domingo, 9 de outubro de 2022

A violência do sagrado nas teocracias antigas e nos regimes ditatoriais e enfrentar o desafio da secularização e da terceirização


 

Desde alguns anos a esta parte uma parcela da humanidade deu-se conta que a Bíblia era considerada como tendo o monopólio do “sagrado”. Enquanto que hoje pensamos que toda a história é “história sagrada”. A consideração desse “monopólio” daria direito a usá-lo como uma arma, não só da parte do cristianismo mas das outras religiões as quais tinham isso também. O que legitimava esta “violência do sagrado” era: o que pertencia a Deus era bom, o que pertencia ao mundo não era bom. Até João no evangelho se reporta algumas vezes a isso: “o chefe deste mundo, já será vencido”(Jo.14,27), porque este mundo teria sido criado mau, na cultura milenar judaica e gnóstica.

O sagrado arcaico se baseava na cultura do “mistério”, do mito, e do medo. Diante desses fantasmas o ser humano seria assim como um avatar fabricado para obedecer ao mito e ao mistério. E assim se dava o rebaixamento de seu ser, a sua mente ficando diminuída, só em não pensar e não decidir livremente sem as amarras do medo e do castigo. Todas as ações do homem traziam o severo “senão”. Então se praticavam as coisas ou não, só pelo ameaço do castigo. Exemplo: “morrerás, e não viverás longos anos”; “os teus filhos não viverão por mil gerações” (cf.Dt.7,9). Vejamos mais exemplos: “Mandarei contra vocês o terror e a febre que embaçam os olhos e consomem a vida. Vocês espalharão as sementes em vão, pois o inimigo de vocês as comerá. Eu me voltarei contra vocês e vocês serão derrotados pelo inimigo. Se vocês se opuserem a mim e não obedecerem eu os castigarei sete vezes mais. Vocês comerão a carne de seus filhos e a carne de suas filhas, e devastarei suas cidades” (Lv. 26,16-27). Mais: “O homem que cometer adultério se tornará réu de morte, tanto ele como a sua cumplice. O homem que se deitar com a concubina de seu pai, ambos serão réus de morte. O homem que se deitar com a sua nora será morto juntamente com ela” (Lv.20.10 ss). “Se  alguma pessoa pecar, ainda que não o soubesse, contudo será ela culpada e levará a sua iniquidade”(Lv.5,17). “Como o homem castiga o seu filho, assim te castiga o Senhor teu Deus”(Dt.8,5). “O Senhor reservará os injustos para o dia do Juizo para serem castigados”(2R.2,9). “Pela ira de Javé dos exércitos a terra queima-se, e o povo se torna pasto do fogo”(IS.9,18). “Aquele que não crê no Filho, sobre ele pesará a ira de Deus”(Jo.3,36). “A ira de Deus se manifesta do alto do céu sobre toda a impiedade”(Rom.1,18). Por aqui vemos que o “sagrado arcaico” colocava Deus como o grande polícia do mundo. Era o regime das teocracias. Porém, no atual sagrado, Deus terceiriza as nações para o policiamento do mundo.  a democracia.

Na verdade, o sagrado arcaico das teocracias era composto de mitos, em vez de ciência; de cosmologia da imaginação em vez da cosmologia científica; da antropologia ancestral do homem das cavernas baseada em dualismos maniqueístas e zoroastristas das primitivas religiões, em vez da antropologia atual; da pedagogia do medo e do ameaço em vez da pedagogia libertária, a qual gerava espíritos aprisionados e doenças psicofisiológicas. Em resposta à narrativa de que havia no povo de Israel uma “história sagrada” em contraposição à “história profana”, hoje a teologia afirma de bom grado que toda a história é uma “história sagrada”. O ideal é que os Estados sejam regidos e fundados sobre a independência da justiça onde muitos cidadãos se encontrem dispostos a respeitar a famosa regra de ouro “não faças aos outros o que não queres que te façam”, como vem já desde o 1.º código do mundo, Código de Hamurabi, e que é chamado nos evangelhos a “regra de ouro” (Lc.6,31).

Paralelamente existe outro fator que faz parte inexoravelmente da democracia dos Estados de direito, que é a liberdade de consciência e de expressão, e a livre escolha da governação. Ninguém nega as dificuldades do pensar moderno sobre a democracia, no entanto é a melhor maneira de governo já encontrada. A democracia lida com as várias liberdades, e com a vénia e o respeito a todas. Lógico que aqui surge a necessidade do diálogo, que só anda acompanhado da paciência política. Seria mais confortável resolver tudo só com uma canetada, e com isso voltar a fazer do cidadão gente de menoridade, em obediência cega, e onde o castigo e a prisão ou morte estariam de novo em frente.  Deste modo, o que nas religiões antigas fazia a teocracia, com o medo, a ditadura faz na governança civil também com o medo e com a canetada. O medo resolvia tudo na teocracia, e a canetada, resolveria tudo na ditadura.

Paulo Freire descreve muito bem a democracia” Nas minhas relações com os outros, que não fizeram as mesmas opções que fiz, no nível da política, da ética, da estética, da pedagogia, nem posso partir de que devo “conquistá-los”, não importa a que custo, nem tampouco que pretendam “conquistar-me”. É no respeito às diferenças entre mim e eles ou elas, na coerência entre o que faço e o que digo, que me encontro com eles ou com elas. Minha segurança se funda na convicção de que posso saber melhor o que já sei e conhecer o que ainda não sei” (Paulo Freire, A Pedagogia da autonomia, 51ªed.p.137).

Na democracia, apesar de toda a abertura e diálogo, mesmo assim o cidadão tem que sempre atender à imposições que os meios poderosos da economia ou da midia querem impor, e às suas armadilhas e arapucas. Por isso, o mesmo sociólogo e pedagogo Paulo Freire nos dá o alerta nas seguintes atitudes: “Atentos como desocultar verdades escondidas, como desmitificar a farsa ideológica, espécie de arapuca atraente em que facilmente caímos. Como enfrentar o extraordinário poder da mídia, da linguagem da televisão, de sua “sintaxe”    que reduz a um mesmo plano o passado e o presente e sugere que o que ainda não há, já está feito. É que pensar em televisão ou na mídia em geral nos põe o problema da comunicação, processo impossivel de ser neutro. Na verdade, toda comunicação é comunicação de algo, feita de certa maneira em favor ou na defesa, sutil ou explícita, de algum ideal contra algo e contra alguém, nem sempre claramente referido. Seria uma ingenuidade esperar de alguma emissora de televisão de grupo do poder que, noticiando uma greve de trabalhadores declarasse a intenção de defendê-los. Talvez melhor contar de UM até DEZ antes de fazer a afirmação categórica: ‘é verdade, ouvi no noticiário das dez horas’ como já dizia Whright Nills” (Paulo Freire,o.c.p.136).

Temos agora ocasião de poder avaliar melhor a “violência do sagrado” da parte da religião, e a “violência do Estado.”  Ambas se arrogam o direito do monopólio da salvação; o direito de estar no lugar de Deus; o direito de condenar  as outras religiões e as outras opiniões, e o desprezo para a ciência; o desprezo para com os pobres, para quem é de cor diferente; de outras culturas; de outras raças; de outro gênero e de outras ideologias. Porque se apoderaram de Deus, querem impor a sua ideologia. O que é diferente não tem valia e é considerado inimigo para abater. Não tem mais nada de sagrado e divino, é só a sua violência.

Daí nasce a xenofobia, o racismo, e o despotismo e os genocídios, e a revolta contra a ciência e não aceitá-la. Impõe-se o imperialismo religioso e civil. A consequência é um “estado de autodemissão da mente, de conformismo do individuo diante de intenções consideradas fatalistamente imutáveis, e a posição de quem encara os fatos como algo consumado, como algo que se deu, e a posição de quem entende e vive a história como determinismo, e não como desafio”(Paulo Freire o.c.p.112).

E Paulo Freire continua: “Sempre recusei os fatalismos. Prefiro a rebeldia que me confirma como gente e que jamais deixou de provar que o ser humano é maior do que mecanismos que o minimizam”(o.c.p.113).

Conclusão. Não será fora de contexto dizer, no final desta reflexão, que a “violência do sagrado” pode funcionar nas religiões assemelhando-se à ditadura, que é a violência do Estado: a canetada manda, e a canetada castiga. Em ambas falta a liberdade, e o individuo não existe como parte dialogante a respeitar. Apraz-me lembrar a parte do evangelho que afirma ”numa casa de 5 pessoas, três estarão divididas contra duas...” (Lc.12,52). Daqui se depreende que o conflito existe. Mas nós somos convidados a administrá-lo. Na igreja chamamos a isto ecumenismo: Na política chama-se democracia. Contra a ditadura onde tem a canetada contra a liberdade; a arma contra o diálogo e a ignorância do cidadão em vez do estudo e da ciência.

P.Casimiro João

www.paroqujiadechapadinha.blogspot.com.br

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