segunda-feira, 13 de maio de 2024

TEOLOGIA BÍBLICA, A BÍBLIA VERMELHA E AS OUTRAS.


 

“Ninguém em lugar nenhum possui o manuscrito original de qualquer livro bíblico: tudo o que temos é cópia de cópias. Isso inclui até as cópias mais antigas” (Harvey Cox, o futuro da fé, Paulus, 2018, p.209). Não existe um livro único e indisputável que podemos com confiança chamar “a Bíblia”. Aquilo que temos não é a Bíblia, mas interpretações, e interpretações de interpretações. (id.p.217). Isto vem a propósito do assunto de que falei nas páginas anteriores sobre o fundamentalismo bíblico e a crença. Na época de 1920, nos Estados Unidos, apareceu uma nova tradução da “King James” chamada “Revised Standard Version” (Versão Padrão Revista) por especialistas da língua inglesa. Nessa edição os estudiosos que prepararam a nova tradução do versículo de Isaías, 7,14: “eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho e será o seu nome Emanuel”, eles repararam que a palavra hebraica significava uma jovem, sem indicar se era virgem ou não. Então nessa edição da King James usaram essa palavra hebraica “jovem” em vez de “virgem”. Ora, assim que a “nova Bíblia” saiu a público, o escândalo irrompeu entre os fundamentalistas americanos, porque viam aí uma blasfêmia.  Com a agravante que ela vinha com uma capa vermelha e não com capa de couro artificial de cor preta como de costume. Como se estava em plena guerra fria entre os Estados Unidos e a Rússia após a segunda guerra mundial, isso foi o estopim para que os fundamentalistas atribuíssem essa Bíblia a um complô dos comunistas da Rússia contra a América do Norte. (Cf. H.Cox, o.c.p.206). No séc. XIX, esses americanos protestantes caprichavam  em se definir como “gente que segue a Bíblia”. Isso era considerado como um teste decisivo para ver se alguém era ou não “cristão de verdade”. Porém, ao mesmo tempo começavam a aparecer estudos e descobertas científicas sobre a Bíblia, e suas traduções. E a pergunta era: qual Bíblia eles seguiam? E a resposta começava pelo reconhecimento de que não existe a “Bíblia pura” mas só traduções. Existem diversas Bíblias diferentes: a judaica, chamada Tanakh; a protestante e a católica, cada uma com muitas traduções. Antes de Lutero a Biblia tinha 39 livros, depois passou para 32.  Outro exemplo, se eles fossem cristãos seguidores da Bíblia no séc.II d.C. a Bíblia era o Antigo Testamento e alguns evangelhos que estavam em disputa ou “sorteio” para ver os que seriam a Bíblia e mais outras Cartas que entraram depois. E no séc. XV os protestantes e católicos tinham os mesmo livros. Então se viu que a ideia de que “a Bíblia” sempre foi a mesma não é exata. E assim entre os fundamentalistas surgiu a pergunta: “Em qual tradução você acredita?  Há estantes e estantes de traduções. Já Origenes no séc.III enfrentou esta dificuldade e produziu uma edição do Antigo Testamento com seis colunas paralelas: do texto hebraico, outra aramaica, outra em grego, outra grego koiné, outra da septuaginta e a sexta coluna com grego moderno da época. Foi a conhecida “Háxapla”, ou Seis colunas. Mais à frente veio um episódio que impressionou as fileiras evangélicas no século XIX: foi a declaração pelo concílio vaticano I (1870)  da infalibilidade do Papa. Isto levou os evangélicos a ter a ambição também de alguma autoridade infalível, por sua vez do lado deles. Esta ambição fortalecia a visão fundamentalista da Bíblia como um “Papa de papel”. Porém, nem para o lado católico e nem para o lado evangélico é um fundamento sólido, porque, por um lado, a declaração do dogma foi arrancada na marra pela pressão  e pelas ameaças contra os cardeais que não votassem a favor, como rezam os anais, e pelo lado dos evangélicos não se encontra a “Bíblia”  em “estado puro” e “original” em nenhum lugar do mundo como dissemos. Resumindo, eis umas páginas muito ecumênicas e muito reveladoras do especialista, de formação batista H.Cox, em oito itens: 1, “Quanto aos fundamentalistas eu aconselho meus alunos a por de lado seus preconceitos e a mergulhar na Bíblia como faríamos com um romance envolvente ou como um filme; 2, Alguns estudiosos do Novo Testamento hoje creem que o autor do Evangelho de Lucas e dos Atos dos Apóstolos – uma única obra chamada “Lucas-Atos”_ teria usado como modelo a Eneida  de Virgílio, numa tentativa de compor um épico cristão; 3, Ler a Bíblia com esse tipo de salto imaginativo nos coloca na companhia de nossos antepassados espirituais, alguns deles patifes, outros santos, a maioria uma mistura dos dois. Mas todos dividimos algo em comum: nossa desajeitada tentativa de não apenas responder aos grandes mistérios, mas de responder a eles negativa ou positivamente com o mito e símbolos de nossa própria cultura particular; 4, Claro que boa parte da Bíblia consiste de poemas, lendas e histórias, e mesmo muitos fundamentalistas não interpretam literalmente os sete dias da criação. Mas por que, a Bíblia poderia reclamar sob qualquer aspecto nossa adesão espiritual e moral? 5, O que dizer de certas moralidades ali representadas, como a exigência de Deus de que os Israelitas matassem todos os cananeus, inclusive mulheres e crianças? Pior, o que dizer daqueles que reivindicam a autoridade da Bíblia para condenar gays, para plantar assentamentos na Cisjordânia, para assassinar um Rabin, ou um médico que faz abortos?  Como lemos textos de ambos os Testamentos que parecem justificar o assassinato e o caos? 6, Para tantos outros a Bíblia não passa de um ícone para botar a mão na hora de prestar um juramento. 7, Outros literalistas bíblicos, que não entendendo nada de poesia do Gênesis, tentam reduzi-lo a um tratado de geologia e de zoologia” (o.c.p.222-238). Não podemos deixar de nos reportar ainda às tentativas do primeiro e segundo século de perseguição a alguns cristãos que, para não ser perseguidos pelo imperador Constantino esconderam seus escritos para que não fossem destruídos ou queimados. Em contrapartida, os grupos que tinham o apoio do imperador acabaram sendo favorecidos e rotulavam os outros de hereges, enquanto que eles se outorgavam o titulo de “católico oficial”.(Cf.H.Cox, o.c.p.p232). Naquele tempo, como hoje, para muitos, o sentido e a definição da fé tornou-se ideologia imperial. Para estes só haverá fé quando se está de acordo com o governo, e com o “status quo”, e com o “império”.

