domingo, 1 de agosto de 2021

“Eu não sou deste mundo, como eles também não são do mundo” (Jo.17,16) – Cristologia joanina e Polêmica com os Separatistas da comunidade: Tudo que não eram “eles” era “do mundo”.


 

“Se o mundo vos odeia, sabei que primeiro me odiou a mim. Se fosseis do mundo, o mundo amaria o que era seu; mas porque vos separei do mundo, o mundo por isso vos odeia” (Jo17,18-19).

No IV evangelho, o fato é que a oposição aos judeus domina os capítulos 5-12, e a oposição ao mundo abrange os capítulos 14-17. Aqui “mundo” tem duas vertentes: uma vertente cosmológica gnóstica, pela qual o mundo não tinha origem em Deus e por isso era mau. A segunda vertente de matiz teológica de João pela qual tudo o que não era da comunidade joanina era "o mundo". Continuamos falando da teologia joanina e da Polêmica contra os Separatistas da comunidade que acabaram formando outras comunidades.

Vimos na matéria do Blog anterior (cf. BLOG www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br de 18/7/2021) que seria assim como algumas igrejas de hoje que dizem que tudo que não é deles é do “mundo”, ou é do "demônio" e tudo condenado. Para eles, Jesus não “ora pelo mundo” Jo.17,9. Ele “vence o mundo”, e “chega a hora que ele expulsa o “príncipe deste mundo” (Jo.17,23). De início João distinguia os Judeus, mas pelo final juntou-os também na mesma designação “mundo”. E de tal maneira que só a sua comunidade iria se salvar “Irei preparar-vos um lugar...”(14,23). Notemos aí que “o príncipe deste mundo” é uma alusão ao “demiurgo” gnóstico, ou o “segundo deus” que criou o mundo porque o Deus supremo não se misturava com a matéria e por isso não foi ele que criou o mundo.

Esta rejeição do evangelho joanino produziu um crescente senso de alienação, de modo que a própria comunidade ficou muito estranha no mundo. Não demorou que chegasse o tempo em que após as diversas chamadas ao “amor interno” entre eles, a  real tragédia de uma grande divisão caiu dentro da  própria comunidade, como se nota na Catas joaninas posteriores. A comunidade tornou-se alienada e estranha. O “amor” que os unia virou em tragédia mais tarde quando ocorreram divisões dentro da comunidade, e até se chamavam de “anticristos” uns aos outros: “Estamos no fim da história do fim deste mundo. Ouviram que se aproximava o Anticristo, e já muitos como ele têm aparecido; eles viviam no meio de nós mas não eram dos “nossos”(1Jo.2,18). “João não se considerava apenas uma testemunha mas uma autoridade para corrigir doutrinas falsas e combater ameaças à fé provindas de “anticristos” e falsos espíritos” (D.Humtsman, João o discípulo que Jesus amava, 13).

E não só, mas os não crentes se enfureceram com eles, como denotam dados posteriores. Até porque a comunidade virou um “gueto”. Muitos elementos começaram a ver que eles deviam se inserir no mundo e na sociedade, senão como poderiam ser sal e luz, como eles liam nos outros evangelhos? Pelo contrário, estavam vendo que a comunidade se fechava mais e afirmava “Não vêm a mim se o Pai não os atrair”,(Jo.6,37), dando a entender que não existia nos círculos joaninos espaço para os “outros”. É o que mostra a insistência do Jesus joanino em falar aos “judeus”, que não é possível chegar à fé sem que lhe seja concedido por Deus. Infelizmente esta animosidade contra os Judeus, ajuntando-se à não menor animosidade de Paulo e foi-se avolumando por toda a Europa, tanto da parte da Igreja como dos reis em toda a Idade Média.

E o que falar da atitude do IV evangelho contra os simpatizantes da fé cristã mas que não tinham chegado à coragem de abraçar claramente o evangelho? O evangelho tece algumas encenações desse tipo de pessoas que não tinham a coragem de pagar o preço da expulsão da sinagoga para entrar na comunidade. É o caso de Nicodemos no cap.3, e o “cego de nascença” no capítulo nove. Nicodemos aparece depois publicamente na crucificação de Jesus para sepultá-lo. Ele juntou-se a José de Arimateia que era outro discípulo secreto, e foram aí colocados para dar um exemplo para os que viviam como cristãos escondidos. Histórias para animar os que não se decidiam abertamente pelo evangelho.

Já tive ocasião de dizer outra polêmica bem característica do IV evangelho, que se aproxima da cristologia paulina: é onde se encontram as afirmações do capítulo 8: “Somos descendentes de Abraão e jamais fomos escravos de alguém” 8,33. Trata-se de uma polêmica entre discípulos conservadores e seus adversários menos conservadores. Os primeiros interpretavam o termo descendência como descendência física de Abraão. Já os segundos se apoiavam na descendência da fé o que os faria tão ou mais descendentes que  os outros. E assim achavam até uma blasfêmia que Jesus “existisse antes que Abraão”, “em verdade em verdade eu vos  digo que antes que Abrão existisse eu sou” Jo.8,55.

Queria ainda referir o ambiente das polêmicas referentes ao capítulo seis quando uma parte dos discípulos abandonou Jesus (Jo.6,66). O fato é que no século segundo os cristãos judeus-não gnósticos alimentavam uma aversão especial contra o pensamento joanino. Sobreviveram escritos dessa época em que se recomendava que esse evangelho joanino fosse evitado cuidadosamente, porque esses cristãos judeus não possuíam a ponte de ligação do formato do pensamento gnóstico. (Cf. J.L.Martyn em R.Brown,o.c.p.83).“A partir de então muitos discípulos voltaram atrás e não andavam mais com ele” (Jo.6,66).

Finalmente ainda, uma referência aos irmãos de Jesus que não creram nele. “Com efeito, nem mesmo os seus irmãos acreditavam nele” Jo.7,5. Na verdade, os estudiosos sabem que Tiago, irmão do Senhor, foi seguido durante toda a sua vida por numerosos cristãos judeus em Jerusalém que eram mais conservadores do que Pedro, como também diz a carta aos Gálatas 2,12. Após a sua morte ele se tornou o herói por excelência para esses cristãos judeus, do século segundo, que aos poucos se separaram da “Grande Igreja”(o.c.p.80). Uma tradição afirma que outros irmãos do Senhor lhe sucederam na chefia de Jerusalém, e os parentes de Jesus eram tidos em eminente consideração nas igrejas da Palestina nesse séc. II. (Eusébio, História Eclesiástica III). Na verdade seguiam mais a tradição judaica do que os outros, assim como Pedro. Lembremos a observação de Jesus: “um profeta não é bem recebido na sua pátria e na sua família” (Mt.13,53).

Resumindo: a oposição ao mundo gerou um antagonismo entre “Jesus e o mundo”. Esta tendência perpassa diametralmente todo o IV evangelho. Ela é claramente gnóstica.  E criou muitas dificuldades para ser aceito por várias camadas de fiéis, como vemos nas polêmicas que também estão presentes em quase todas as páginas e em tantas narrativas como o “cego de nascença” cap.9 e em tantos símbolos como a “fonte de Siloé”(Jo.9,1-41)

Esta oposição aos judeus e ao mundo vai atingir o seu clímax no cap.17, numa oração composta para resumir todo o esforço das comunidades joaninas.

Veremos depois outras singularidades únicas do IV evangelho e os subterfúgios para defender as suas teses.

P.Casimiro Joao   smbn

www.paroquiadechapadinha.blogspot.br

 

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