segunda-feira, 27 de março de 2023

“Imprima-se, leia-se, mas não se cumpra”


 

Este era um princípio dos monarcas da Idade Média a respeito de documentos dos Papas. “Imprima-se, Leia-se, mas não se cumpra” quando não lhes convinha.

Hoje em dia não se expressa essa atitude assim tão aberta mas se pratica, quem sabe, também pela sociedade religiosa. Refiro-me a documentos exarados pela autoridade oficial da Igreja sobre assuntos delicados que afetam a consciência moral das pessoas. Por dois motivos: o descompasso da Igreja com o consenso geral da sociedade e mormente com o descompasso do avanço da ciência sobre o valor da consciência humana e com os novos avanços da antropologia, psicologia e democracia, que trazem uma nova cosmovisão. Nesta cosmovisão não se trata daquele mundo, o “cosmo” físico mas daquele cosmo integrado que inclui o ser humano como a “consciência” universal de toda a criação. Evidente que na visão tradicional se separava esse mundo material do mundo da pessoa, do indivíduo, na ideologia do dualismo maniqueu que dividia a matéria como má e o espírito como bom. Daí vinha toda uma filosofia dualista e moral dualista. Vem até no evangelho uma amostra disso, separando Deus e a criatura onde se diz “só Deus é bom” (Mc.10,17), como se tudo o mais não fosse bom. Na moral já vimos noutro Blog que só o espirito era bom e a matéria era má, com todas as consequências de psicopatologias e esquizofrenias que isso aporta para tantos indivíduos que se veem numa guerra perdida com o seu próprio corpo “coisa má” grudado numa alma de que não pode se separar, chamada também “cárcere da alma” como se dizia. Desta ideologia de separação resultam vários desvios, sendo o principal o de “coisifcar o corpo humano”, como diz o documento “Alegria do Amor”n.151, como sendo a coisa má que se carrega. Implantou-se no cérebro humano que só o espírito é sagrado e que Deus é inimigo do corpo. Porém hoje em dia no diálogo com a nova cosmologia se sabe que tudo no mundo é sagrado, e dentro do mundo a pessoa humana é a peça fundamental. Como já dizia Santo Irineu, “a glória de Deus é o homem vivo”. Quando se constrói o ser humano constrói-se já a parceria com Deus. Deus fala em todos que falam pelo bem do ser humano. Yuval Harari, sábio israelense disse que “não precisamos invocar o nome de Deus para viver uma vida de moralidade; o ser humano pode nos prover de todos os valores dos quais precisamos” (Yuval Harari (cf. Donizete Toneti, Sexualidadee e Pastoral, Paulus,p.90). Ou seja, quando se expressa o bem e o valor do ser humano se expressa-se o nome de Deus.

A sociedade hoje entende a vida como movimento feito de avanços. Estamos na passagem de uma sociedade estática para uma sociedade dinâmica e em continua evolução. Experimentamos um contínuo processo de transformações rápidas e profundas em que é urgente assumir a consciência de que a diversidade faz parte da essência humana. E se torna um desafio para quem apostava na ideologia da conservação onde tudo era apologia da ideia estática e narcisista de ter medo de tudo o que é novo. Neste aspecto o histórico da Igreja não é muito positivo no acompanhamento e na recepção dos progressos das ciências humanas. Devido a isso se pregava uma ética sexual estática, restritiva a um modelo na contramão dos contextos históricos; faz-se urgente então reavaliar os critérios éticos repensando o significado do corpo e da matéria, por exemplo na sexualidade e seus valores num contexto de diversidade da sociedade hodierna. Como consequência postula-se hoje a progressão moral evolutiva deixando de lado uma moral ética e sexual de Aristóteles. Aristóteles, observando o sexo dos animais descreveu a “lei natural” como aquele comportamento onde a fêmea apenas é o espaço onde é depositado um “pequeno homem”, um “adulto em miniatura”, pois era no esperma do macho que ele estaria contido. Esta física e cosmologia antiga ainda vigora até hoje nalgumas cabeças antigas, deduzindo daí que o prazer humano do sexo serve só para a reprodução. A cosmovisão de hoje leva a mente a “sair do quarto” para se abrir ao contexto do amor abrangente que significa diálogo, e relacionamento afetivo. Porém, para a maioria dos cristãos falar em sexo e prazer ainda vigora o único imaginário do “quarto” como reprodução. Significa que é preciso ser cristão num tempo de mudança, onde ambos os aspectos, físico e afetivo estão intimamente ligados.

Hoje a sexualidade não pode ser reduzida ao aspecto genital e à procriação mas deve ser assumida consciente e livremente pelo sujeito. A Congregação para a Educação católica assim se expressou: “A sexualidade é um componente fundamental da personalidade, um modo de ser, de se manifestar, de se comunicar com os outros, de sentir, de expressar e de viver o amor humano como parte integrante do desenvolvimento da personalidade e do seu processo educativo” (Orientações, 1983, n.4) Cf: André Luis Boccato, Sexualidade e Pastoral, p.41).

Vemos que há uma intuição universal sobre o bem e o mal moral. Na verdade, a “análise histórica dos Mandamentos revela que há um grande paralelismo entre eles e as leis de outros povos do Oriente Médio” (Barboglio, em Decálogo, cf. Almeida, André Luis, o.c.p.64). E a Pontifícia Comissão Bíblica afirma: “O Deus da Bíblia não revela antes de tudo um decálogo, mas a si mesmo” (o.c.p.62).

Há um atraso histórico em certos canais televisivos que têm merecido críticas ultimamente. Entramos agora no aspecto da progressão moral. Entendemos que certas respostas dadas como receitas matemáticas em canais televisivos tratam deste tema como se a pessoa fosse um ser de mármore informe sujeito a uma e outra e outra martelada com as quais pudesse ser cortada, serrada e polida  para ser um cristão. Essas situações levam pouco em conta que as coisas humanas não se apresentam como branco e preto (Papa Francisco, Alegria do amor, 37) mas mais como naquela outra historia em que um aluno respondia à questão, quando foi perguntado que no mundo o mal é preto e o bem é branco, e ele respondeu, professora, então somos todos zebra. O tipo de respostas morais que se propalam nesses canais são de tipo “é, não é,” “pode, não pode”, e isso seria como se os ouvintes fossem marionetes feitas de fábrica, sem possibilidades de reflexão, de consciência, de discernimento e crescimento. É um forno de pão estornicado. Tudo baseado numa moral estática, petrificada e congelada nos freezers dos canais televisivos forjados há quase 100 anos. São “mestres com a cabeça feita antes do Concílio e não conseguiram mudá-la. E esquecem que há aquele Espírito que, como diz o Vat.II dirige o curso dos tempos e renova a face as terra com admirável providência” e ajuda a interpretá-la com discernimento (Gaudium et Spes, 26; Cf. Almeida o.c.83). E também não atendem à gradualidade do crescimento da pessoa, dando respostas de uma moral fria e burocrática” (Alegria do evangelho,32) dando receitas prontas e infalíveis como alquimia para elementos químicos. Por isso, cuidado com as receitas das mídia mediáticas e mágicas tipo rcc e cia.

Nestas páginas focamos que a gradualidade do crescimento implica etapas de crescimento, e para essas etapas não adéquam receitas prontas e mágicas. O outro é o “outro” que merece respeito, veneração. O outro é o outro e não uma coisa. Discernir é tarefa pessoal. Não é pancada que vem na violência de uma imposição alienante. Discernir é buscar o ideal sem esquecer que ele deve se encarnar etapa por etapa no concreto existêncial de cada pessoa. É colocar os pés no chão da realidade qual ela se apresenta hoje e não nas nuvens de épocas de séculos atrás.

