domingo, 10 de outubro de 2021

A barca que afundava, e Pedro que afundava, (Mt.14,22-34): A construção teológica e eclesiológica do evangelho de Mateus, que pegou na Igreja até hoje.


 

“Pedro desceu da barca e começou a andar sobre a água. Mas quando sentiu o vento ficou com medo, e começando a afundar, gritou: ‘Senhor, salva-me’. Jesus logo estendeu a mão e segurou Pedro. Assim que subiram na barca o vento se acalmou. Os que estavam na barca disseram ‘verdadeiramente, tu és o filho de Deus” (Mt.14,29-33).

Esta cena só vem descrita no evangelho de Mateus. Comparemos com outra cena que só vem também no evangelho de Mateus: “E vós quem dizeis que eu sou? Simão Pedro respondeu: ’Tu és o Cristo, o filho de Deus vivo’...Eu te declaro que sobre  esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”. (Mt.16,15-18).

O primeiro episódio é paralelo ao segundo: ‘verdadeiramente, tu és o Filho de Deus (’14,33); ‘Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo’ (16,18). Nos dois episódios se fala em igreja, porque no primeiro a barca é a igreja. E ambos os episódios têm a confissão, no primeiro proferida por todos os discípulos:“ verdadeiramente tu és o filho de Deus”, no segundo proferida só por Pedro, ’Tu és o Cristo, o filho de Deus vivo’.

No primeiro tem a barca, “assim que subiram na barca, o vento se acalmou”. No segundo tem expressamente a igreja, “em ti edificarei a minha igreja”. No primeiro episódio Jesus salvou a barca das ondas; no segundo salva a igreja dos ataques  do inferno. No primeiro tem a correção de Jesus a Pedro: “homem fraco na fé, porque duvidaste” (14,31). No segundo também, “não sejas satanás, não sejas para mim um escândalo, teus pensamentos não são de Deus, mas dos homens” (16,23).

Como dito acima, são construções únicas e paralelas do evangelho de Mateus, para surtir o mesmo efeito. Qual efeito? O seguinte: para construir o alicerce da proeminência das comunidades que cultuavam Pedro como tendo sido fundadas por ele e conservando a memória dele, no caso a igreja de Antioquia. Nas mesmas cenas, o evangelho de Marcos, que foi seguido por Mateus, como sua fonte, depois de falar na travessia do mar, parou aí, e não diz nada sobre Pedro, nem a caminhada no mar, nem que afundou, nem a falta de fé e nem a confissão “tu és o filho de Deus”, (cf Mc.6,45ss.) Lucas e João nada trazem a respeito. E na cena das “chaves”, Marcos só refere as parcas palavras de Pedro ‘Tu és o Cristo’, e nada mais. A mesma coisa Lucas, (cf.Lc.18,20). João nada fala em nenhum lugar.

O pormenor, a redação de Marcos, que não fala de tempestade, nem ondas, nem ventania: “Vendo-os se fatigarem em remar, foi ter com eles pela quarta vigília da noite, andando por cima do mar”.(Mc.6,46). Enquanto que em Mateus a cena se avoluma: “Entretanto, já a boa distância da margem, a barca era agitada pelas ondas; quando os discípulos o perceberam caminhando sobre as águas ficaram com muito medo, soltando gritos de terror. E redobrando a violência do vento, Pedro teve medo e, começando a afundar, gritou ‘Senhor salva-me’ (Mt.14,30). Como dissemos, não é difícil perceber a intenção do autor no paralelismo das duas cenas do mesmo Mateus,14,29-23 e 16,15-18.

