domingo, 12 de setembro de 2021

O Cisma das comunidades joaninas: “Antes que Abraão nascesse eu sou”(Jo.8,58), resultante do entendimento de cristologias diferentes.

A crença na preexistência do Filho de Deus foi a chave da contenda com as comunidades dissidentes que deixaram a comunidade original. E de tal maneira esta questão se tornou a bandeira dela, que a luta intensificada pela polêmica sobre a divindade de Jesus fez esquecer a realidade da sua humanidade. Ou seja, na cristandade primitiva não havia disputa sobre a humanidade de Jesus.

À medida que o tempo passava, mais se esqueciam do Jesus histórico, até da data do nascimento, até se Jesus comia e bebia, até misturarem essas ações após a Páscoa na pessoa de Jesus. Somente depois que vieram a crer na divindade de Jesus, sua humanidade se tornou um problema.

O ponto era o seguinte: O Jesus cuja vida e morte conhecemos é o preexistente Filho de Deus? E porque todos eles usavam em comum as mesmas palavras “Cristo” e “Filho de Deus”? A questão era saber como esta terminologia cabia na pessoa do Jesus em carne e osso. O que significava que o “Filho de Deus” tenha vivido, e morrido como Jesus morreu?

Preocupadas com isso, as Epístolas separam as águas nesta afirmação: “Todo o espírito que crê que Jesus Cristo veio na carne é de Deus; e todo o espírito que não confessa Jesus não é de Deus”(1Jo.4,2-3). Os estudiosos dizem que os “separatistas” minimizavam a vida terrestre de Jesus. Eles eram adeptos do gnosticismo e docetismo que negavam qualquer relevância à humanidade de Jesus, afirmando que era uma aparência enganadora, assim como suas emoções mais humanas eram também aparentes. Esta teoria foi reforçada pela descoberta dos escritos da biblioteca de Hammurabi em 1940. Cerinto, adocionista, dizia que depois do Batismo o Cristo descido de Deus, desceu sobre ele em forma de pomba, mas no fim se retirou de novo de Jesus. E os versículos “Jesus, que veio pela água e pelo sangue”, 1 Jo 5,6 seriam para refutar essa teoria.

Mas como os separatistas podiam ter esta teoria se eles liam o mesmo evangelho de João? Os estudiosos entendem que o evangelho de Joao dá entrada para essa teoria do docetismo adocionista de Cerinto. Vejamos. A palavra (Verbo), que existia na presença de Deus antes da criação tornou-se carne em Jesus,”E o Verbo se fez carne(Jo.1,1-4; “Veio ao mundo como luz”,(1,9; “Ninguém subiu ao céu senão aquele que desceu do céu, o filho do homem que está no céu”,(3,13; “Aquele que me viu, viu o Pai, como  pois dizeis ‘mostra-nos o Pai” (14,9). E assim essa polêmica teve a vantagem de revelar o tanto de docetismo que estava escondido no evangelho de João.

Neste ponto, para aqueles que aduzem que a preexistência de João seria igual à de Paulo, note-se, quando Paulo falou da “condição divina” de Jesus,”sendo de condição divina não se prevaleceu da sua igualdade com Deus”(Fil.2,6) comparava Jesus a Adão, criado também em ‘condição divina’,“imagem de Deus”,(Gn.1,26), e portanto neste caso esses hinos se referem à vida terrena de Jesus. Além de que essas passagens paulinas estão em forma hínica e modeladas pelos hinos sobre a Sabedoria divina que também foi criada no começo da obra de Deus. (Prov.8,22). Então, tudo em Paulo aparece no tempo e no espaço presente, enquanto que João dá o salto partindo do gênero hínico do modelo da Sabedoria, para o formato evangélico. O Jesus joanino durante a vida terrena quando disse ‘antes que Abraão nascesse eu sou,Jo8,58, é o Jesus que fala da glória que ele tinha antes que o mundo existisse, (Jo.17,5). Aí não tem como fugir do formato helenístico e gnóstico da preexistência do Verbo preexistente(Jo.1,1), e o Verbo encarnado, (Jo.1,18).

Para reforço desta reflexão há ainda outras passagens no evangelho  em que os separatistas entendiam poder se apoiar. O jesus joanino lhes parecia como um  homem que nem come nem bebe porque quando falou em alguns elementos lhes eram colocados no plano espiritual, como “pão”, “água”, “vinho”, tudo isto como símbolo de realidades espirituais. Quando pergunta ao Filipe para alimentar o povo, ele ajunta: “falava assim, mas ele sabia o que iria fazer” Jo.6,5. Quando escolhe Judas: “Jesus sabia desde o princípio quem era aquele que o entregaria”,Jo.6,54. Para os estudiosos, o Jesus joanino não assumia as limitações da condição humana.

Num evento como o Batismo, há sinais de um Jesus preexistente: “Eu não o conhecia, mas para que ele fosse manifestado a Israel, eu vim batizar”Jo.1,31.  Na própria Paixão, há o contexto total de uma pessoa divina em Jesus sobre os acontecimentos: “dou a minha vida para retomá-la; ninguém tira a minha vida, mas eu a dou livremente, tenho o poder de entregá-la e o poder de retomá-la”Jo.10,17. No Getsêmani, todo mundo cai diante de Jesus, diante do “Eu Sou” de Jesus,(Jo.18,6). E o grupo que acompanhava Jesus pendente da cruz significava os começos da Igreja (Jo.19,23). E finalmente, para João, a crucificação já é a ascensão e o pentecostes, “Olharão para aquele que transpassaram”Jo. 19,37;  e depois, do lado aberto doou o Espírito” de onde saíram rios de água viva” Jo.7,38.

 Conclusão. Falei que as Epístolas de João tiveram sua origem para combater os separatistas da comunidade. Na opinião dos estudiosos, “ambas as partes conheciam a proclamação do cristianismo que nos foi feita através do IV evangelho, mas que interpretavam diferentemente” (R. Brown, o.c.p.111). E vimos que o autor das epístolas se apoia no evangelho de João, mas o próprio evangelho dava entrada para o que ele combatia.

Vimos que a tese da cristologia joanina tinha muito de agnosticismo. Essa cristologia gerava diferentes interpretações: “O Verbo se fez carne”Jo.1,14, que o autor das Cartas explicava como “Jesus Cristo veio na carne” (1Jo.4,2), mas também há documentos que traduziam por “o Verbo apareceu na carne” (o.c.p.113).

Este versículo é duvidoso se é original, ou se é um acréscimo posterior para o combate contra os “separatistas”. (o.c. p.113). E ainda: Certas passagens deverão ser desconsideradas como pertencentes ao IV evangelho, alegando-se que provavelmente elas não estão nos originais da tradição usada pelos “separatistas”, mas foram acrescentadas  pelo redator ou mais tarde, como revisão anti-separatista.

Tivemos ocasião de falar nas diferenças de cristologia, o que levou ao cisma nas comunidades joaninas. Outras diferenças importantes virão ao caso, como veremos em temas posteriores, de escatologia e de pneumatologia.

P.Casimiro        smbn

www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br


Nenhum comentário: