“Ninguém em lugar nenhum possui o
manuscrito original de qualquer livro bíblico: tudo o que temos é cópia de
cópias. Isso inclui até as cópias mais antigas” (Harvey Cox, o futuro da fé,
Paulus, 2018, p.209). Não existe um livro único e indisputável que podemos com
confiança chamar “a Bíblia”. Aquilo que temos não é a Bíblia, mas
interpretações, e interpretações de interpretações. (id.p.217). Isto vem a
propósito do assunto de que falei nas páginas anteriores sobre o
fundamentalismo bíblico e a crença. Na época de 1920, nos Estados Unidos,
apareceu uma nova tradução da “King James” chamada “Revised Standard
Version” (Versão Padrão Revista) por especialistas da língua inglesa. Nessa
edição os estudiosos que prepararam a nova tradução do versículo de Isaías,
7,14: “eis que a virgem conceberá e dará à
luz um filho e será o seu nome Emanuel”, eles repararam que a palavra
hebraica significava uma jovem, sem indicar se era virgem ou não. Então nessa
edição da King James usaram essa palavra hebraica “jovem” em vez de “virgem”.
Ora, assim que a “nova Bíblia” saiu a público, o escândalo irrompeu entre os
fundamentalistas americanos, porque viam aí uma blasfêmia. Com a agravante que ela vinha com uma capa
vermelha e não com capa de couro artificial de cor preta como de costume. Como
se estava em plena guerra fria entre os Estados Unidos e a Rússia após a
segunda guerra mundial, isso foi o estopim para que os fundamentalistas
atribuíssem essa Bíblia a um complô dos comunistas da Rússia contra a América
do Norte. (Cf. H.Cox, o.c.p.206). No séc. XIX, esses americanos protestantes
caprichavam em se definir como “gente
que segue a Bíblia”. Isso era considerado como um teste decisivo para ver se
alguém era ou não “cristão de verdade”. Porém, ao mesmo tempo começavam a
aparecer estudos e descobertas científicas sobre a Bíblia, e suas traduções. E
a pergunta era: qual Bíblia eles seguiam? E a resposta começava pelo
reconhecimento de que não existe a “Bíblia pura” mas só traduções. Existem diversas
Bíblias diferentes: a judaica, chamada Tanakh; a protestante e a católica, cada
uma com muitas traduções. Antes de Lutero a Biblia tinha 39 livros, depois
passou para 32. Outro exemplo, se eles
fossem cristãos seguidores da Bíblia no séc.II d.C. a Bíblia era o Antigo
Testamento e alguns evangelhos que estavam em disputa ou “sorteio” para ver os
que seriam a Bíblia e mais outras Cartas que entraram depois. E no séc. XV os
protestantes e católicos tinham os mesmo livros. Então se viu que a ideia de
que “a Bíblia” sempre foi a mesma não é exata. E assim entre os
fundamentalistas surgiu a pergunta: “Em
qual tradução você acredita? Há
estantes e estantes de traduções. Já Origenes no séc.III enfrentou esta
dificuldade e produziu uma edição do Antigo Testamento com seis colunas
paralelas: do texto hebraico, outra aramaica, outra em grego, outra grego koiné,
outra da septuaginta e a sexta coluna com grego moderno da época. Foi a
conhecida “Háxapla”, ou Seis colunas.
Mais à frente veio um episódio que impressionou as fileiras evangélicas no
século XIX: foi a declaração pelo concílio vaticano I (1870) da infalibilidade do Papa. Isto levou os
evangélicos a ter a ambição também de alguma autoridade infalível, por sua vez
do lado deles. Esta ambição fortalecia a visão fundamentalista da Bíblia como
um “Papa de papel”. Porém, nem para o
lado católico e nem para o lado evangélico é um fundamento sólido, porque, por
um lado, a declaração do dogma foi arrancada na marra pela pressão e pelas ameaças contra os cardeais que não
votassem a favor, como rezam os anais, e pelo lado dos evangélicos não se
encontra a “Bíblia” em “estado puro” e “original” em nenhum lugar
do mundo como dissemos. Resumindo, eis umas páginas muito ecumênicas e muito
reveladoras do especialista, de formação batista H.Cox, em oito itens: 1,
“Quanto aos fundamentalistas eu aconselho meus alunos a por de lado seus
preconceitos e a mergulhar na Bíblia como faríamos com um romance envolvente ou
como um filme; 2, Alguns estudiosos do Novo Testamento hoje creem que o autor
do Evangelho de Lucas e dos Atos dos Apóstolos – uma única obra chamada “Lucas-Atos”_
teria usado como modelo a Eneida de Virgílio, numa tentativa de compor um épico
cristão; 3, Ler a Bíblia com esse tipo de salto imaginativo nos coloca na
companhia de nossos antepassados espirituais, alguns deles patifes, outros
santos, a maioria uma mistura dos dois. Mas todos dividimos algo em comum:
nossa desajeitada tentativa de não apenas responder aos grandes mistérios, mas
de responder a eles negativa ou positivamente com o mito e símbolos de nossa
própria cultura particular; 4, Claro que boa parte da Bíblia consiste de