Para a construção desta teologia o evangelho de Mateus foi buscar o messianismo da Bíblia hebraica: “Porei sobre os seus ombros as chaves da casa se Davi; quando ele abre, ninguém fechará; quando ele fechar, ninguém pode abrir”(Is.22,22). Cf.blog www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br 30/5/21. Busquemos paralelos na teologia e teofania do Antigo Testamento. Sobre Jesus e o mar, ventos etc devemos vê-los à luz das grandes maravilhas provenientes do Antigo Testamento, que o evangelista de Mateus foi buscar para o seu episódio. Neste caso, o salvamento prodigioso dos discípulos foi interpretado nos parâmetros do Antigo Testamento. Na transmissão dos dois episódios foram introduzidos elementos provenientes do Antigo Testamento onde Deus é Aquele que caminha sobre as elevações do mar. “Ele sozinho estende o céu e caminha sobre as ondas do mar”(Jó 9,8). “Ele pisa no mar com seus cavalos”(Hab.3,15);  “Desafiou a tempestade e houve uma brisa e silenciaram-se as ondas” (Sl.107,9).

Além disso, como dito atrás noutras páginas, as primeiras igrejas de João, como de Lucas e Paulo torciam mais pela liderança do Espírito do que pelas instituições. Mateus, ao contrário, torcia pelas instituições. As estruturas do Antigo Testamento foram seguidas pelas comunidades do evangelho de Mateus, que tinham a tradição de Pedro. Tanto assim que os textos referentes a Pedro e às “chaves”, e “o caminhar sobre o mar para subir para a “barca” (leia-se igreja) só se vêm no evangelho de Mateus unicamente. (Cf. BLOG www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br 5/9/2021). Particularmente no respeitante a João já fizemos notar o contraste deliberado entre Pedro e o “discípulo amado”, pois o “discípulo amado” era o herói das igrejas joaninas, enquanto que Pedro era o herói das igrejas mateanas, (Cf. BLOG www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br de 8/8/21).

Até porque na sua tradição, a escola joanina não dava importância à estrutura e às instituições que a Igreja começava a formular nas suas fileiras, mas a importância que dava era para a presença e a função do Espírito. Ao passo que nas igrejas mateanas se dava toda a importância à instituição. E isto porque as  igrejas mateanas seguiam à risca a tradição vetero-testamentária. Aliás vemos isso declarado na festa litúrgica de São Pedro e São Paulo: “Pedro, o primeiro a proclamar a fé, fundou a Igreja primitiva sobre a herança de Israel” (Missal Romano).Cf. GLOG www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br de 5/9/21). E a Igreja católica adotou este formato, até porque lhe convinha, pois ela se propôs também a herdar os costumes e quadros institucionais do império romano, e também as roupagens litúrgicas.

Conclusão. Apesar de Marcos ser a fonte e o primeiro evangelho, mais perto das fontes, os dois evangelhos que entraram no formato histórico e teológico da Igreja foram o evangelho de Mateus e de João. O de Mateus pelas razões apresentadas. O de João pela suposição que este João era o “apóstolo” filho de Zebedeu e “discípulo amado” e que afinal das contas se constatou que eles não são o mesmo João mas duas pessoas diferentes. Vimos em páginas anteriores que o “discípulo amado” foi uma construção teológica e eclesiológica de João para dar mais valia ao “ser discípulo” do que “apóstolo”. E por isso mesmo, na continuação da sua tese, colocou a figura do “discípulo amado” junto à cruz para ser recebido pela Mãe de Jesus. “Quando Jesus viu sua mãe e perto dela o discípulo que amava, disse à sua mãe: Mulher, eis aí teu filho”(Jo.19,26).

Podemos responder: é porque os apóstolos não ficaram ao pé da cruz. Certo, mas, segundo as pesquisas dos estudiosos, nem os apóstolos, nem João, e nem o “discípulo amado” estavam ao pé da cruz, mas foi colocado lá para compor esta teologia e eclesiologia da escola joanina.(Cf. R.Brown o.c.p.87). Na verdade só o evangelho de João traz esta cena e nenhum outro. Todos os outros evangelhos falam só nas mulheres e até dão nomes. E Lucas termina assim: ”Os amigos de Jesus, como também as mulheres que o haviam acompanhado desde a Galileia, conservavam-se a certa distância”(Lc23,49). Por sua vez os outros evangelhos dizem: “todos o abandonaram e fugiram” (Mc.14,40 e Mt.26,56), apenas Lucas diz que Pedro o seguia de longe (Lc,22,54). 

P.Casimiro João     smbn

www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br

 

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