Há afirmações confusas nos evangelhos e
contraditórias entre si que fazemos bem analisar. Uma que nos deixa de queixo
caído é aquela que nos diz que o reino de Deus é como aquele rei ou aquele
patrão que mandou torturar o servo que lhe devia uma enorme fortuna. “Como não tinha com que pagar, mandou aquele
devedor aos torturadores, até que pagasse toda a sua dívida”.(Mt.18,34). E
encerra assim: “É assim que o meu Pai que está nos céus fará convosco se cada
um não perdoar de coração ao seu irmão” (v.35). O Pai do céu manda torturar? No
entanto, versículos atrás o mesmo evangelista afirma que se deve perdoar
setenta vezes sete vezes. (Mt.18,21). Porém, aquele rei não perdoou nem uma
vez. O enquadramento destas afirmações está naquela cena que só vem no
evangelho de Mateus, quando Pedro teria perguntado a Jesus, “quantas vezes devo
perdoar o meu irmão quando ele pecar contra mim, até sete vezes?” Ao que Jesus
respondeu: “Não te digo até sete vezes mas setenta vezes sete” (Mt.18,21-22).
As sete vezes indicam as sete voltas do sacerdote aspergindo sete vezes com o
sangue o altar da propiciação no dia do perdão (Lev.16,13). Mas mais do que
isso, terá que ser sempre. E a cópia ou
o modelo terá que ser sempre o que o Pai do céu faz, “que faz a chuva cair
sobre justos e injustos” (Mt.5,45). Porém, como vimos, o exemplo do rei
torturador não adéqua com a conduta do Pai do Céu e portanto do Reino dos Céus.
Autores como Warren Carter (O evangelho de Mateus, p.465-466) dão voltas e
voltas sobre estas inconsequências deste trecho e nas entrelinhas dizem que o
trecho é uma inserção feita por um redator e tendo sido agregada ao original.
Na verdade “este mundo é marcado por demanda e violência física. O cenário é
político, um mundo que a comunidade de Mateus provavelmente nunca teria
experimentado diretamente mas ‘teve notícias sobre’ e definitivamente sentiu o
impacto de suas políticas. Este é o mundo de “todo rei”, a corte de um rei com
sua classe de elite de autoridades e criados, clientes ou servos do soberano
benfeitor que leva a cabo suas políticas militares, administrativas,
financeiras e religiosas. Aqui a atenção é dirigida à esfera financeira, à
provável arrecadação de impostos ou tributos que financiam o poder do rei. Este
rei está fazendo o que “os outros reis da terra fazem”. Particularmente a
atenção se focaliza sobre um dos criados cuja tarefa era de praticar a “teoria
proprietária do estado”. Esta teoria via os recursos de um território como
pilhagem legitima para o soberano. A tarefa do funcionário ou criado era de
transferir riqueza dos produtores para a elite política.” (o.c.p.467). Quando
no texto se diz: “Porque o Reino dos céus é como um rei que resolveu acertar as
contas com seus empregados”Mt.18,23, o célebre redator deve ter esquecido várias
coisas, como aquela verdade que nunca o Reino dos céus ou de Deus não segue os
tramites, as manobras e as ganâncias e as torturas dos reis da terra.
Repassando a história, quantas vezes a
Igreja não terá imitado este procedimento de tortura? E eu estou pensando na
questão de “dívidas”. O cristão congregado numa comunidade chamada Igreja
acabaria sendo tratado como funcionário de uma empresa, como o “funcionário”
daquele rei da parábola. Por isso, no tempo da Inquisição, quando o cristão faltava
com a anuência de fé ou com “desvio de conduta” teria que ser torturado,” e
entregue aos torturadores para pagar a dívida da fé. Não teria sido este
entendimento que estava na cabeça dos Papas quando promulgaram o decreto da
Inquisição, que foi inventado no século XIII (1.233) pelo Papa Gregório IX? No
decurso da história da Igreja e da teologia tem havido outras sentenças tomadas
do Antigo Testamento que, como esta têm feito teologias que depois mudaram,
como aquela “quem crer e for batizado será salvo; quem não crer será condenado”(Mc.16,16).
Além de que esta parte do evangelho já não é o original de Marcos, sendo uma
glosa posterior de um redator numa catequese do batismo comparando o batismo à circuncisão
do Antigo Testamento sem a qual ninguém se salvaria. “Se não vos circuncidardes, segundo o rito de Moisés, não podeis ser
salvos” (At.15,1). Chegou-se até ao exagero de Agostinho afirmar que as
crianças sem batismo não se salvariam. Hoje em dia sabemos que tanto crianças
como adultos sem batismo se salvarão sim no reino dos céus. E assim vemos que a “inspiração”
e a “revelação” progridem, como agora constatamos nessa mudança de paradigma.
Aliás, como afirma a aporia atual, a “revelação” não terminou com o último
apóstolo, até porque o Cânon só foi fixado no século IV, d.C. muito tempo depois
do último apóstolo morrer. E em segundo lugar porque muitas teses foram
agregadas ou glosadas nos escritos originais por diversos redatores em que a
teologia também se apoiou.
A Igreja se exaltou sempre com o poder,
desde a época em que tomou para si o poder dos imperadores romanos quando estes
iam se acabando. E se baseando-se, como reforço, naquela palavras de Mateus: “Todo poder me foi dado nos céus e sobre a
terra” (Mt.28,18). Porém, resta a dúvida se teriam sido ditas pessoalmente
por Jesus. Aliás os estudiosos
afirmam que são uma cópia do episódio das “chaves de Davi” que o evangelista
foi buscar: “Eu porei as chaves da Casa
de Davi sobre o seu ombro, e abrirá, e ninguém fechará, e ninguém abrirá”
(Is.22,22). O que aconteceu: Depois da derrota e do exílio do Israel do
Norte o povo do Sul (Judá) botaram toda a esperança em Ezequias para voltar à
antiga glória de Davi, certos de que não iam ser derrotados e exilados como
foram os do Norte (Samaria) que já tinham caído no cativeiro; e isto não
aconteceu, porque dali a 30 anos este reino de Judá também caiu no cativeiro da
Babilônia, e não se cumpriu aquele dito de Isaías que tinha confiado muito em
Ezequias, que nunca seria derrotado, mas foi. No entanto essas palavras se
casavam bem com poder, que levou a se empoleirar nos báculos e mitras e tiaras e
anéis da Igreja.
Conclusão. No séc.XVI
Erasmo de Roterdã tinha escrito: “Não é
que os hierarcas fazem tudo girar em primeiro lugar ao redor de sua própria
honra, de seu poder e de sua glória, do direito canônico e da ostentação do
luxo e da pompa das igrejas? Quanta burocracia e quantos funcionários! Em vez
da comunhão se produz excomunhão, em vez do anúncio do evangelho, banimentos e
interditos. E antes de tudo, tanto no baixo como no alto clero, o dinheiro, as
receitas e os gastos são o centro da atenção.” E publicou um diálogo
anônimo em que se referia ao Papa Júlio II que levou as “chaves falsas” para o Vaticano,
i.é, as chaves do tesouro do Vaticano e então foi rejeitado por São Pedro nas
portas do reino dos céus. Consta que toda a Europa tomou conhecimento desta
piada para comentar a Igreja triunfalista em contraste com a Igreja do evangelho.
(Cf. Hans Kung, “Teologia a caminho” p.41-42.). Isso estava bem em oposição à
recomendação do último consistório em que o Papa Francisco nomeou 21 Cardeais: “Não sejam funcionários, sejam
evangelizadores” (30.09.23).
P.Casimiro Jão smbn
www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br
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