Podemos
dizer que a piedade procede da espiritualidade, das tradições, das heranças,
dos medos, dos tabus e da religiosidade familiar. A história procede dos
documentos, da arqueologia, da investigação, das ciências interdisciplinares,
da linguística, da filosofia e da teologia.
Muitas
questões bíblicas, onde a piedade aparece em primeiro lugar, os críticos descobriram
que não são históricas; ou seja, viram que muitas narrativas não são
históricas, mas fruto da piedade, ou construções piedosas da época. E a isso
chamamos de parábolas, o que os judeus chamavam de midrash, casos para
tirar uma lição moral. Um caso desses será por exemplo o caso tão manjado da
“mulher adúltera”, cap.8 de João. Os críticos históricos dão este texto como
uma parábola igual o “filho pródigo”. Veremos mais à frente outros exemplos,
como o caso de Suzana, "pega em adultério” (Dn.13,1-21), aliás todo o Livro de
Daniel; os primeiros capítulos da Bíblia (a Criação etc), Tobias, o Livro de Jó
que é uma grande parábola, assim como o Livro de Jonas. E ainda as narrativas
apocalíticas, e as incluídas pari passu nos evangelhos e Cartas. Em todos esses
escritos se expressa a piedade e não a história.
Por
quais meios se expressa a piedade? Por meio de hinos, orações de salmos,
parábolas, apocalipses e narrações épicas. Não haveria
tempo nem ocasião de falar em todos estes itens, só umas indicações. Notemos
que o primeiro grande hino da Bíblia é o hino da Criação, uma
liturgia de louvor ao Criador. Hinos como este são da piedade popular,
passando para o Novo Testamento e inseridos em muitas Cartas que traduzem a
piedade popular. A piedade popular tem em vista só emoção; tantas vezes é um
cantor que passa para o público sua arte de poesia baseada no louvor, na
admiração fundando-se nas emoções e no que sente no momento. Talvez no dia
seguinte já diz o contrário, como quando um Salmo pede a Deus para “despedaçar os filhos “deles” contra a rocha”
(Sl.137,9); “O sol perderá o brilho e a lua escurecerá” (Joel, 3,15); a “terra
tremerá e as rochas se abrirão”(Is.2,19 e Jer,47,12).
Voltemos
ao capitulo oito de João, da “mulher adúltera”. A lição moral a tirar daí é um
exemplo de como a religião e a piedade pode atrapalhar o ser humano.
Na parábola em questão o primeiro lugar deve ser dado para o ser humano, depois
é que vem a religião e as suas leis. Nascemos todos “sem religião”, só como “ser
humano”; depois cada um escolhe a religião que quer. Claro que a maioria das
pessoas segue a religião dos pais. No entanto poderá adotar outra, ou até
nenhuma. Você é católico ou católica, porquê? E se seus pais fossem
protestantes ou religião afro? Você não seria? Trata-se da liberdade de
consciência e de religião, como asseverou o Vaticano II (Decreto Sobre a
Dignidade Humana e Liberdade religiosa, Seção II, pg.2). No decorrer da
História a “religião” pode ter atrapalhado muito o ser humano, porque os
religiosos não se davam conta que antes de ser “religioso” a gente é “ser
humano”. E quando se destrói um ser humano por causa da religião, se destroem
as duas coisas, o ser humano e o “religioso”. Se uma pessoa deixa de ser um ”ser
humano” para ser “religioso” então não é nem “religioso” e nem um “ser humano”.
É por isso que na história muitas pessoas pensaram assim: se para ser religioso
tenho que deixar de ser humano, então
não vale a pena ser religioso, vale mais ser humano. É isso que muitos
escolhem, e que Jesus mostrou por toda a sua vida e sem dúvida esta parábola da
“mulher adultera” nos quererá mostrar.
Até
onde vai a piedade, e donde recebemos a piedade? Da espiritualidade familiar,
como disse; das tradições, das heranças,
dos medos, dos tabus, e da religiosidade. Levaríamos tempo para desenrolar
estes conceitos. Somente vamos resumi-los em três: a herança familiar,
a tradição e os tabus. A espiritualidade e herança familiar é o
jeito de gestos, modos e comportamentos e palavras que vão moldando a criança.
