupal, e repulsa e condenação para quem não pensava igual a eles. E também caíram na tentação de ‘apropriar-se da verdade’ de Deus e da sua ‘salvação’ e da presença do seu Espírito limitada a eles. Isso mostra um quadro mais real da vida da Igreja, com mazelas e tudo, como dito atrás www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br de 18/7/2021.

P.Casimiro João      smbn

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segunda-feira, 6 de outubro de 2025

VINHO E ÁGUA NO CASAMENTO DE CANÁ


 

Segundo o evangelho de João, cap. dois, num dia de casamento são colocados dois símbolos muito significativos: Seis grandes panelas de água, de 100 litros cada uma, e o vinho que acabou. Logo um observador atento  nota que a água era “para abluções dos judeus” (Jo.2,6). E a história que o vinho acabou é para focar no que vem a seguir sobre as panelas e a água. O Antigo Testamento baseava-se nas abluções e na observância da lei de Moisés. Era isto que representavam as panelas e a água. E desde logo o Novo Testamento irá se basear na obediência a Jesus Cristo. É o significado do vinho novo que “veio” da dita transformação da água. No fundo, vem sempre a questão: aceitar Moisés, ou aceitar Jesus? Aqui a teologia deste trecho fica paralela com o que Paulo afirma: “A lei de Moisés já era; agora é a cruz de Cristo pela qual eu estou morto para o mundo e o mundo para mim”, (Gl.6,14) e: “Cristo é o fim da lei, para justificar todo aquele que crê.” (Rom.10,4). No final da cena vem a intervenção da mãe de Jesus para fechar a situação com chave de ouro: Vão fazer tudo que Jesus disser, ou vão continuar fazendo tudo que Moisés disse?

Conclusão. Temos falado na resistência que o evangelho de João encontrou para ser incluído no cânon do Novo Testamento porque não fazia referências aos sacramentos. E foi só aceito porque um redator posterior postou as referências ao batismo com o episódio de Nicodemos de Jo.cap.3 e com as referências à eucaristia no capítulo seis. E no presente caso uma referência ao matrimônio. “O evangelista fez uma reflexão sobre Jesus Cristo como esposo da comunidade o qual oferece o vinho da alegria e da vida nova aos que participam de sua festa.” (Nilo Luza, em Liturgia Diária, 2025 p.78). Cf. também R.Brown, Comentário ao evangelho segundo João, vol.I p.305).

P.Casimiro João        smbn

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