Discernir é ajudar as pessoas numa tríplice dimensão: pessoal: a sexualidade a serviço da personalidade; social: a serviço da construção de uma nova humanidade; e transcendental,  a sexualidade a serviço do cosmo como um todo onde o ser humano reflete a luz das estrelas. Discernir deve ainda levar em conta estes três graus: 1ª grau, tomar consciência do ideal e do real; 2º grau, da unidade entre as dimensões objetiva e subjetiva da moralidade; e o 3º grau, levar em conta o significado da importância da consciência da lei da gradualidade e da condução da  sua consciência. No dizer de Antônio Moser, “a sexualidade é uma moradia com muitas janelas abertas para o mundo” (O enigma da esfinge,115).  (Cf.nosso Blog a respeito dos 3 andares do cérebro: www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br de 26/2/23). Tendo em conta que “à Igreja cabe formar consciências, não substiuí-las” (Alegria do amor, 32), e que “deve-se considerar o potencial erótico e instintivo da libido como um aliado, e não um inimigo”(Thiago Calçado, o.c.p.162). Se não se respeitar este processo haverá frustração permanente. “Se não houver formação permanente haverá frustração permanente” O resultado será “a vivência de uma sexualidade neurótica, desintegrada, perfeccionista, presunçosa, narcisista, intolerante, cruel e desumana”(Wisniewski Eliseu, Sexualidade e Pastoral, p.120). Cuidado então com gente que tem a cabeça antes do concílio e não conseguiu mudá-la. O Papa Francisco ainda diz que certas palestras causam desinformação e ‘infodemia’  e apela para “certos formadores se formarem melhor em competência, sensibilidade e autêntico profissionalismo”(o.c.p.349). E dá recomendações ainda como “evitar mesquinharia moral” (Alegria do Amor, 304). O papa Francisco ainda diz que “A palavra de Deus não pode ser conservada em neftalina como se fosse um velho manto mofado que é preciso proteger da traça” (Alocução no XXV aniversário do CIC,11/9/17; o.c.p.306). “Jesus não falou diretamente da sexualidade nem se apresentou como um inimigo do corpo pregando privações e sacrifícios; não encontramos uma palavra sequer vinda de sua boca a respeito de relações pré-matrimoniais, homossexualidade, masturbação; nos evangelhos deparamo-nos com um silêncio surpreendente diante da sexualidade e/ou problemática sexual” (Morano o.c.p.113). Não é a sexualidade que pode entorpecer o caminho para Deus mas antes de tudo a injustiça, o dinheiro, o legalismo, a hipocrisia farisaica, inclusive, em determinados casos, as próprias práticas religiosas”(Morano, Cf. Wisniewski, Eliseu, o.c.p.115)

Sobre as mídia de afirmações arcaicas e petrificadas de certo ”magistério paralelo” diz ainda o Papa Francisco: “Por pensar que tudo seja preto ou branco às vezes fecham o caminho da graça e do crescimento, e desencorajam percursos de santificação que dão glória a Deus” (Alegria do evangelho, 305). E isso também impede que julguemos com dureza aqueles e aquelas que vivem em condições de fragilidade ou apenas diferentes da nossa” (Sdardeloto, Moisés, Sexualidade e Pastoral, p.345).

Conclusão. Para alguns analistas existe uma desconexão entre as normas do magistério e as perspectivas dos fiéis, considerando que as normas da Igreja estão desligadas da realidade. Como exemplo, “90% dos casais católicos utilizam os meios contraceptivos proibidos pela encíclica “humanae vitae”. Jovens casais moram junto antes do matrimônio, embora também Roma tenha-se pronunciado contrária” (o.c.p 118), citando Roger Lenaers, Thomas Halic e Libanio. Daí parece voltarmos à época da Idade Média onde se criou o slogan com que começámos esta matéria, “Imprima-se, leia-se mas não se cumpra”.

P.Casimiro João   smbn

www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br

 

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