São colados no âmago da criança com um grude poderoso até aos três anos, e
formarão em dois terços a cabeça e a personalidade futura da pessoa. São
irrefletidos e mecânicos como camadas estáticas que se sobrepõem. E geram
hábitos, que são maneiras mecânicas de agir e pensar. A criança e o adulto faz
porque faz, e sem saber por que faz; pensa o que pensa e sem saber por que
pensa. Pergunte um dia o “porquê” das coisas e responderá: “por que sim”;
“porque aprendi em casa”. E quantos pais não usaram de maneiras
violentas para inculcar essas coisas nos filhos? Pergunte só o sentido de
algumas palavras, não saberá responder. Pergunte sobre análise do texto do que
diz, do que fala e do que lê na Bíblia. E muitos jovens e adultos olharão para
o vazio. Isso, digamos, faz a pessoa um religioso autômato e um cristão
mecânico e inconsciente, e repetidor do que não sabe. O teólogo Karl Rahner
fala na fé baseada em mitologias, heranças e puras tradições; e na fé
refletida, baseada na reflexão crítica, na ciência bíblica,
nas ciências humanas, na cosmologia, na antropologia e na teologia.
(Curso fundamental da fé, p.348).
Falemos
logo nos outros dois elementos, a tradição e os tabus, e iremos
vendo que no final das contas tudo se junta como num funil. Por exemplo na
tradição e nos tabus o seguinte caso: nas culturas antigas todos os objetos
materiais estavam no domínio dos espíritos impuros. Nas práticas religiosas as
coisas materiais não podiam não podiam diretamente ser introduzidas no mundo
sagrado sem antes ser “abençoadas”. Porque se acreditava serem sustentadas por
espíritos. E o primeiro passo consistia em invocar o Espírito de Deus para que
expulsasse os maus espíritos dos objetos materiais.
Neste
pormenor, por exemplo o teólogo João Libanio comenta que alguns liturgistas vêm
um desvio material coisificando a presença divina nos elementos materiais do
altar, enquanto que se esquece que o Espírito divino é invocado para que venha sobre
a comunidade dos que participam da mesma mesa, e transforme o corpo eclesial numa
comunidade de união. (Cf. João Batista Libanio, Creio na Trindade, p.144-145). Nos nossos templos
assistimos a momentos bizarros quando os celebrantes se inflamam conclamando os
fiéis para que mostrem seus objetos, como chaves, documentos, santinhos,
quadros, para serem “benzidos”. Eu pergunto se esses clérigos que exibem esse
afã, também fazem a mesma coisa com seus objetos pessoais, “suas chaves”, “seus
documentos”, “seus quadros”?
Como
as coisas afunilam; além da “tradição”, aqui se nota a fase de infância e dos
tabus, e dos medos. Ali há uns perigos de “espíritos” nas “minhas chaves”. Não
vá com os cuidados do trânsito, e na velocidade legal, e não encha a cabeça de
álcool, e verá que os perigos dos espíritos não estavam nas chaves mas na sua
pessoa.
Conclusão. Revendo o questionamento: até onde vai a piedade,
e até onde vai a história. A “piedade” pode sofrer muitas deficiências e
mazelas, como vimos. A história nos elucida com documentos, arqueologia
estudada e decifrada, investigações científicas, ciências interdisciplinares
como cosmologia, antropologia, psicologia, linguística, filosofia e teologia.
Queria
enfatizar por ultimo que os da “piedade” são por vezes muito fáceis em “condenar”Jornalistas,
Artistas, comunicadores, escritores, teatrólogos. Não imaginamos que todos eles
e elas são senhores e senhoras altamente formados em todas estas ciências, coisa
a que os da “piedade” talvez não tenham. Por isso afirmei que “a piedade pode
atrapalhar muito a história” e perguntei, Até onde vai a piedade, e até onde
vai a história.
P.Casimiro
João smbn
www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br
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