Conclusão. Como conclusão anoto aqui uma observação de um estudioso da religião comparada, que afirma: “Filósofos e teólogos frequentemente ficam divididos entre duas convicções, de um lado eles acreditam que suas sociedades precisam da religião para manter a ordem, mas por outro lado eles mesmos não conseguem assentir àquelas proposições míticas. Sua solução desconfortável normalmente consiste em defender, ao menos em público, um conjunto de crenças para pessoas comuns mas guardando para si o direito de ter as suas dúvidas particulares. E chamam a isso de “mentiras nobres” (Bellah, o.c.p. 280).  O mesmo estudioso H.Cox tem as seguintes afirmações, rendendo-se às teologias da América Latina: “Viajei, ensinei e aprendi em muitos lugares do mundo, do Brasil à China; e da Índia ao Japão. Como professor em meu país natal vim a conhecer estudantes e visitantes de todos os continentes. No lugar de novas ideias ou teorias, a teologia da libertação representa toda uma clara maneira de fazer teologia. Ela começa repensando a mensagem cristã do ponto de vista dos pobres e dos marginalizados. Ela não nasceu nos auditórios de Tubinga na Alemanha, nem nas bibliotecas da Universidade Gregoriana em Roma. Não é uma teologia de “cima para baixo”, mas uma teologia que circula “de baixo para cima”, de milhares de grupos e movimentos de base. Tendo-se originado na América Latina na década de 1960 ela rapidamente se espalhou pelo Sul global, e na Coreia, no Sudoeste asiático, na África subsaariana e na Índia. O bispo Desmond Tutu da África do Sul, prêmio Nobel, assim como os teólogos “minjung” da Coreia, os teólogos da Índia e os líderes da Igreja clandestina chinesa reconhecem sua dívida para com ela. Inclusive variantes protestantes, judaicas, muçulmanas e budistas” (o.c.p.239-246). E finaliza: “A questão apresentada pelos pobres era antiga: a questão de como justificar um Deus de amor e justiça diante do sofrimento e da privação que eles sentiam e viam em torno de si. Eles encontram em Jesus não uma racionalização de por quê as coisas são como são, mas antes que as coisas podem e devem ser mudadas. A teologia da libertação é mais do que uma teologia latino-americana. Ela encarna um salto importantíssimo para fora de muitos séculos em que o cristianismo foi definido como um sistema de crenças imposto de cima para baixo. Ela simboliza e representa a recuperação do fulcro da mensagem do evangelho como tal, como vivido nos primeiros séculos do cristianismo. Ela é um sinal inequívoco da vinda do Espírito Santo”. (o.c.p.250-251). Revisando o nosso título Teologia bíblica, “a bíblia vermelha e as outras”, ainda nos faltaria dizer que nessa época da “Bíblia vermelha” estava nos seus começos a Telogia da libertação, e o fundamentalismo americano, de mãos dadas com o imperialismo americano também dirigiu os seus canhões contra a teologia da libertação. Como dissemos na página anterior, assim como o imperador Constantino financiou a Igreja no séc. IV assim agora o governo americano financiou o fundamentalismo protestante.

P.Casimiro João    smbn

www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br

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