Terá havido duas multiplicações dos
pães, ou uma só, como no evangelho de João, o único que traz uma multiplicação
dos pães com suas lições? Porém, Marcos apresenta duas, seguido pelos outros
dois evangelhos de Mateus e Lucas. Para o caso temos que olhar à intenção deste
detalhe. Os estudiosos inclinam-se para o fato que houve só uma multiplicação
dos pães e que a narrativa de duas será uma montagem teológica estratégica para
responder aos ambientes judeus, por um lado, e dos pagãos, por outro lado. Para
os judeus a primeira narrativa é feita em território judeu; para os pagãos, em
território pagão, em Betsaida na Decápole. Esta montagem (Mc. 6,30 e 8,10) constitui
um só discurso com duas versões. Para os judeus a primeira, e para os gentios a
segunda. A primeira em território judeu, para os gentios em território pagão,
em Betsaida, na Decápole. “Esta
montagem teológica se confirma pelo exame dos episódios que se intercalam entre
as duas narrativas. Elas tendem a mostrar que também os pagãos são dignos da
mesa do Senhor” (Emile Morin, Jesus e as
estruturas do seu tempo, Paulus, 2018, p.78). No intervalo das duas refeições
expos a doutrina de que um pagão pode ser tão puro quanto um judeu. Resumindo,
a multiplicação dos pães em Marcos, em que ele muito habilmente utilizou os
dois relatos, um do lado da Palestina, outro do lado dos pagãos serve para
mostrar que o banquete de Jesus estava aberto aos pagãos e aos judeus. “Bela
montagem teológica explicando plasticamente sobre “puro” e “impuro”. Mostrando
assim que a pureza do homem vem da pureza do coração, e não das abluções
rituais” (cf. o.c.p. 79). O mesmo sentido tem a cena que vem aí colocada sobre
o surdo-mudo da Decápole: Os pagãos outrora incapazes de ouvir a palavra de
Deus, e de lhe falar, doravante estão aptos para lhe prestar verdadeira homenagem
(Mc.7,31). “Marcos dá uma lição bem planejada de solidariedade de Jesus com os
pecadores, com os pequenos, os sem-lei, com os impuros, com os estrangeiros;
ele contestou fortemente as estruturas de uma sociedade que ousava se apoiar em
Deus para justificar a separação entre aqueles que ensinam e os que escutam;
entre os que decidem e os que obedecem; os que devem ser honrados e os que
devem ser condenados”(o.c.p.79). Quais as semelhanças e as diferenças com os
outros evangelhos? E porquê a “primeira multiplicação dos pães” e a “segunda
multiplicação dos pães” só no evangelho de Marcos e Mateus? O evangelho de
Mateus seguiu as duas versões de Marcos à risca e teve Marcos como fonte. Já o
evangelho de Lucas (Lc.9,10-17) que bebeu também de Marcos só se interessou com
a 1ª multiplicação no território da Palestina, e embora copiasse também a
segunda versão, todavia não teve o interesse da catequese de Marcos. Neste
particular, os três falam do local da 2ª multiplicação, Betsaida. E todos os
três falam no detalhe dos 12 cestos cheios, que sobraram depois de “saciados”.
E, por sua vez tanto Mateus como Marcos falam dos 07 cestos que sobraram na 2ª
multiplicação em terras pagãs. Porquê 07 e não 12? Porque 12 representa para os
judeus as 12 tribos, enquanto que 07 na refeição dos pagãos está relacionado
com os 07 diáconos que foram escolhidos entre os pagãos para servirem às mesas
quando “houve queixas dos gregos contra
os hebreus porque suas viúvas tinham
sido negligenciadas na distribuição diária” (At.6,1). Já o evangelho de
João limitou-se a só à 1ª multiplicação como dissemos (Jo.6,1-13) e em seguida
aproveitou para falar da eucaristia pondo a comparação entre o maná do deserto
com Moisés e este novo pão ou maná da Eucaristia, com Jesus. E aí temos duas
questões, a primeira era a questão da dificuldade que encontrou este evangelho
de João para ser aceito no cânon do Novo Testamento pelas suas muitas
influências dos gnósticos, e em segundo lugar porque não fazia menção dos
sacramentos em todo o evangelho. Como foi resolvida esta questão? Do seguinte
modo, um segundo redator tardio colou este tema eucarístico grudado na
multiplicação dos pães em referência explícita à eucaristia, para que este
evangelho entrasse no Cânon do Novo Testamento, assim como foi inserida também
a referência ao Batismo no episódio de Nicodemos (Jo.3,1-21), com o mesmo
objetivo. Com este jogo foi aceito no cânon o evangelho de João e incluído no
cânon do Novo Testamento embora já bem
mais tarde, no século IV. Eis então a motivação do “discurso” de João após a
multiplicação dos pães e do discurso sobre o Batismo com Nicodmos.(Cf. Raymond Brown,
Comentário do evangelho segundo João,
vol.I- pag.485-552).
Conclusão.
Tivemos ocasião de ver um exemplo de inculturação começando já no Novo Testamento.
Como falei, vem aí a referência à escolha dos primeiros sete diáconos motivada
já por uma “briga” que vem narrada nos Atos dos Apóstolos. Como houvesse ”queixas dos gregos contra os hebreus porque
as suas viúvas eram negligenciadas na distribuição da refeição diária”, os apóstolos convocaram uma
reunião, e foi decidido o seguinte: “escolhei
dentre vós sete homens os quais ficarão encarregados deste serviço” (At.6,1-3).
Foi o suficiente para que os redatores do evangelho de Marcos e Mateus
fossem buscar este episódio para a segunda refeição servida no território dos
pagãos.
P.Casimiro João smbn
www.paroquiadechapadinha.blogspot.com.br
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