poemas, lendas e histórias, e mesmo muitos fundamentalistas não interpretam
literalmente os sete dias da criação. Mas por que, a Bíblia poderia reclamar
sob qualquer aspecto nossa adesão espiritual e moral? 5, O que dizer de certas
moralidades ali representadas, como a exigência de Deus de que os Israelitas
matassem todos os cananeus, inclusive mulheres e crianças? Pior, o que dizer daqueles
que reivindicam a autoridade da Bíblia para condenar gays, para plantar
assentamentos na Cisjordânia, para assassinar
um Rabin, ou um médico que faz
abortos? Como lemos textos de ambos
os Testamentos que parecem justificar o assassinato e o caos? 6, Para tantos
outros a Bíblia não passa de um ícone para botar
a mão na hora de prestar um juramento. 7, Outros literalistas bíblicos, que
não entendendo nada de poesia do Gênesis, tentam reduzi-lo a um tratado de geologia e de zoologia”
(o.c.p.222-238). Não podemos deixar de nos reportar ainda às tentativas do
primeiro e segundo século de perseguição a alguns cristãos que, para não ser perseguidos
pelo imperador Constantino esconderam seus escritos para que não fossem
destruídos ou queimados. Em contrapartida, os grupos que tinham o apoio do
imperador acabaram sendo favorecidos e rotulavam os outros de hereges, enquanto
que eles se outorgavam o titulo de “católico oficial”.(Cf.H.Cox, o.c.p.p232). Naquele
tempo, como hoje, para muitos, o sentido e a definição da fé tornou-se
ideologia imperial. Para estes só haverá fé quando se está de acordo com o
governo, e com o “status quo”, e com o “império”.
Conclusão.
Como conclusão anoto aqui uma observação de um estudioso da religião comparada,
que afirma: “Filósofos e teólogos frequentemente ficam divididos entre duas
convicções, de um lado eles acreditam que suas sociedades precisam da religião
para manter a ordem, mas por outro lado eles mesmos não conseguem assentir
àquelas proposições míticas. Sua solução desconfortável normalmente consiste em
defender, ao menos em público, um conjunto de crenças para pessoas comuns mas
guardando para si o direito de ter as suas dúvidas particulares. E chamam a
isso de “mentiras nobres” (Bellah, o.c.p. 280).
O mesmo estudioso H.Cox tem as seguintes afirmações, rendendo-se às
teologias da América Latina: “Viajei, ensinei
e aprendi em muitos lugares do mundo, do Brasil à China; e da Índia ao Japão.
Como professor em meu país natal vim a conhecer estudantes e visitantes de
todos os continentes. No lugar de novas ideias ou teorias, a teologia da
libertação representa toda uma clara maneira de fazer teologia. Ela começa
repensando a mensagem cristã do ponto de vista dos pobres e dos marginalizados.
Ela não nasceu nos auditórios de Tubinga na Alemanha, nem nas bibliotecas da
Universidade Gregoriana em Roma. Não é uma teologia de “cima para baixo”, mas
uma teologia que circula “de baixo para cima”, de milhares de grupos e
movimentos de base. Tendo-se originado na América Latina na década de 1960 ela
rapidamente se espalhou pelo Sul global, e na Coreia, no Sudoeste asiático, na
África subsaariana e na Índia. O bispo Desmond Tutu da África do Sul, prêmio
Nobel, assim como os teólogos “minjung” da Coreia, os teólogos da Índia e os
líderes da Igreja clandestina chinesa reconhecem sua dívida para com ela.
Inclusive variantes protestantes, judaicas, muçulmanas e budistas”
(o.c.p.239-246). E finaliza: “A
questão apresentada pelos pobres era antiga: a questão de como justificar um
Deus de amor e justiça diante do sofrimento e da privação que eles sentiam e
viam em torno de si. Eles encontram em Jesus não uma racionalização de por quê
as coisas são como são, mas antes que as coisas podem e devem ser mudadas. A
teologia da libertação é mais do que uma teologia latino-americana. Ela encarna
um salto importantíssimo para fora de muitos séculos em que o cristianismo foi
definido como um sistema de crenças imposto de cima para baixo. Ela simboliza e
representa a recuperação do fulcro da mensagem do evangelho como tal, como
vivido nos primeiros séculos do cristianismo. Ela é um sinal inequívoco da
vinda do Espírito Santo”. (o.c.p.250-251). Revisando o nosso título Teologia
bíblica, “a bíblia vermelha e as outras”, ainda nos faltaria dizer que
nessa época da “Bíblia vermelha” estava nos seus começos a Telogia da
libertação, e o fundamentalismo americano, de mãos dadas com o imperialismo
americano também dirigiu os seus canhões contra a teologia da libertação. Como
dissemos na página anterior, assim como o imperador Constantino financiou a Igreja
no séc. IV assim agora o governo americano financiou o fundamentalismo
protestante.
P.Casimiro João smbn
www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br
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